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Por que não sou cristão


Como afirmou o vosso presidente, o tema que irei versar esta noite é Por que não sou cristão1. Convém, de início, procurar estabelecer o que se entende pela palavra cristão. Ela é usada nos nossos dias num sentido vago por um grande número de pessoas. Alguns aplicam-na a todo aquele que procura levar uma vida virtuosa. Nesse sentido, suponho que se encontrariam cristãos em todas as seitas e em todas as crenças, razão por que penso que não constitua o melhor significado para essa palavra, pois implicaria que todas as pessoas que não são cristãs — budistas, maometanas, confucionistas e outras — não pudessem levar uma vida virtuosa.

Não entendo por cristão quem procura viver de modo convincente e de harmonia com a razão. Penso que é necessária uma certa dose de determinada crença antes de ter o direito de se intitular cristão. De qualquer modo, a palavra não tem o rico sentido que possuía no tempo de Santo Agostinho e de S. Tomás de Aquino. Nessas épocas, se alguém se confessava cristão sabia-se o que isso significava. Aceitava-se todo um conjunto de crenças estabelecidas com grande precisão e a todas as palavras dessas crenças se associava uma fé inabalável.

O que é um cristão?
Nos nossos dias não se passa o mesmo. É necessário ser-se um pouco mais vago no significado de “cristão”. Julgo, no entanto, que existem dois pontos necessários para todo aquele que se proclama como tal. O primeiro é de natureza dogmática — ou seja, que se deve acreditar em Deus e na imortalidade. A não acreditar nesses dois princípios, penso que ninguém se poderá proclamar cristão. Depois, como o nome implica, deverá possuir-se a crença da existência de Cristo. Os maometanos, por exemplo, crêem igualmente em Deus e na imortalidade, e no entanto não se proclamam cristãos. Dever-se-á ter como base fundamental a crença de que Cristo, a não ser de essência divina, é pelo menos o melhor e o mais sábio dos homens. Se não possuís, no mínimo, esta crença na existência de Cristo, não creio que tenhais o direito de vos intitulardes cristãos.

Sem dúvida, existe outro sentido que se pode encontrar no Whitaker’s Almanack ou nos livros de geografia, onde se declara que a população do globo se divide em cristãos, maometanos, budistas, adoradores de fetiches, etc.; e nesse sentido todos seremos cristãos. Os tratados de geografia englobam-nos a todos, mas esse é um critério puramente geográfico que, suponho, não deve ser considerado. De onde concluo que, quando pretendo expor por que não sou cristão, devo ater-me a outras duas ordens de razões: primeira, por que não creio em Deus e na imortalidade; segunda, por que não penso que Cristo tenha sido o melhor e mais sábio dos homens, ainda que lhe reconheça um grau elevado de virtude moral.

Sem os frutuosos esforços dos cépticos do passado, não me seria possível dar uma definição tão elástica de cristão. Como já afirmei, antigamente esta palavra possuía um sentido mais rico. Incluía, por exemplo, a crença no Inferno. A crença num fogo infernal, eterno, foi um princípio essencial da fé cristã até uma época relativamente recente. No nosso país, como deveis saber, deixou de constituir um princípio essencial depois da decisão do Privy Council, que os Arcebispos de Canterbury e de York não reconheceram; mas como no nosso país a religião é determinada pela lei do Parlamento, o Privy Council pôde sobrepor-se à opinião dos Arcebispos. Assim, a crença no Inferno deixou de ser necessária para se ser cristão, razão por que não insistirei nela.

A existência de Deus
Abordar a questão da existência de Deus, eis uma grande e séria questão, e se me determinasse tratá-la de modo adequado, seria necessário reter-vos aqui até à chegada do reino de Deus. Por isso, espero que me desculpareis por a tratar de um modo um tanto sumário. Sabeis, naturalmente, que a igreja católica erigiu em dogma que a existência de Deus pode ser demonstrada pela via racional. É um dogma assaz curioso mas não deixa de o ser. Tornou-se necessário introduzi-lo porque em determinado momento os livre-pensadores adoptaram o hábito de declarar que existiam este e aquele argumentos racionais contra a existência de Deus e que a aceitação dessa existência era matéria de fé. Os argumentos e as razões foram expostos minuciosamente e a igreja católica entendeu que lhes devia pôr um ponto final. E adoptou mais esse princípio de que a existência de Deus pode ser demonstrada pela simples via racional, e ela própria estabeleceu o que considerava como argumentos dessa prova. São sem dúvida bastantes, mas contentar-me-ei em invocar alguns.

O argumento da causa primeira
O argumento da causa primeira é talvez o mais simples e o de mais fácil compreensão. (Mantém que tudo o que existe no mundo tem uma causa, e que percorrendo a cadeia de causas se chegará fatalmente à causa primeira, a que se dá o nome de Deus). Este argumento, suponho, não pesa demasiado na nossa época, porque, entretanto, a noção decausa não é a mesma de outrora. Os filósofos e cientistas têm estudado esse conceito e ele não possui actualmente a força que se lhe atribuía; mas, no entanto, podereis verificar que oargumento da causa primeira é daqueles que não possui qualquer validade. Devo dizer-vos que, quando era jovem e debatia estes problemas muito seriamente comigo próprio, aceitei por largo tempo o argumento da causa primeira, até que um dia, pelos meus dezoito anos, lendo a Autobiografia de Stuart Mill, descobri esta frase: “Meu pai ensinou-me que a pergunta “Quem me criou?” não comporta qualquer resposta porque levantaria imediatamente outra interrogação: “Quem criou Deus?” Esta frase tão simples revelou-me, como ainda creio, a falácia do argumento da causa primeira. Se tudo tem de ter uma causa também Deus tem de a possuir; e se algo existe sem causa tanto pode ser o mundo como Deus — razão da inutilidade desse argumento. Ocorre-me a história do indiano que afirmava estar o mundo assente num elefante e este sobre uma tartaruga; e quando se pergunta: “E a tartaruga?” o indiano responde: “E se mudássemos de assunto?” Na verdade o argumento não tem mais valor do que este.

Não há razão para que o mundo não tenha nascido sem causa; nem, além disso, e por outro lado, que não tenha existido sempre. A ideia de que as coisas têm de ter um começo é uma opinião resultante da pobreza da nossa imaginação. Assim não me parece necessário ocupar mais tempo com o argumento da causa primeira.

O argumento da lei natural
A seguir, há o argumento muito conhecido da lei natural. Foi um argumento muito em voga ao longo do século XVIII, especialmente devido à influência de Isaac Newton e da sua cosmogonia. Observavam-se os planetas que giram à volta do Sol segundo a lei da gravitação, e pensava-se que Deus tinha dado ordem para se movimentarem nessa trajectória, razão por que a efectuavam. Essa era, naturalmente, uma explicação fácil e simples que evitava o trabalho de procurar uma explicação para a lei da gravitação.

Actualmente, explicamos a lei da gravitação de um modo um pouco mais complicado, de harmonia com o que Einstein nos ensinou. Não me proponho fazer uma conferência sobre a interpretação einsteiniana dessa lei porque nos ocuparia bastante tempo; em todo o caso, já se não aceita essa espécie de lei natural que fazia parte do sistema newtoniano, onde, por uma razão que se compreendia, a natureza se comportava de modo uniforme. Muitas coisas que considerávamos como leis naturais são actualmente demonstradas como constituindo puras convenções humanas. Sabeis que mesmo no mais longínquo ponto do espaço sideral uma jarda é igual a três pés. É, sem dúvida, um facto importante mas que dificilmente poderá ser classificado como lei da natureza. E quantas coisas mais, tidas como leis da natureza, são do mesmo género?

Por outro lado, até onde chega o nosso conhecimento real sobre os átomos, descobris que eles se encontram muito menos submetidos a leis do que se pensava, e que as leis estabelecidas são apenas médias estatísticas que lembram justamente aquelas que dependem do acaso. Existe, e todos nós a conhecemos, uma lei segundo a qual, no lançamento de dados, o doble de seis sai apenas uma vez sobre trinta e seis, sem que se conceba esse facto como prova de que essa combinação obedeça a qualquer projecto; ao contrário, se o doble de seis saísse sempre é que pensaríamos que se tratava de coisa determinada! A maior parte das leis da natureza são desse género. São médias estatísticas como aquelas leis que dependem do acaso, o que transforma todo este assunto das leis naturais numa coisa menos extraordinária do que anteriormente se pensava.

