Confissões de um ex-pastor(XII) 1ª Parte

Ruller é uma criação de Flannery O’Connor; é um garoto de uma cidadezinha e está desabrochando para o mundo. 

É dia. No meio da mata, Ruller corre atrás de um peru selvagem que está ferido. Ah, se eu conseguisse pegá-lo, é o que ele pensa e, caramba, ele vai pegá-lo, mesmo que tenha de correr para fora do estado.  

Ruller imagina-se entrando triunfante pela porta da frente, com a ave sobre o ombro, e toda a família exclamando admirada:  

— Olha, o Ruller está trazendo um peru! Ruller, onde foi que você conseguiu esse peru? 

— Ah, eu peguei no meio do mato. Se quiserem, qualquer dia pego outro para vocês. 

Mas pegar aquela ave ferida é muito mais difícil do que ele pensava. Então lhe ocorre outra idéia: “Acho que Deus vai me fazer correr à toa atrás desse maldito peru a tarde inteira”. Ele sabe que não devia pensar isso de Deus — mas é assim que ele está se sentindo. E quem pode culpá-lo por estar se sentindo desse jeito? 

Ruller tropeça, cai e fica ali no meio da sujeira, pensando se ele é mesmo esquisito. Mas, de repente, a caçada chega ao fim. O peru cai morto por causa do tiro que havia levado. Ruller coloca a ave sobre o ombro e começa sua marcha triunfal para casa, que fica bem no centro da cidade. Então se lembra do que pensou a respeito de Deus antes de capturar a ave. Eram pensamentos bem ruins, ele confessa. É provável que Deus esteja chamando sua atenção, detendo-o antes que fosse tarde demais. E então exclama: “Obrigado, Deus! O senhor foi extremamente generoso”.  

Ele pensa que aquele peru pode ter sido um sinal. Pode ser que Deus queira que ele se torne um pregador. Ruller quer fazer alguma coisa para Deus. Se naquele dia encontrasse um pobre na rua, iria dar-lhe sua moeda de dez centavos. É a única que ele tem, mas Ruller pensa que, por causa de Deus, ele a daria ao pobre.  

Andando agora pelo meio da cidade, as pessoas ficam admiradas com o tamanho da ave que ele carrega. Homens e mulheres ficam olhando para ele. Um grupo de crianças da roça o acompanha. Então certo homem pergunta:  

— Quanto você acha que ele pesa? 

— Pelo menos uns cinco quilos. 

— Quanto tempo você correu atrás dele? 

— Mais ou menos uma hora. 

— Que coisa impressionante! 

Mas Ruller não está com tempo para conversa fiada. Ele mal pode esperar para ouvir o que seu pessoal vai dizer quando ele chegar em casa com aquela caça. E torce para encontrar alguém mendigando. Com certeza ele lhe daria sua moeda. “Senhor, mande um mendigo. Mande um antes que eu chegue em casa.” E ele sabe que Deus vai lhe enviar um mendigo, pois é uma criança incomum. “Por favor, um mendigo agora mesmo”, é a oração de Ruller. No exato momento em que ele diz isso, uma mendiga velhinha anda em sua direção. O coração de Ruller quase salta pela boca. Ele avança na direção da mulher, gritando: “Aqui, aqui!”. Coloca a moeda na mão dela e continua a andar sem olhar para trás.  

Aos poucos seu coração desacelera e ele sente algo inusitado — como se estivesse feliz e sem graça ao mesmo tempo. Ruller está andando sobre as nuvens — ele e a ave que Deus lhe enviou.

Nesse momento ele percebe a presença das crianças que o seguiam. Todo generoso, vira-se e pergunta:  

— Vocês querem ver o peru que eu cacei? 

As crianças ficam olhando para ele. 

— Eu o persegui até ele morrer. Olhem só a marca do tiro debaixo da asa. 

— Deixe eu dar uma olhada — diz um dos meninos. Então, num gesto inesperado, o menino pega a ave, coloca-a sobre o próprio ombro e, girando o corpo, atinge o rosto de Ruller enquanto sai. E fica tudo por isso mesmo. Os meninos saem andando e levam o peru que Deus lhe havia mandado. 

Antes que Ruller conseguisse se mexer, os garotos já estavam a um quarteirão de distância. Desaparecem na escuridão, e Ruller começa a se arrastar para casa, mas logo dispara numa corrida. E Flannery O’Connor termina a impressionante história de Ruller com as seguintes palavras: “Ele corria cada vez mais e, ao chegar à estrada que dava para sua casa, estava com o coração tão acelerado quanto as pernas e com a certeza de que havia Algo Terrível atrás de si, com os braços rígidos e as mãos prontos para agarrá-lo”. Algo Terrível.

[Síntese do conto feita por Brennan Manning em Falsos, metidos e impostores da Mundo Cristão, adaptação do livro O impostor que vive em mim, do mesmo autor e mesma editora, o poder de síntese dele é inigualável. Os comentários meus a este texto, que faziam parte deste artigo, foram deslocados para a segunda parte do artigo com mesmo nome, o texto estava muito extenso, a brevidade exigiu isso].

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