Responsabilidade Compartilhada: Sistema de Logística Reversa de Resíduos de Medicamentos Domiciliares como instrumento para a sustentabilidade



A confiança cega nos benefícios advindos das pesquisas científicas e dos avanços tecnológicos, que se manifestou de forma exponenciada durante quase todo século XIX, entrou num longo declínio desde que as luzes deste mesmo século se extinguiram. Esta confiança era parte do conjunto das características do modelo social que se desenvolveu durante a Revolução Industrial, por isso mesmo também chamado de Sociedade Industrial. Para este modelo social os riscos ambientais, sociais ou econômicos eram considerados como intrínsecos à evolução científica e como consequência previsível do progresso proporcionado. O preço a ser pago por todos os benefícios resultantes e que seria minimizado ou superado quando as pesquisas científicas alcançassem níveis que sequer poderiam ser previstos ou imaginados àquela época, permitindo que fossem alcançados avanços consideráveis nas áreas de consequências mais críticas (BECK, 2011; HARARI, 2015; HOBSBAWN, 2014).

No próprio Século XIX algumas vozes dissonantes quanto à postura confiante nos benefícios obtidos por meio dos avanços da Revolução Industrial e do Capitalismo dela resultante se fizeram ouvir em diversas áreas da sociedade, uma das áreas que logrou contribuição mais profícua foi a literatura. O inglês Charles Dickens (1812 – 1870) e os franceses Victor-Marie Hugo (1802 – 1885) e Émile Zola (1840 – 1902) foram alguns dos proeminentes escritores daquele período que se dedicaram ao tema.

Charles Dickens (2014, p. 37) apresenta o contexto no qual inspirou Tempos Difíceis de forma lúgubre: “Era uma cidade de tijolos vermelhos, ou de tijolos que seriam vermelhos caso as cinzas e a fumaça permitissem; mas no estado de coisas de então, era uma cidade de vermelhos e negros antinaturais”.


Nesta obra, mais do que em qualquer outra, efetuou um relato dramático do esgarçamento do tecido social da sociedade daquela época. A despersonalização causada pela exploração trabalhista da indústria, sempre em busca do lucro fácil sem mensurar as externalidades, alcançou níveis tais que os mais hábeis trabalhadores eram considerados apenas uma “Mão” e dos que não eram providos de habilidades que os destacassem sequer poder-se-ia dizer que eram notados ou percebidos como algo além de meros objetos. Estes estavam sujeitos a desenvolver atividades rotineiras e entendiantes, que não transmitiam sentido algum para suas vidas sem objetivos maiores ou aspirações relevantes: “para fazer o mesmo trabalho, e para quem cada dia era o mesmo de ontem e de amanhã, e cada ano o equivalente do próximo e do anterior” (DICKENS, 2014, p. 37).


Este livro, que conta com a admiração de um gênio do quilate de G. K. Chesterton, é considerado pela crítica literária como um manifesto de protesto contra as consequências sociais e ambientais, as externalidades, resultantes dos avanços científicos e tecnológicos que em algum momento fugiram ao controle humano durante e imediatamente após a Revolução Industrial inglesa. Com a geração incessante de riquezas e a concentração destas em poucas mãos e a aparente produção de conforto para os indivíduos que não sabiam sequer que precisavam de todo aquele aparato (MATOS, 2007, p. 27).


Jean Valjean, um fugitivo das galés francesas, consagrado pela indústria do entretenimento por meio de filmes, musicais e peças de teatro, Fantine, uma prostituta desdentada, esfarrapada e doente e Cosette, uma órfã sem esperanças, são os personagens centrais da obra mais conhecida de Victor Hugo e que o imortalizou: Os Miseráveis. Publicado originalmente em 03 de abril de 1862 é parte do movimento conhecido como Romantismo. Nesta obra em particular Hugo utiliza-se de sua pena para efetuar uma análise introspectiva sobre as condições sociais da época em que se insere, interpretando de forma vigorosa e por vezes revolucionária, as transformações que as Revoluções Industrial e Francesa introduziram no corpo orgânico da sociedade francesa dos séculos XVIII e XIX e o decorrente e inevitável conflito de classes que começava a imergir e tomar força, sem deixar de demarcar sua posição de forma incisiva e inquestionável.