Além desta verificação, demonstrativa do carácter epocal da ciência, susceptível de mudança de rumo, a própria ideia segundo a qual as leis da natureza implicam um legislador, resulta duma confusão entre a chamada lei natural e a lei humana. Esta, ordena que vos conduzais de certo modo, embora possais conformar-vos com isso ou adoptar não o fazer; mas as leis naturais são uma descrição do modo como a realidade efectivamente se comporta, e pelo facto de serem uma simples descrição da sua acção real não torna necessário sustentar que tem de existir alguém que imponha essa prescrição. A ser necessário isso, teríamos então de responder à seguinte interrogação: Qual a razão por que Deus prescreveu precisamente estas leis naturais e não outras? Se dizeis que Ele assim fez porque quis, sem qualquer razão, passareis então a admitir que existe alguma coisa não submetida a leis, rompendo-se, então, o vosso encadeamento de leis naturais. Mas se afirmais, como o fazem os teólogos ortodoxos, que em todas as leis feitas por Ele havia uma razão para impor estas e não outras — razão que seria naturalmente a de criar o melhor dos mundos, ainda que isso nos pareça duvidoso — concluiremos, então, que há uma causa para as leis impostas por Deus. E Deus teria sido Ele próprio submetido a uma lei, não havendo qualquer vantagem em o ter introduzido como intermediário. Ter-se-á estabelecido uma lei exterior e anterior às ordens divinas, pelo que Deus não serve os propósitos de primeiro legislador. Em resumo: o argumento de lei natural não é tão consistente quanto se pretendia. Estou a tentar seguir uma ordem cronológica na revisão dos argumentos a favor da existência de Deus, dado que estes têm mudado de harmonia com os tempos. Foram de início argumentos difíceis, intelectuais, comportando determinados sofismas. A medida que nos aproximamos da época actual, tornam-se intelectualmente menos respeitáveis e cada vez mais afectados por uma espécie de imprecisão moralizante.

O argumento do plano ou argumento teleológico
O degrau seguinte desta exposição leva-nos ao argumento do plano. Conheceis esse argumento: tudo no mundo está disposto de modo a nele podermos viver, e se o mundo fosse diferente, ainda que ligeiramente, não seria possível essa existência. Tal é o argumento do plano ou argumento teleológico. Ele assume por vezes uma forma bastante curiosa; por exemplo, sustenta-se que os coelhos têm a cauda branca para facilmente serem descobertos pelo caçador. Não sei o que os coelhos pensariam desta aplicação do argumento. Conheceis aquela reflexão de Voltaire de que o nariz foi visivelmente concebido de forma a poder segurar os óculos. Este género de paródia não estava longe do alvo, tanto quanto se podia pensar no século XVIII, porque depois de Darwin sabemos melhor por que os seres vivos se adaptam ao mundo que os cerca. Não foi o meio ambiente criado para se adaptar a eles, mas sim os seres que evoluíram de modo a ele se adaptarem — este, o fundamento da adaptação. A prova do plano não tem aplicação neste caso.

Quando se examina de perto este argumento do plano, é surpreendente verificar-se que alguém possa acreditar que este mundo, com tudo aquilo que encerra, com os seus defeitos, tenha de ser o melhor que um ser omnipotente e omnisciente tenha podido criar ao longo de milhões de anos. Não o posso aceitar. Imaginai que sois omnipotentes e omniscientes e vos são dados milhões de anos para aperfeiçoar o mundo — não vos seria possível criar nada de melhor do que a Ku-Klux-Klan ou o Fascismo? Além disso, se aceitais as leis ordinárias da ciência, deveis supor que a vida do homem, e a vida em geral, desaparecerá em devido tempo em todo este planeta: é uma etapa do declínio do sistema solar. Numa determinada fase do declínio, chegar-se-á a um conjunto de condições de temperatura e outras, inadequadas ao protoplasma e haverá vida por pouco tempo em todo o sistema solar. Vê-se na Lua o exemplo do que acontecerá na Terra — uma coisa morta, fria, desértica.

Dir-se-á que esta opinião é deprimente e que as pessoas seriam incapazes de continuar a viver se dela participassem. Não acredito nisso; é uma pura tolice. Ninguém se preocupará verdadeiramente pelo que acontecerá daqui a milhões de anos. Mesmo que o afirmem, enganam-se a si próprias. As razões dos seus cuidados são mais imediatas, ou resultam simplesmente duma má digestão; na verdade, ninguém ficará seriamente preocupado ao pensar num acontecimento que se produzirá neste mundo daqui a milhões e milhões de anos. Por isso, ainda que seja lúgubre supor-se que a vida desaparecerá — suponho que se possa dizer isso, ainda que por vezes, quando considero o que as pessoas fazem da sua vida, chegue a pensar que isso constitui uma consolação — esse sentimento não é suficiente para tornar a vida miserável. Simplesmente, obriga a nossa atenção a voltar-se para outros assuntos.

O argumento moral a favor da divindade
Abordamos mais uma etapa daquilo a que poderia chamar o rebaixamento intelectual que os deístas mostraram nos seus argumentos e chegamos agora ao capítulo dos chamados argumentos intelectuais a favor da existência de Deus. Sabeis, naturalmente, que existem três argumentos intelectuais a favor da existência de Deus e que todos foram refutados por Kant na Crítica da Razão Pura; mas logo que os refutou inventou um novo, um argumento moral que acreditou ser inabalável. Agiu como muitos outros: no domínio da inteligência era um céptico, mas no campo da moral acreditou implicitamente em máximas que tinha bebido com o leite materno. O que ilustra uma particularidade a que os psicanalistas atribuem tanta importância: a influência exercida sobre nós pelas recordações da primeira infância é extraordinariamente mais forte do que as recordações mais recentes.

Kant, como disse, inventou um novo argumento moral a favor da existência de Deus que, sob formas diferentes foi extremamente usado ao longo do século XIX. Teve toda a espécie de formas. Uma delas consistia em afirmar que não haveria o mal ou o bem se Deus não existisse. De momento, não importa a questão de saber se há alguma diferença entre obem e o mal, ou se não existe: este é outro problema. O que me interessa agora é que, a existir essa diferença, sereis colocados perante uma nova questão: essa distinção será ou não devida a um decreto de Deus? No caso afirmativo não haverá, para Deus, qualquer distinção entre o bem e o mal e, nesse caso, não constituirá declaração sensata o afirmar-se que Deus é bom. Se dizeis como os teólogos que Deus é bom, torna-se necessário que obem e o mal tenham uma significação independente dum decreto de Deus, porque as leis de Deus serão boas e não más, independentemente do facto de serem ditadas por Ele. A ser assim, declarais implicitamente que não é pela intervenção de Deus que existem o bem e o mal, mas que as suas essências são logicamente anteriores a Deus. Podeis, sem dúvida, se o desejardes, afirmar que existe uma divindade superior que impôs ordens ao Deus que criou o mundo ou, seguindo o exemplo dos gnósticos2 — partido que muitas vezes tenho considerado como bastante plausível — afirmar que o mundo, tal e qual o conhecemos, foi criado por um demônio num momento em que Deus estava distraído. Isto poderia ser discutido longamente mas não estou interessado em refutar tal ponto de vista.

O argumento da reparação da injustiça
Existe ainda outra forma muito curiosa do argumento moral, que é: a existência de Deus é necessária para introduzir a justiça neste mundo. Nesta parte do universo que conhecemos reina uma grande injustiça: quantas vezes sofre o justo, prospera o mau, e mal se sabe qual destes dois casos é o mais perturbador; mas, se se pretende que a justiça reine no conjunto do universo, é necessário supor uma vida futura capaz de estabelecer o equilíbrio da existência cá na Terra. Portanto, diz-se, é necessário que exista um Deus, um paraíso e um inferno para que reine a justiça. É um argumento muito curioso. Se o considero dum ponto de vista científico, direi: “Afinal de contas, apenas conheço este mundo. Nada sei do resto do universo, mas na medida em que me é permitido raciocinar com base em probabilidades, direi que este mundo constitui um belo exemplo e que, se a injustiça reina nele, é quase certo que a injustiça reinará igualmente nos outros”. Suponhamos que recebeis um cabaz de laranjas e, ao abri-las, descobris que as de cima estão apodrecidas. Por certo que não direis: “Debaixo devem estar sãs para que o equilíbrio seja restabelecido”, mas sim: “É provável que tudo esteja estragado”. É exactamente assim que raciocinaria um cientista em face do universo. Diria: “Verificamos neste mundo uma quantidade de injustiças e essa é uma razão para se supor que a justiça o não governa; e, consequentemente, tanto quanto compreendo, isso constitui um argumento contra uma divindade e não a seu favor”. Sem dúvida, sei que este género de argumentos intelectuais não convence realmente as pessoas. O que as persuade a acreditar em Deus não é um argumento intelectual mas, geralmente, acredita-se porque se criou o hábito de o fazer desde criança.