Uma chave hermenêutica à obra de Hugo é a confiança que tinha no homem e na sua imensa capacidade de transformar o meio em que habitava de forma positiva, tal confiança é patente nesta obra, mais do que em qualquer outra que tenha escrito. Valjean que esteve preso 17 anos por roubar um pão, suportou todos os suplícios imagináveis na pior das prisões francesas: as galés, sai do cativeiro de forma inusitada, como um farrapo humano e após uma experiência espiritual com um representante do clero que lhe demonstra imerecida bondade, se permite deixar para trás toda a carga negativa que se amoldou ao seu caráter durante o encarceramento e se torna um cidadão virtuoso, altruísta e de uma bondade infinita (HUGO, 2013).


Hugo seguindo a tendência romântica de sub-repticiamente defender ideias de fraternidade e liberdade leva o leitor a refletir sobre o envilecimento humano, causado principalmente pela onipotência do dinheiro e as muitas variáveis do nascente capitalismo: individualismo feroz, a usura bancária ou de indivíduos quase sempre inescrupulosos, desprezo pelo meio ambiente e pela natureza. Apresenta ainda de forma trágica, embora favorável, os últimos dias da Comuna de Paris, ato de suprema coragem de alguns manifestantes que defendiam ideias de igualdade no meio de uma desigualdade tão crescente (HUGO, 2013).


Outra obra que retrata de forma traumática essa época é Germinal do escritor francês Émile Zola, expoente do movimento naturalista que tem no visceral O Cortiço do maranhense Aluísio de Azevedo um correspondente brasileiro. Para escrevê-lo (originalmente publicado em 1885), Zola decidiu conhecer de perto as agruras dos trabalhadores das minas de extração de carvão e passou cerca de dois meses atuando como mineiro. Sua “encarnação” para familiarizar-se com o meio em que mais morriam do que viviam incluiu viver no mesmo lugar que os trabalhadores, onde comeu e bebeu nas mesmas tavernas.


Retratou de forma crua e realista as lutas diárias daqueles trabalhadores em busca da sobrevivência durante o Segundo Império francês: os baixos salários e a exploração trabalhista que os expunha a uma luta sem sucesso contra fome; as moradias inapropriadas até mesmo para animais; o calor inclemente dentro das minas e as constantes infiltrações que os obrigavam a trabalhar com os pés sempre úmidos; as péssimas condições de trabalho por conta da falta de estruturas sólidas e seguras; as doenças epidérmicas e respiratórias trazidas pelas atividades profissionais; os acidentes constantes que aleijavam aqueles que preferiam a morte como uma forma de libertação de uma realidade sem esperança, além da exploração sexista a que as mulheres estavam sujeitas, seja de ordem familiar, conjugal ou trabalhista (ZOLA, 2000).


Zola observou tudo isso enquanto empurrava um vagonete cheio de carvão, acompanhou ainda de perto a greve dos mineiros contra a opressão trabalhista, sob a orientação do movimento socialista que estava no nascedouro e se disseminava entre o proletariado. E a luta entre as ideias anarquistas e socialistas, tão em voga àquela época. Germinal que é o primeiro mês da primavera no calendário da Revolução Francesa utiliza-se das ideias, que serviam de sementes da revolução que possibilitaria uma transformação social, como uma metáfora. Por diversas razões é considerado um libelo cruento contra exploração que a revolução industrial causou na França (CHIAVENATO, 1995).


Outro modelo social sub-repticiamente substituiu este modelo da Sociedade Industrial, ainda que também tenha sofrido alterações profundas desde as últimas décadas do fim do século XX. O sociólogo alemão Ulrich Beck (2011) denominou este modelo de Sociedade de Risco que neste paradigma é menos catástrofe que antecipação da catástrofe. Seria um estágio da modernidade no qual começam a se concretizar as ameaças produzidas até então pela sociedade industrial. Um modelo que busca antever cenários futuros por meio de simulações no presente, tentando antecipar as prováveis catástrofes (quer sejam mudanças climáticas, êxodo de refugiados, escassez de alimentos, revoluções sociais e políticas, crises financeiras, guerras e litígios internacionais, conflitos étnicos e religiosos ou desastres ambientais) que podem surgir em decorrência dos modelos atuais de produção e consumo. De forma que políticas públicas e medidas econômicas possam ser estruturadas e implementadas e que contribuam efetivamente para que essas catástrofes sejam evitadas.