E penso que a razão que imediatamente se segue é o desejo de segurança, uma espécie de aspiração à existência de um irmão mais velho que olhe por nós. Isto desempenha um papel muito profundo e leva as pessoas a desejarem acreditar em Deus.

A personalidade de Cristo
Desejo agora dizer algumas palavras sobre um assunto que penso não ter sido tratado convenientemente pelos racionalistas. É o problema de saber se Cristo foi o melhor e o mais sábio dos homens. Geralmente admite-se que todos devemos estar de acordo com isso. Pela minha parte não o admito, embora existam muitos aspectos sobre os quais estou de acordo com Cristo e talvez em maior número do que os praticantes cristãos. Penso que não poderei segui-lo em tudo mas irei mais longe do que a maior parte dos cristãos. Recordais que Ele disse: “Tendes ouvido dizer: olho por olho e dente por dente. Eu porém digo-vos que não resistais ao que vos fizer mal; mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra”.3 Este não é um preceito ou um princípio novo. Foi usado por Lao-Tsé4 e Buda uns cinco ou seis séculos antes de Cristo, embora não seja um princípio a que os cristãos se submetam verdadeiramente. Não duvido que o actual primeiro-ministro5, por exemplo, seja um cristão muito sincero, mas não aconselho nenhum dos presentes a dar-lhe uma bofetada. Estou certo que descobriria que ele apenas atribui a esse texto um significado simbólico.

Há uma outra máxima que tenho como excelente. Recordais que Cristo disse: “Não queirais julgar, para não serdes julgados”6. Não acredito que encontreis este princípio nos tribunais das nações cristãs. Cristo disse também: “Dá a quem te pede e não te esquives ao que te pede emprestado”7. É um bom princípio.

O nosso Presidente lembrou que não estamos aqui para falar de política, mas não posso deixar de observar a luta das últimas eleições gerais.

Há igualmente uma outra máxima de Cristo que me parece importante, mas que julgo não estar muito em voga entre os nossos amigos cristãos. Diz o seguinte: “Se queres ser perfeito, vende os teus bens, e dá-os aos pobres”8. Eis uma excelente máxima mas que não é muito praticada! Todas são, ao que penso, excelentes — ainda que seja bem difícil viver de acordo com elas. Não pretendo segui-las, mas no fim de contas o caso é diferente para um cristão.

Imperfeições nos ensinamentos de Cristo
Depois de ter reconhecido a excelência dessas máximas, vejamos outros textos onde se não manifesta a extraordinária sabedoria e suprema bondade que os Evangelhos atribuem a Cristo, omissão feita ao problema da historicidade do personagem. Com efeito, é muito duvidoso que Cristo tenha existido e, se existiu, nada podemos afirmar da sua vida como certo, razão por que não estou interessado nessa difícil questão histórica. Reporto-me apenas ao Cristo tal qual aparece nos Evangelhos e aceito estes como nos são apresentados — e lá descobriremos afirmações que não nos parecem de grande sabedoria.

Entre outras coisas, Cristo pensava que o seu segundo advento se efectuaria entre nuvens de glória e ainda durante a vida dos seus contemporâneos. Existem inúmeros textos que o atestam. Diz ele, por exemplo: “Não acabareis de percorrer as cidades de Israel, sem que o Filho do homem tenha chegado”9. E adiante afirma: “Muitos dos que aqui estão não conhecerão a morte sem que vejam o Filho do homem voltar na majestade do seu reino”10. Há muitas outras passagens onde é bem evidente que acreditou num segundo advento ainda em vida daqueles que o escutavam. De resto, essa era a crença dos seus primeiros discípulos e constituía a base de uma grande parte dos seus ensinamentos morais. Quando diz: “Não vos inquieteis com o dia de amanhã”11, e outras palavras do mesmo género, é porque tinha para breve esse segundo advento e, portanto, decretava o desinteresse pelos negócios terrenos. Conheci um padre que assustou as suas ovelhas ao afirmar que esse advento estaria eminente, mas sentiram-se mais confortadas quando o viram plantar árvores no seu jardim. Os primeiros cristãos, porque tomavam à letra este género de oráculos, abstiveram-se evidentemente de tais iniciativas porque Cristo os tinha persuadido de que era eminente essa segunda vinda.

O problema moral
Vamos versar agora os problemas morais. Quanto a mim há um sério defeito na moral de Cristo, que é a sua crença no inferno. Não posso admitir que uma pessoa profundamente humana possa acreditar num castigo eterno.

Ora Cristo, tal como o descrevem os Evangelhos, acreditava nesse castigo e descobrem-se muitas frases que testemunham um furor vingativo contra aqueles que não aceitavam a sua doutrina — atitude que pode estar de harmonia com um pregador mas que prejudicará a reputação dum ser a quem se atribui uma perfeição extraordinária. Se comparardes Jesus a Sócrates, por exemplo, verificareis que o filósofo era suave e cortês para quem se recusava a escutá-lo. Ao que penso, é muito mais próprio dum sage adoptar essa linha de conduta do que deixar-se dominar pela indignação. Recordem-se as palavras de Sócrates no momento da sua morte e aquelas que correntemente dirigia aos que estavam em desacordo consigo.

Nos Evangelhos ouvireis Cristo exprimir-se deste modo: “Serpentes, raça de víboras, como podereis escapar ao castigo do inferno?”12 Isto era dirigido às pessoas que não apreciavam as suas palavras. Infelizmente, são muitas as imprecações do mesmo estilo, no que se refere ao inferno, nesses textos sagrados. Especialmente, cito aquele que se aplica ao pecado cometido contra o Espírito Santo: “Todo aquele que fala contra o Espírito Santo, não terá perdão neste mundo ou no outro”13. Este texto tem provocado no mundo um número indizível de tormentos. Não aceito que um ser possuindo um grama de bondade natural fosse capaz de instaurar no mundo crenças e terrores deste gênero.

Cristo diz ainda: “O Filho do homem enviará os seus anjos que arrancarão do seu reino todos os escândalos e aqueles que cometerem o mal, lançando-os na fornalha de fogo, onde haverá choros e ranger de dentes”14. E obstina-se em falar de choros e ranger de dentes, versículo após versículo, parecendo evidente aos leitores que Cristo considerava tudo isso sem qualquer desgosto. Se tal não correspondesse à verdade, essas palavras não apareceriam tantas vezes. Por certo que estais recordados do episódio das ovelhas e das cabras. Aquando o segundo advento, Jesus separará as ovelhas das cabras e dirá a estas: “Afastai-vos de mim, malditas, e ide para o fogo eterno”15. E prossegue: “Se o teu pé é para ti uma oportunidade de pecado, corta-o; porque é melhor entrares na vida eterna coxo, do que, tendo os dois pés, seres lançado no fogo do inferno, o fogo que nunca será extinto; onde os vermes não morrem e o fogo jamais é extinto”16.

As repetições não cessam. Devo dizer que considero toda esta doutrina, segundo a qual o fogo do inferno é a punição do pecado, como a doutrina da crueldade, doutrina que introduziu a crueldade no mundo e tem justificado séculos de torturas. O Cristo dos Evangelhos, tal como os seus Apóstolos o apresentam, deve ser considerado como parcialmente responsável por esses acontecimentos.

Entre outros casos de menor importância há o dos porcos de Gadarena. Não é das atitudes mais gentis introduzir demônios nestes animais e fazê-los precipitar no mar, do alto de uma colina17. Não era Jesus todo-poderoso e não podia simplesmente afastar os demônios? Mas preferiu alojá-los nos porcos.

Há também a curiosa história da figueira que não tem deixado de me intrigar. Sabeis o que aconteceu com a figueira. “E, ao outro dia, como saíssem de Bethânia, teve fome; e vendo ao longe uma figueira coberta de folhas avançou para ver se encontrava algum fruto. Aproximou-se então da árvore mas encontrou apenas folhas porque não era ainda a estação dos figos. E Jesus disse então para ela: que jamais alguém coma do teu fruto... e Pedro disse para Jesus: Mestre, olhai! A figueira que haveis amaldiçoado secou”18.

Esta é uma história muito curiosa, visto não ser a época própria dos figos e não ser possível responsabilizá-la. Penso que em matéria de sabedoria ou de virtude, Cristo não está tão alto como outras figuras históricas. Nesses aspectos colocarei acima dele Buda ou Sócrates.

O factor emocional
Como já disse, não acredito que o motivo que leva as pessoas a aceitar uma religião tenha alguma coisa a ver com o raciocínio. Aceitam uma religião por motivos emocionais. Afirma-se muitas vezes que é prejudicial atacar uma religião, porque ela torna os homens virtuosos. Confesso que não estou convencido disso. Conheceis, por certo, a paródia que Samuel Butler fez deste argumento no seu livro Erewhon Revisited19]. Estais recordados de que um certo Higgs chegou a uma remota região onde passa algum tempo e depois se escapa num balão. Vinte anos depois, tendo aí regressado, ficou surpreendido ao deparar com um novo culto no qual ele próprio era adorado sob o nome de Filho do Sol. Recorde-se que, com efeito, ele subiu aos céus. Estava para breve a celebração da Festa da Ascensão, quando ouviu os prosélitos Hanky e Panky, altos dignitários da religião dos Filhos do Sol, confidenciar um ao outro que nunca tinham visto o chamado Higgs e que esperavam que jamais isso acontecesse. Cheio de indignação, aproximou-se e disse-lhes: “Vou esclarecer neste dia toda esta mistificação e dizer ao povo de Erewhon que eu, Higgs, sou apenas um homem como os outros e que, simplesmente, me servi dum balão para deixar o vosso país”. Responderam-lhe: “Não faças isso, porque todos os princípios morais deste povo estão ligados a esse mito, e se souberem que não subiste ao céu, transformar-se-ão todos em malfeitores”. Persuadido, abandonou o país silenciosamente.

Em face desse preceito, seremos todos pecadores se não observarmos os mandamentos da religião cristã. Parece-me que o povo que se sente seguro das suas crenças se torna muito mais perverso. Facto curioso: quanto mais fervorosa foi a religião numa determinada época e mais profundo o dogmatismo, tanto maior foi a crueldade e pior o estado do mundo. Nos séculos em que a fé foi mais viva e em que os homens aceitaram a religião cristã na sua integridade, tivemos a Inquisição e as torturas. Penso nos milhões de mulheres queimadas como sacrílegas e em todos os horrores de que a religião foi o pretexto.

Basta relembrar a história mundial para nos apercebermos que o progresso, em todos os domínios (humanização da guerra, brandura na escravatura, comportamento para com as pessoas de cor), foi constantemente contrariado pela oposição das igrejas, quaisquer que sejam. Eu afirmo, pesando bem as minhas palavras, que a religião cristã, tal qual é estabelecida nas suas igrejas, foi e continua a ser a principal inimiga do progresso moral do mundo.

Como as igrejas têm retardado o progresso
Pode ser que penseis que sou demasiado ousado quando faço essa afirmação. Julgo que não. Tomemos um exemplo. Não será agradável referi-lo mas a atitude das pessoas religiosas obriga-nos a isso. Suponhamos que, neste mundo em que hoje vivemos, uma adolescente sem experiência se casa, sem o saber, com um sifilítico. Neste caso, a igreja proclama: “O casamento é um sacramento indissolúvel; obriga-vos a manter a união para toda a vida”. E esta mulher nada pode fazer para impedir que dela nasçam crianças sifilíticas. Tal é o ponto de vista da igreja católica. Ninguém poderá sustentar, a menos que tenha o coração absolutamente fechado ao sofrimento dos outros, que seja conveniente e justo que um tal estado de coisas se deva perpetuar.

Isto não é mais do que um exemplo. Existem ainda muitos outros domínios onde a Igreja, pelo controlo que exerce sobre aquilo a que lhe apraz chamar moralidade, impõe gratuitamente sofrimentos inúteis a um grande número de seres humanos. E sem dúvida, sabemo-lo, manifesta-se como adversária de todo o progresso quando se trata de diminuir o sofrimento neste mundo. Sob o nome de moralidade, etiquetou uma série de regras de conduta que brilham pela sua estreiteza e que nada têm a ver com a felicidade do homem; e quando se diz que é necessário fazer isto ou aquilo em vista à felicidade da humanidade, ela responde que nada tem a ver com o assunto: “A finalidade da moral não é a felicidade das pessoas”.

O temor, base da religião
A religião é fundamentada primeiramente e sobretudo no temor. Por um lado é o terror perante o desconhecido, por outro o desejo de sentir uma espécie de irmão mais velho que esteja ao nosso lado quando nos sentimos receosos ou em dificuldades. O temor é a base deste problema — temor do misterioso, temor do malogro, temor da morte. E o temor engendra a crueldade, razão por que a vemos de mãos dadas com a religião. O temor está na base de uma e de outra. Neste mundo, começamos a compreender as coisas, a dominá-las um pouco com a ajuda da ciência — que vai abrindo caminho pouco a pouco apesar da oposição da religião cristã, das igrejas em geral e de todas as superstições. A ciência pode ajudar-nos a vencer esse covarde terror em que a humanidade tem vivido durante tantas gerações; a ciência pode ensinar-nos, e penso que o nosso próprio coração nos pode também ajudar, a não mais procurar apoios imaginários à nossa volta, a não mais forjar aliados nos céus, mas a concentrar todos os nossos esforços aqui na terra, a fim de fazer deste mundo um lugar onde se possa viver agradavelmente, ao contrário do que têm feito todas as igrejas ao longo dos séculos.

O que devemos fazer
Devemo-nos manter de pé com os nossos próprios meios e olhar francamente para o mundo — ver os seus aspectos bons, seus aspectos maus, suas belezas e suas fealdades; olhar para o mundo tal qual ele é, sem pavor. Conquistar o mundo pela inteligência e não nos deixarmos subjugar como escravos do terror. Todo o conceito de Deus é tirado do velho despotismo oriental. É uma concepção absolutamente indigna de homens livres. Quando sei de pessoas que se curvam nas igrejas confessando-se miseráveis pecadoras, e tudo o mais, tenho isso como desprezível, incompatível com o respeito que devemos a nós próprios. Devemos, ao contrário, olhar o mundo francamente e no seu rosto. Devemos melhorar este mundo e, se ele não é tão bom quanto desejávamos, que ele seja melhor do que o construído no passado pelos outros. Um mundo à nossa medida exige saber, bondade e coragem; não exige uma intensa nostalgia do passado, nem o acorrentar da livre inteligência aos entraves impostos pelas fórmulas que os antigos ignorantes inventaram. O que uma perspectiva do futuro desligada do terror exige é uma visão clara das realidades. O que exige a esperança no futuro não é o refluxo constante a um passado morto, que, estamos certos, será em muito ultrapassado pelo futuro que a nossa inteligência é capaz de criar.

Bertrand Russell
Retirado de Por que não sou cristão (Brasília Editora, Porto, s.d.), pp. 11-32.
Tradução de Mário Alves e Gaspar Barbosa
Fonte: http://criticanarede.com/brussellporquenaosoucristao.html
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Notas
1- Esta conferência foi pronunciada em 6 de Março de 1927, na Câmara Municipal de Battersea, sob os auspícios da South London Branch of the National Secular Society.
2- Movimento herético que se estendeu ao cristianismo, logo no seu primeiro século. De “gnôsis” (conhecimento), afirma a possibilidade de os seus discípulos conhecerem os ensinamentos secretos de Jesus (N. do T.).
3- S. Mateus, V, 38 e 39. (N. do T.)
4 -Controverso primeiro chefe do movimento taoísta na China, século VI antes de Cristo. (N. do T.)
Stanley Baldwin.
5- S. Mateus, VII, 1. (N. do T.)
6- Ibid., V, 21. (N. do T.)
7- S. Mateus, XIX, 21. (N. do T.)
8- Ibid., X, 23. (N. do T.)
9- Ibid., XVI. 28. (N. do T.)
10- S. Mateus, VI, 34. (N. do T.)
11- S. Mateus, XXIII, 33. (N. do T.)
12- Ibid., XII, 32. (N. do T.)
13- Ibid., XIII, 41-42. (N. do T.)
14- S. Mateus, XXV, 41. (N. do T.)
15- S. Marcos, IX, 44 e 45. (N. do T.)
16- Referência ao episódio narrado em S. Marcos. V, 1 a 20. (N. do T.)
17- S. Marcos, X1, 12 a 21. (N. do T.)
18- Regresso a Erewhon. (N. do T.)