Este modelo é caracterizado como aquele no qual a elevação do nível de conforto e do bem-estar de cada indivíduo que vive em sociedade é propiciado pela constante inovação tecnológica [ou destruição criativa, no dizer do economista austríaco Joseph Schumpeter]. E tornou-se realidade no mesmo momento em que a modernização atingiu seu ápice de sucesso: avanços tecnológicos, sociais, culturais, científicos ou econômicos. Porém, este sucesso intrinsecamente também permitiu o surgimento de aspectos causadores de consequências negativas, visto que criam um ciclo que escapa ao controle humano, são denominados de efeitos colaterais indesejados do processo de modernização. Quando esta sociedade se dá conta dos riscos a que está exposta estabelece uma necessidade premente de precaução e segurança ao mesmo tempo que, obrigatoriamente impõem uma “lógica do risco”, gerando uma crise de legitimidade nas instituições da Modernidade, pois se instala um estado constante de indeterminação e insegurança (BAHIA, 2012; BECK, 2011).

Esta Sociedade está em constante perigo de sofrer catástrofes de diversas ordens devido à evolução técnica constante da fase anterior, também conhecida por “modernidade simples”. E este perigo e risco a que esta sociedade é vulnerável e está submetida é causado pela própria sociedade global e globalizada que toma decisões por intermédio de alguns dos seus membros no manejo dos avanços tecnológicos, industriais, biológicos, sociais, políticos, culturais, científicos, econômicos, genéticos, de energia nuclear, etc., numa ação reflexiva: sendo ela a causadora dos efeitos que lhe atinge, daí este modelo também ser denominado como “modernização reflexiva” (GIDDENS; LASH; BECK, 2012).


A Sociedade do Risco é pródiga em gerar incessantemente riquezas, com a mesma voracidade com que produz socialmente riscos globalizados que atingem indiscriminadamente as condições básicas de todas as nações do planeta. Estes riscos de procedência antrópica são porém, indeterminados do ponto de vista do binômio espaço-tempo, o que contribui para que a comprovação dos danos se torne quase impossível, bem como o nexo de causalidade, fator imprescindível para que um fato antecedente seja vinculado a um resultado danoso (BAHIA, 2012, p.61).


Esta sociedade de risco deverá trilhar dois caminhos da mesma importância: nenhuma nação deverá tentar resolver seus problemas sozinha, visto que os efeitos colaterais são globais; abrir espaço para discussão de ordem moral e política que facilite o surgimento de uma cultura amadurecida e que tendo consciência do risco global, proporcione meios para a criação de espaços alternativos que façam surgir um movimento civil de responsabilidade globalizada. Que supere de forma eficiente o que Beck (2011, p. 75) chama de “irresponsabilidade organizada”, aquela contradição que enfrenta a sociedade de risco diante de uma degradação ambiental ao não ter instrumentos efetivos que lhe permita responsabilizar indivíduos ou instituições pelo dano causado (BAHIA, 2012, p. 60).


A Responsabilidade Compartilhada pelo Ciclo de Vida do Produto, um princípio-mor da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) instituída pela Lei 12.305 de 02 de agosto de 2010 e regulamentada pelo Decreto 7.404 de 23 de dezembro de 2010, é uma tentativa de minimizar esta “irresponsabilidade organizada” e propiciar a criação de uma cultura de responsabilização dos riscos e dos danos causados ao meio ambiente, com a obrigatoriedade da criação de sistemas de logística reversa que garantam o retorno efetivo e satisfatório dos resíduos de produtos de pós-venda ou pós-consumo e suas respectivas embalagens ao ciclo produtivo, ao ciclo de negócios ou recebam a destinação final de forma ambientalmente adequada.

[Introdução da dissertação defendida no Programa de Mestrado da Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável na Faculdade da Ciência da Administração de Pernambuco da Universidade de Pernambuco (UPE)]