    Por que sou anarquista

    Trecho da obra “The Conscience of an Anarchist: Why It’s Time to Say Goodbye to the State and Build a Free Society” (Cobden Press, 2011) de Gary Chartier.



    Sou anarquista porque acredito que não existe um direito natural a governar. Acredito que as pessoas são iguais essencialmente em dignidade e valor, o que significa, por sua vez, que possuem igual status moral. Isso torna difícil justificar a outorga a alguns – os que governam no Estado e os que fazem cumprir as decisões dos governantes – de direitos que outros não possuem. E sou anarquista porque acredito que o Estado carece de legitimidade. Alguns argumentam que os governantes merecem ter mais direitos que aqueles que são governados porque seus “súditos” consentiram e continuam consentindo com sua autoridade. Porém, acredito que isso não foi feito.

    Sou anarquista porque acredito que o Estado é desnecessário. Os estatistas frequentemente sustentam que a única forma de manter uma sociedade em paz é com o Estado. Eu estou em desacordo, tanto nos fundamentos teóricos como empíricos. Acredito que as instituições não-estatais podem oferecer os serviços que o Estado provê – mas de maneira eficiente e flexível; e há fortes evidências de que são capazes de fazê-lo. Além do mais, acredito que se o Estado tem o poder de fazer coisa boas, inclusive coisas muito boas, muito úteis e muito importantes, usará esse poder quase inevitavelmente de forma autoritária: usará o poder que tem para regular a vida das pessoas – inclusive para adquirir mais poder.

    Sou anarquista porque o Estado inclina a balança a favor das elites privilegiadas e contra as pessoas comuns (contrariamente ao que te dirão os apologistas do “governo bom”, ele está desenhado precisamente para fazer isso). O Estado tende a promover ineficiências através de subsídios, monopóliospatentes, deveres e outros mecanismos que possibilitam as elites evitarem os custos reais do que fazem. Obriga as pessoas comuns a suportar os custos das decisões das elites e ajusta suas preferências e comportamentos para adaptar-se as maiorias conformadas. Acredito que uma sociedade sem Estado provavelmente fomentaria a eficiência e a produtividade mais que a nossa, e evitaria várias formas de hierarquia e exclusões que os Estados tendem a promover e proteger. Todo aquele preocupado com o poder dos ricos e das grandes empresas, a prosperidade das pessoas comuns e o bem-estar dos pobres e vulneráveis, deve dar um não contundente ao Estado.

    Sou anarquista porque o Estado tende a ser destrutivo. Empreende guerras e saques, e parece persistentemente está envolvido em aumentar o nível de violência e injustiça entre fronteiras –  as quais são, consequentemente, elas mesmas criações estatais. Acredito que uma sociedade sem Estado teria muito menos violência em grande escala que a nossa.

    Sou anarquista porque o Estado restringe a liberdade pessoal – como uma forma de manter a ordem, beneficiar os privilegiados, preservar seu poder, ou subsidiar as preferências moralistas de algumas pessoas. E existe uma conexão natural entre o poder estatal e e a imposição de limites a liberdade.

    Sou anarquista porque quero uma sociedade caracterizada pela diversidade, pela busca e a experimentação, porque acredito que os Estados impõem conformismos e resistem a criatividade, e porque acredito que uma sociedade sem Estado proveria oportunidades as pessoas de buscarem diversas maneiras de terem suas vidas realizadas e prósperas, e de exibir os resultados dessas buscas.

    Gary William Chartier é um jurista e professor de Direito e Ética Empresarial na "La Sierra University" (California, EUA). Autor do livro "Anarchy and Legal Order", é membro sênior do "Center for a Stateless Society (C4SS)" // Revisão e tradução de Adriel Santana.
    [Fonte: http://www.libertarianismo.org/index.php/artigos/anarquista-2/]

    A arte de não escrever



    Sérgio Sant'Anna

    Muito já se escreveu sobre a arte da poesia, ou da narrativa, mas nada sobre essa outra arte tão dura e demandante de rigor que é a de silenciar quando não se tem o que dizer, ou o desejo de dizê-lo, ou, principalmente, os recursos para tanto. Este pequeno ensaio visa a preencher essa lacuna para aqueles que se iniciam na atividade literária, ou aqueles, veteranos, que se veem impelidos a continuar simplesmente por que começaram.

    Aos aspirantes a escritor que se sentem torturados pela desconfiança de que não têm aptidão para o ofício, pode-se dizer que, quase sempre, estão certos. Mas é bom lembrar que somente os que duvidaram da própria incapacidade, através da ação, tiveram a oportunidade de confirmá-la. E também que escrever talvez seja, em grande parte dos casos, muito mais o exercício de uma vontade, às vezes férrea, do que a realização de uma vocação irreprimível, como aquela de um Rimbaud (mesmo assim parou logo) ou de um Jarry, que escreveu o seu primeiro Ubu para gozar um professor.

    Poderiam esses dois exemplos insinuar que a grande pergunta ao pretendente a escritor é se as suas palavras fluem, com a espontaneidade do sentimento, dos seus corações e mentes diretamente para a folha de papel ou tela do computador? Se a resposta é sim, deve-se desconfiar em dobro, pois, não suportando a literatura qualquer tipo de primitivismo, é muito provável que as composições nascidas desse fluxo se tornem um lixo ainda mais visguento do que aquele produzido pelo mero esforço. Este último, quando nada, pode servir também para o saudável exercício de cortar palavras, às vezes até a última delas.

    Trabalhar com um computador, para os principiantes na informática, implica ainda um outro risco: pelo simples fato de conseguir alinhar frases e parágrafos o artista pode acreditar-se um gênio.

    Mas onde se quer chegar? Àquele velho lugar comum, que os escritores repetem em entrevistas, de não sei quantos por cento de inspiração para não sei quantos de transpiração? Ou a alguma definição como a do coreógrafo Maurice Béjart, a propósito de Baudelaire, de que o poeta é um misto de delírio (palavra algo perigosa) e disciplina (palavra algo militar)? Não propriamente, pois não se trata, aqui, de um guia com o objetivo de introduzir ou aprimorar pessoas nos procedimentos do ofício literário, mas, ao contrário, de auxiliá-las no caminho da abstenção, entendendo-a como virtude e fenômeno produtivo do ponto de vista social e individual. À inflação, como se sabe, corresponde uma quantidade excessiva de papel-moeda sem o devido lastro em bens. Literariamente, isso equivaleria a um excesso de palavras para pouco ou nada a dizer, fenômeno bem brasileiro que remonta à Colônia e ao Império – seguindo adentro pela República – com seu bacharelismo beletrista. Trata-se, basicamente, de enrolar as gentes, com o discurso do jurista, do político e do homem de letras, isso quando as três condições não coexistem num só homem, espécime que teve o seu representante mais notável em Rui Barbosa. Uma perda de substância da linguagem, enfim. Em oposição a essa estética do latifúndio trabalhariam os escritores antiinflacionários, ecologistas da palavra, como Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, tratando de escrever menos e melhor.

    O editor Pedro Paulo de Sena Madureira, em palestra, identificou como uma das causas desse mal brasileiro – variante intelectual da saúva – a quantidade de autores ou candidatos a, sem a devida correspondência em leitores, as poucas oportunidades de afirmação social e econômica no país, levando grande número de pessoas a buscar a carreira artística. Como todo mundo domina mais ou menos a língua, ao contrário da música e do desenho, daí para a tentação de escrever um livro é um pequeno passo.

    Começa também aí uma série de infortúnios para o sujeito. O primeiro deles seria uma perda imediata da capacidade de viver espontaneamente. Tomem-se alguns exemplos simples como os atos (ou não-atos) de assistir ao anoitecer ou ver e ouvir a chuva. Para qualquer ser humano dotado de sensibilidade, isso pode ser oportunidade para a contemplação, a meditação desinteressada e até a integração com algo mais vasto. Para o escritor, não; para ele, toda vivência, inclusive a convivência com o semelhante, é encarada de forma utilitária, material, passível de transformação, ainda que em frases do tipo: “Os pneus chiavam no asfalto e as poças d’água refletiam os letreiros luminosos”. Quando se trata da convivência no amor, o risco de perda existencial é ainda maior. Norman Mailer escreveu um conto sobre isso: O caderno de notas. É sobre um jovem escritor e sua namorada. Vale a pena transcrever um pedaço.

    Há uma coisa que eu vou dizer a você”, ela continuou amargamente. “Você magoa os outros mais do que a pessoa mais cruel do mundo faria. E por quê? Vou lhe dizer por quê. É porque você nunca sente nada e faz os outros acreditarem que sente”. Ela percebeu que ele não estava escutando e perguntou, exasperada: “Em que você está pensando agora?”.

    “Em nada. Estou ouvindo você e gostaria que não estivesse tão zangada.”

    Na verdade, ele estava bastante inquieto. Acabara de ter uma ideia para pôr no caderno de notas e isso o deixava ansioso, pensar que se não tirasse o caderno do bolso para anotar o pensamento, poderia esquecê-lo.

    O escritor acaba conseguindo fazer a anotação, que é a seguinte: 

    Crise emocional agravada pelo caderno de notas. Jovem escritor, namorada. Escritor acusado de ser observador, não participante, da vida. Tem ideia que precisa anotar no caderno. Faz isso e a discussão piora. Garota rompe a relação por causa disso.

    Pode-se retrucar que a essa perda corresponde um ganho considerável, a possibilidade de viver a existência em dois planos simultâneos: como vida e como obra. O jovem escritor de Mailer procura administrar isso, pois se a ideia do conto é boa, a garota também é legal e o autor-personagem tenta alcançá-la na próxima esquina. Bom, se acaso a houver perdido para sempre, restar-lhe-á o consolo de havê-la aprisionado no papel, ou o de que poderá inventar outras namoradas. A grande sedução da literatura – e eis uma das razões por que é tão difícil não escrever. Você pode amar imaginariamente, viver aventuras, cometer os mais diversos crimes e ainda receber prêmios por isso.

    Tudo, é lógico, se o resultado for bem-sucedido. Do contrário, corre-se o risco, se a obra for publicada, de emoldurar um daqueles retratos amarelados, fixados num momento infeliz. E, o que é pior, não se poderá mais destruí-lo. Se levarmos em conta que o verdadeiro escritor começa por ser um crítico severo de si mesmo, a grande probabilidade é de que encare com desconfiança, para não dizer desgosto, todos os retratos passados, tentando retocá-los – ou eliminar seus traços – no seguinte e assim por diante. Algo tão infernal quanto um cão querendo morder o próprio rabo. E gasta-se uma vida nisso.

    Já o hábito de ler, que também amplia a realidade a mais de um plano – creio mesmo que a vida é muito mais real nos livros e nos filmes – não entra em conflito com o existir, desde que se desfrute da leitura sem segundas intenções, de aprendizado, sobretudo o do ofício de escritor. Neste caso, perder-se-ia a pureza e o prazer primordiais daquela leitura ideal de Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino. E, como a percentagem autores/leitores é totalmente insatisfatória no Brasil, trata-se de aumentar a quantidade destes últimos, provavelmente à custa dos primeiros, com proveito qualitativo para ambos.

    Quando se começa a escrever, os outros autores, até os antes admirados, passam, de imediato, à categoria de concorrentes, que, se você não conseguir superar, será tentado a reduzir pela crítica, velada ou pública. O que faz dos salões de cabeleireiro, perto dos literários, templos de inocência. Entre outras vantagens da abdicação – se for sincera, e não mera conformação às evidências – está a de livrar você próprio e os outros das dores amargas da inveja e do ressentimento. É evidente que essa adicação implica também na renúncia a certos ideais: alguns deles gloriosos, como o de onipotência sobre o verbo, cujo fim último é a perfeição; outros, apenas nobres, como o de dotar a realidade, tão impermeável, de um contorno preciso; outros, como já vimos, de motivação mais íntima, como o de substituir essa realidade por uma mais de acordo com as nossas inclinações.

    Mas, ainda que se trate de uma inação, a arte de não escrever não pode ser confundida com a preguiça, pois, ao contrário desta, requer método e força de vontade, e, se se pode falar em exercício, é o da ascese. Em termos mais práticos, seria comparável a parar de fumar ou aos regimes alimentares: a cada cigarro que você não fuma, a cada substância gordurosa de que se abstém, o ar penetra mais puro em seus pulmões, o sangue flui límpido por suas veias. Assim é também com a palavra: a cada uma delas não escrita, a atmosfera se torna menos rarefeita, a vida corre solta, a chuva e a noite caem sem nenhuma interferência sua e você, sem dar-se conta disso, tornou-se personagem em vez de autor. O resultado, uma vez vencido o medo inicial, é comparável a jogar-se num espaço sem fim. Se, para além dele, encontra-se a morte, esta também não é um obstáculo sólido.

    De todo modo, qualquer tentativa de evitá-la, outra grande motivação dos escritores, acaba por revelar-se fútil. Porém, se, apesar de tudo, a necessidade de expressar-se por escrito brota dentro de alguém como uma toxina endógena, é melhor expeli-la em palavras, sabendo sempre que a fonte é inesgotável; que escrever é como matar baratas com o sapato, elas continuam a se multiplicar, como neste ensaio aqui. Diante da contradição em que ele implica, o autor argumenta, em sua defesa, que talvez possa contribuir na formação desses seres tão singulares: os homens e mulheres comuns.

    [Fonte: http://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/1580-a-arte-de-n%C3%A3o-escrever.html]

    Que estou fazendo?



    1. Que estou fazendo se sou cristão,
    Se Cristo deu-me o seu perdão?
    Há muitos pobres sem lar, sem pão,
    Há muitas vidas sem salvação.
    Mas Cristo veio pra nos remir
    O homem todo, sem dividir:
    Não só a alma do mal salvar,
    Também o corpo ressuscitar.

    2. Há muita fome no meu país,
    Há tanta gente que é infeliz,
    Há criancinhas que vão morrer,
    Há tantos velhos a padecer.
    Milhões não sabem como escrever,
    Milhões de olhos não sabem ler:
    Nas trevas vivem sem perceber
    Que são escravos de um outro ser.

    3. Que estou fazendo se sou cristão,
    Se Cristo deu-me o seu perdão?
    Há muitos pobres sem lar, sem pão,
    Há muitas vidas sem salvação.
    Aos poderosos eu vou pregar,
    Aos homens ricos vou proclamar
    Que a injustiça é contra Deus
    E a vil miséria insulta os céus.

    Autor: João Dias de Araújo.

    Colônia Correcional: Ilha Grande


    Tinham conseguido armar na cama vizinha um difícil mosquiteiro. Na manhã seguinte vi sentado nela um sujeito maduro, atraente, óculos grossos de miopia, a roupa de casimira pelo avesso.

    - Bom dia, atirou-me risonho e lento.

    Estava com desejo de conversar e logo se apresentou: Mota. Escorregamos depressa numa camaradagem fácil, tive realmente muito prazer em conhecê-lo.

    - O senhor tomou parte na Aliança Nacional Libertadora, seu Mota?

    - Não senhor – respondeu a criatura amável. Tinha as minhas simpatias. Sou admirador de [Luís Carlos] Prestes.

    Vejam só. Porque simpatizava com a Aliança Nacional Libertadora – cadeia, braços cruzados, a roupa vestida pelo avesso, a cabeça baixa e sem cabelos. Pobre de seu Mota. A situação dele era com certeza a do Manuel Leal, meu amigo velho arrancado às Alagoas, metido no cárcere dos sargentos no quartel de Recife, depois na prisão de Manaus e agora ali a carregar tijolos. Mas Leal não tinha o sossego, a conversa amável de seu Mota. Andava irritado, sombrio, num desespero mudo, contido. Um dia essa mudez se quebrou e o infeliz, de volta do trabalho, suado, coberto de pó vermelho, dirigiu-se a mim, ríspido:

    - Por que é que eu estou preso? Hem? Diga.

    Estranhei, tive pena do homem a desabar em velhice rápida. Coitado. Não me parecia longe o tempo em que os tristes olhos hoje apagados no rosto murcho brilhavam muito vivos, os fartos anéis da cabeleira negra seduziam mulheres. Pobre de Leal. Provavelmente a decadência não era apenas física; o espírito devia estar em declínio também para ele me vir fazer tal pergunta.

    - Que é que você quer que eu diga? Sei lá! Nem sei porque estou preso.

    O meu antigo camarada engasgou-se, esteve um minuto a examinar-me com espanto e censura. Tomou fôlego e, de supetão:

    - Você? Ora essa! Está preso porque é comunista. Sempre foi.

    Declarou isso aos berros, sem ligar importância aos guardas e à polícia.

    - Desde menino. Sempre foi. Ainda usava calças curtas e já lia essas coisas no balcão de seu pai. Mas eu? Que foi que eu fiz para estar aqui? Hem? Explique.

    Cheio de piedade, não conseguia eximir-me ao desejo de rir ouvindo esse despropósito. Leal gritava a denúncia, provavelmente ignorando que ela me poderia ser funesta. Não repliquei, temendo encolerizá-lo ainda mais. Coitado. Não percebia a exígua significação das brochuras que li na infância; continham veneno, supunha, estava nelas a causa da minha desgraça. Tinham sido justos comigo. Pois não passara a vida a procurar sarna para me coçar? Com ele havia injustiça. Por quê? Responsabilizava-me:

    - Diga. Por que me mandaram para aqui? Diga ao menos que é comunismo. Não sei. Nunca me meti com vocês, nunca li nada disso. Explique.

    A aflição tornava egoísta uma pessoa amorável. Desequilíbrio, certamente. Vinham-me à lembrança o riso aberto de Leal, as anedotas de caixeiro viajante sem graça, narradas muitos anos atrás, quando ele se hospedava em nossa casa no interior. Que horrível decadência! Via-me obrigado a fazer a comparação, e isso me dava imenso desgosto. Não me ocorreu uma palavra generosa, capaz de minorar aquela angústia. Afastei-me em silêncio. Esquisito afligir-se um prisioneiro de tal modo, não achar sossego, alhear-se do meio, o pensamento fixo no exterior, em casos remotos. Esses viventes arredios ficam desagradáveis. Sentimos não poder auxiliá-los, distraí-los, receamos contagiar-nos, finar naqueles tormentos. Buscamos a companhia de sujeitos expansivos, esboçam-se camaradagens num instante desfeitas. As histórias de Gaúcho afugentavam-me o sono, seria agradável escutá-lo muitas horas. Infelizmente quebravam-se: vinha o momento de recolher, éramos forçados a calar-nos e o resto da narrativa se adiava para a noite seguinte.

    - Imagine vossa mercê. Peguei um dia uma roupa nova bacana, azul marinho. Assentava no meu corpo e não foi para a muamba. Vesti-me nela e caí na rua. Pois veja que azar, na Lapa um sujeito do meu tope começou a espiar demais para mim e não deu tempo de pirar. Chegou-se e atacou: “- Moço, me desculpa. Onde foi que o senhor arranjou esse terno?” “- Pergunta muito bem, respondi eu. Comprei hoje por cem mil reis a um adelo da rua da Constituição, número tal.” “- Pois moço, juro que esse terno é meu. Foi roubado ontem.” Aí eu me ofendi e propus: “- O senhor quer ir comigo falar com o adelo, agora mesmo? É um negociante conhecido.” O tipo afrouxou: “- Não, não, posso estar enganado. Mas ia garantir que não estou. É o feitio, é a cor, é o tamanho.” Foi-se embora. E eu voei para casa. Um susto medonho, não sei como tive tanta calma. Tirei a roupa e disse à mulher: “Leva este diabo ao intrujão, dá sumiço a isto.” A gente não deve usar as coisas que rouba.

    A conclusão vinha quase em forma de conselho: o ótimo ladrão parecia querer livrar-me de tais vexames. Também me agradava a figura tranquila de seu Mota. Apesar de ser vítima de uma iniquidade, pois não se envolvera em política, mantinha na prisão melhor humor. “- Bom dia”. Estava ali junto, emoldurado pelo mosquiteiro entreaberto, os óculos a faiscar. A voz nunca se alterava, e a afável saudação nos transmitia serenidade. Realmente só vi seu Mota zangar-se uma vez. Fazia uma semana que nos conhecíamos, e ele me narrava os seus começos. Fora secretário da prefeitura em Corumbá, ou Cuiabá, não me lembro. De fato quem se responsabilizava pela administração era ele, que o prefeito, coronel e analfabeto, não entendia de verbas.

    - Esse matuto viajou para o Rio e lá ficou três meses. Dirigi o pessoal na ausência do homem e fiz boa arrecadação. Quando ele chegou, havia em caixa trinta contos, naquele tempo uma fortuna. Arrumei o balancete e dei ao prefeito a chave do cofre. Não faltou um tostão.

    O meu vizinho interrompeu-se, um minuto se conservou absorto, o olhar distante, mergulhado nas suas recordações. Súbito inquiriu:

    - O senhor acredita? Acha que eu entreguei esse dinheiro?

    - Sem dúvida, seu Mota. Ora essa!

    O ex-secretário da prefeitura de Corumbá teve um longo suspiro:

    - Entreguei. Foi uma doidice. Com trinta contos nas mãos, e passei a outro esse dinheiro todo. É o remorso que me persegue na vida.

    Seu Mota concluiu, exaltando-se:

    - Eu era muito novo. E muito burro.

    Graciliano Ramos
    [Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia/142275-1]

    Definição de Anarquia


    Anarquia é uma palavra grega que significa literalmente "sem governo", isto é, o estado de um povo sem uma autoridade constituída.

    Antes que tal organização começasse a ser cogitada e desejada por toda uma classe de pensadores, ou se tornasse a meta de um movimento, que hoje é um dos fatores mais importantes do atual conflito social, a palavra "anarquia" foi usada universalmente para designar desordem e confusão. Ainda hoje, é adotada nesse sentido pelos ignorantes e pelos adversários interessados em distorcer a verdade.

    Não vamos entrar em discussões filológicas, porque a questão é histórica e não filológica. A interpretação usual da palavra não exprime o verdadeiro significado etimológico, mas deriva dele. Tal interpretação se deve ao preconceito de que o governo é uma necessidade na organização da vida social.

    O homem, como todos os seres vivos, se adapta às condições em que vive e transmite , através de herança cultural, seus hábitos adquiridos. Portanto, por nascer e viver na escravidão, por ser descendente de escravos, quando começou a pensar, o homem acreditava que a escravidão era uma condição essencial à vida. A liberdade parecia impossível. Assim também o trabalhador foi forçado, por séculos, a depender da boa vontade do patrão para trabalhar, isto é, para obter pão. Acostumou-se a ter sua própria vida à disposição daqueles que possuíssem a terra e o capital. Passou a acreditar que seu senhor era aquele que lhe dava pão, e perguntava ingenuamente como viveria se não tivesse um patrão.

    Da mesma forma, um homem cujos membros foram atados desde o nascimento, mas que mesmo assim aprendeu a mancar, atribui a essas ataduras sua habilidade para se mover. Na verdade, elas diminuem e paralisam a energia muscular de seus membros.

    Se acrescentarmos ao efeito natural do hábito a educação dada pelo seu patrão, pelo padre, pelo professor, que ensinam que o patrão e o governo são necessários; se acrescentarmos o juiz e o policial para pressionar aqueles que pensam de outra forma, e tentam difundir suas opiniões, entenderemos como o preconceito da utilidade e da necessidade do patrão e do governo são estabelecidos. Suponho que um médico apresente uma teoria completa, com mil ilustrações inventadas, para persuadir o homem com membros atados, que se libertar suas pernas não poderá caminhar, ou mesmo viver. O homem defenderia suas ataduras furiosamente e consideraria todos que tentassem tirá-las inimigo.

    Portanto, se considerarmos que o governo é necessário e que sem o governo haveria desordem e confusão, é natural e lógico, que a anarquia, que significa ausência de governo, também signifique ausência de ordem.

    Existem fatos paralelos na história da palavra. Em épocas e países onde se considerava o governo de um homem (monarquia) necessário, a palavra "república" (governo de muitos) era usada exatamente como "anarquia", implicando desordem e confusão. Traços deste significado ainda são encontrados na linguagem popular de quase todos os países. Quando essa opinião mudar, e o público estiver convencido de que o governo é desnecessário e extremamente prejudicial, a palavra "anarquia", justamente por significar "sem governo" será o mesmo que dizer "ordem natural, harmonia de necessidades e interesses de todos, liberdade total com solidariedade total". 

    Portanto, estão errados aqueles que dizem que os anarquistas escolheram mal o nome, por ser esse mal compreendido pelas massas e levar a uma falsa interpretação. O erro vem disso e não da palavra. A dificuldade que os anarquistas encontram para difundir suas idéias não depende do nome que deram a si mesmos. Depende do fato de que suas concepções se chocam com os preconceitos que as pessoas têm sobre as funções do governo, ou o "Estado” com é chamado.

    Errico Malatesta 1907.
    [Fonte: https://www.facebook.com/Anarquismo.Liberdade/posts/1072045876236144:0]

    Quem foi Janusz Korczak?




    Janusz Korczak (pseudônimo tirado de um romance pouco conhecido de Kra Szewski. ) — cujo nome verdadeiro era Henryk Goldszmit — era um homem humilde e simples na sua mais profunda acepção.

    Sua vida foi recontada inúmeras vezes e continuará sendo, porque ela mostra o horror da última guerra, a exterminação dos judeus poloneses e o holocausto em atos indescritíveis na maior atrocidade que a história e a humanidade já conheceu.

    Nasceu em Varsóvia há pouco mais de cem anos. O fato de seu pai ter sido um advogado conhecido e seu avô um médico mostra até que ponto o seu meio foi assimilado. Pertencendo a uma família da elite cultural polonesa, teve a melhor formação pediátrica da época (1898-1904), pois estudou em Paris (que dava ênfase à pesquisa de novos conhecimentos) e em Berlim (conhecido pela aplicação metódica dos conhecimentos adquiridos). Nos seus 8 anos de prática pediátrica deu preferência à população pobre da qual não cobrava. Como pediatra tinha conceitos avançados para a época e modernos para os nossos dias.

    Um pouco desgastado com a prática médica (decepcionado com a comercialização da medicina e as intrigas acadêmicas) reconciliou-se com ela através da pediatria social: "os remédios são instrumentos auxiliares e não substitutos da higiene e da ajuda social à família".

    Ele cresceu na solidão, preservado das influências do exterior, sem se dar conta de que era judeu e sem saber o que isso significava. Antes de terminar a escola ele perdeu o seu pai, atingido por uma doença mental. A miséria sucedeu a abundância. O jovem Henryk tomou sobre si, da maneira como pode, o encargo de sua mãe e irmã, e nos anos seguintes, freqüentemente passando fome, estudou medicina com enormes dificuldades. Quando, por fim, obteve seu diploma, as coisas começaram a melhorar, contribuindo também para isso sua reputação de escritor que se afirmava. Mas isto não durou muito tempo. Repentinamente um tipo de necessidade interior mudou completamente seu destino.

    Com trinta e quatro anos ele abandonou o exercício da medicina para se dedicar toda a sua vida às crianças. A ideia fixa de consagrar sua vida às crianças parecia possuí-lo. Ele não era um idealista ingênuo; o que o caracterizava era uma compreensão extraordinária da criança e a convicção da necessidade de lutar pelos seus direitos no mundo governado pelos adultos. Ele não tinha confiança no mundo governado pelos adultos, mas como cada verdadeiro reformador ele julgava que mesmo uma só pequena vela acesa valia mais que lamentar-se da escuridão. Sua intuição não excluía sua sensibilidade e ela está edificada sobre uma observação constante, clínica, poder-se-ia dizer, sobre um estudo minucioso dos fatos. Totalmente absorvido por sua única ideia, não havia lugar nele para tudo que os outros davam tanta importância – dinheiro, a celebridade, um lar, uma família.

    Com o objetivo de criar um ambiente adequado para suas crianças e alunos, ele inaugurou, em abril de 1912, o orfanato Lar das Crianças, na rua Krochmalna, em Varsóvia. Seu público-alvo eram as crianças judias carentes. A casa acolheu 200 delas — e os fundos para o empreendimento foram conseguidos com judeus mais proeminentes do país.

    O orfanato contava com salas confortáveis de estar, refeitórios, banheiros, biblioteca e dormitórios. Havia, ainda, uma sala silenciosa com quadros na parede e um aquário, destinada aos estudos e à meditação. Nesse espaço, as próprias crianças realizavam os principais trabalhos e administravam o orfanato por meio de duas instituições básicas: o Parlamento e o Tribunal, que organizavam a vida em comunidade e solucionavam os conflitos, exercitando as crianças e também os educadores no espírito da participação e responsabilidade.

    "Sem uma infância serena e completa, toda vida posterior fica mutilada."

    ideia expressa nessas palavras condiz com seu princípio fundamental de que o educador deveria sempre levar a sério a opinião do aluno, seu ponto de vista, porque não considerá-los oprimiria a personalidade da criança e seu amor próprio.

    Em 1942, os nazistas ordenaram a transferência do orfanato para uma casa pequena e suja, no gueto de Varsóvia. Em 5 de agosto do mesmo ano, durante a liquidação do gueto de Varsóvia, os hitleristas ordenaram o agrupamento das crianças do orfanato de Korczak e o envio das mesmas ao campo de morte de Treblinka. O ‘Velho Doutor’ reuniu duzentos pupilos, os fez colocar-se sabiamente em fileiras e, à sua frente, partiu com eles para o ‘Umschlagplatz’, no cruzamento das ruas Stawki e Dzika, onde todos foram colocados em vagões de carga e enviados para os fornos crematórios.

    Esta marcha nas ruas do gueto foi vista por algumas centenas de pessoas, e a silhueta pequena de Korczak dirigindo-se para seu calvário, inconsciente de seu heroísmo, fazendo aquilo que lhe parecia evidente, excitava as imaginações. A novidade espalhou-se imediatamente, repetida de boca em boca com a força de detalhes inventados: que Korczak carregava nos braços os dois menores, coisa pouco provável, porque ele mesmo estava doente e tinha dificuldades em andar; que o ‘Jundenrat’ tinha intervindo no derradeiro momento e tinha despachado em seguida um mensageiro atrás da fila, portador de um salvo conduto somente para Korczak, que foi por ele rejeitado com desprezo; que para apaziguar as crianças ele tinha lhes dito que iam em excursão e que eles, confiantes, o seguiam sem choro e sem protesto. Mas nenhum embelezamento é necessário diante dessa verdade nua e crua; não é preciso ajuntar qualquer coisa para torná-la mais eloquente. A antítese do espírito e das dificuldades é clara e definitiva: um homem sábio por excelência, desinteressado e bom, opondo-se aos covardes, bárbaros obtusos, que se mostravam sob seu aspecto mais satânico.

    Entre os milhões de mortes anônimas, a de Korczak tem um grande significado. Nos campos e guetos, ele se tornou para muitos, uma inspiração, pois o que mais ajudava a sobreviver era a convicção obstinada e indestrutível que a dignidade humana poderia vencer , embora tudo parecesse provar o contrário.

    A imprensa clandestina dos campos mostra bem o quanto esta derradeira caminhada sublime do "Velho Doutor" foi um reconforto e uma dose de ânimo para seus contemporâneos. A partir daí sua glória tem crescido e o mundo fez de Korczak um símbolo moral.

    Quando os hitleristas fecharam os judeus de Varsóvia dentro do gueto, o orfanato perdeu sua casa à Rua Kruchmalna, do lado ‘ariano’, e transportou-se para locais provisórios, no interior dos muros do gueto. Naquele momento Korczak já percebia melhor que a maioria das pessoas que a máquina impiedosa os mataria a todos. Mas ele pensava em não renunciar ao seu direito de aliviar os sofrimentos.

    Alquebrado e doente, cada dia ele reunia as forças que lhe restavam e partia à procura de viveres e de medicamentos para as crianças. Às vezes ele não trazia nada de suas buscas obstinadas, outras vezes ele voltava somente com uma ínfima parte do necessário. Apesar de fome incessante cada vez mais insuportável e às doenças sempre mais freqüentes, ele cuidava para que seu orfanato funcionasse normalmente, a fim de que seus alunos pudessem sentir-se bem. Freqüentemente ele trazia dos locais mais distantes uma nova criança encontrada na rua, no fim de suas forças, para quem a bondade do Velho Doutor significava a salvação durante algum tempo ainda.

    Nestas condições rigorosas levadas ao extremo e que em tempo normal é difícil de se imaginar, nós temos em Korczak, no seu trabalho cotidiano, um exemplo do que pode fazer um genuíno homem guiado pelo amor.

    Ele morreu com suas crianças na câmara de gás, em Treblinka. Mas apesar de mais de meio século ter se passado desde sua morte, a história não deixa margens a dúvidas: existe o homem, dentro dele um cérebro, junto com ele um coração e acima de todos seus sentidos uma faísca Divina: uma neshamá.

    Como o próprio Korczak acreditava: "mesmo uma só pequena vela acesa vale mais que lamentar-se da escuridão", desejo que hoje não seja apenas um dia de dor e lamento. Que possamos sentir e chorar pelos que se foram, mas que ao mesmo tempo possamos acender a chama de muito mais luzes, verdadeiras obras divinas chamadas Filhos, Netos, Bisnetos daqueles que já não se encontram entre nós… fisicamente.

    [Fonte: http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/janusz/home.html]

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