Há Teologia em Branca de Neve?


Quando ouvi pela primeira vez o conto “A Branca de Neve e os Sete Anões” fiquei extasiado, estava deitado no chão da sala da casa em que morava com meus pais e meus três irmãos, meu pai, um grande contador de histórias, tinha escolhido este conto para nos distrair, no sarau doméstico, numa noite perdida entre 1974 e 1975, ele se deitava na sala, fechava os olhos, ficava puxando os cabelos já ralos de sua cabeça e então viajava nas suas estórias, acho que ele viajava mais do que nós, se no outro dia ele resolvesse contar a mesma estória, certamente que teria um viés diferente, ele nunca contava a estória como tinha ouvido (meu pai não sabia ler e isso só fazia com que sua imaginação fosse ainda mais aguçada), para ele não tinha graça contar a estória ipsis literis a ouvira, a graça consistia em contá-la por sua própria perspectiva e com a roupagem que ele achasse adequada e esta sua cosmovisão incluía distorções, acréscimos, subtrações, digressões e interpretações próprias, tudo isso com muita generosidade e naturalidade.

Logo cedo me tornei viciado em livros, e passei a selecionar com cuidado o que deveria aprender e o que queria conhecer com mais afinco, numa ocasião, em que estava “perdido” entre as estantes da biblioteca da escola que estudava, me deparei com um livro de contos dos irmãos Grimm, eu o devorei de uma “sentada”! Foi então que eu pude ter contato pela primeira vez com a versão “oficial” de uma estória que me encantava há muitos anos, porém, a primeira coisa que descobri foi que a versão escrita não tinha muita semelhança com a que eu conhecia, a estória original também não era tão empolgante como aquela (ou talvez fosse melhor dizer aquelas!) que meu pai cristalizara no meu imaginário infantil. Depois disso vi dezenas de filmes, peças e versões variadas de Branca de Neve, seja como uma criança sonhadora, seja como uma ingênua adolescente, seja como uma mulher dona de si.

Hoje, aos 44 anos, ainda gosto de ler contos, (excluindo os contos de fadas, estes não me empolgam mais!), porém depois que li A psicanálise dos contos de fada de Bruno Bettelheim (Paz e Terra, São Paulo:2006), perdi a visão fantasiosa de meu pai, perdi a visão lírica dos Grimm e passei a ler os contos sempre em busca do significado das metáforas e das verdades latentes por trás das verdades aparentes. Faço isso com os contos de minha infância e com as mitologias: grega, romana, nórdica ou oriental. Busco sempre o que Don Richardson chama de Fator Melquisedeque (ver livro com este título da Editora Betânia), que ele concebe como os traços das verdades divinas que o Espírito preservou em todas as culturas, mesmo naquelas isentas de influência da cultura judaico-cristã.

Sei que depois que analisamos algum conto, usando o processo de desmitologização, no rumo da bússola hermenêutica de Ruldolf Bultmann, importante teólogo alemão do início do século passado, aparentemente o encanto se perde, eu porém entendo que quando analisamos um conto, uma estória ou um mito, passamos a compreender que contribuição ele(a) trouxe para a nossa mente pueril e para a de nossos filhos. Entender como funcionam estes mecanismos e relações mentais, além de saudável, é necessário se quisermos compreender a nós mesmos e a nossos filhos. Eu ainda proporia outro prisma para análise dos contos de fadas: a visão teológica, se não bíblica, pode ser uma tarefa hercúlea, mas não creio que não deva ser tentada, pode ser que não alcancemos os resultados desejados, mas pelo menos tentamos.

Marilena Chauí classifica o Conto da Branca Neve como um conto de partida, que na visão dela é aquele que é marcado por ritos de passagem, recheado de “... provações e provas até ser ultrapassada rumo ao amor e à vida nova. Nesses contos, a adolescência é um período de feitiço, encantamento, sortilégio que tanto podem ser castigos merecidos quanto imerecidos, mas que servem de refúgio ou de proteção para a passagem da infância à idade adulta...” (Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida, Ed. Brasiliense, 1984, pág. 32-54). O que mais caracteriza este tipo de conto é o tempo de espera que o personagem principal passa, é como se fosse uma parúsia, uma expectativa de algo grandioso que ocorrerá, no caso da teologia cristã este fato grandioso é a segunda vinda de Jesus, que culminará com o fim da história e o começo de uma outra realidade histórica.

Dentro desta esfera de expectativa, os personagens, especialmente as meninas, são vítimas de feitiços que as fazem dormir ou as transformam em animais frágeis, por isso que se fala tanto de esperar "pela princesa encantada" que aponta, não para a espera por alguma donzela muito boa e bela, mas sim para o fato de que é necessário aguardar os que estão enfeitiçados porque ainda não chegou a hora do desencantamento, ou aquele que é capaz de desfazer o feitiço ainda não foi manifestado. Vejo muitas metáforas das verdades evangélicas por trás disso.

Branca de Neve não teve o seu corpo mutilado, ou violado, graças à piedade e ética do caçador que havia recebido esta missão da madrasta de Branca, ele prefere enganar a bruxa a ter que matar a inocente, preferiu cometer um mal menor que evitasse que um mal maior fosse praticado. Quando não arrancou o coração da menina, ele não apenas poupou a vida dela, mas, metaforicamente, ele também poupa e preserva a sua pureza virginal. Ele só não pode evitar que ela fosse, bem mais tarde, facilmente enredada no ardil da madrasta (que tornou-se um estereótipo de maldade para todas as demais madrastas, tachadas a partir de então como bruxas), por meio da gula (um dos sete pecados capitais da teologia latina de Roma) que é fruto da sedução que cativou seus olhos (luxúria? Outro pecado capital).

Um fato que merece destaque aqui é o objeto utilizado para seduzir Branca: uma maçã (ressalte-se que vermelha!), segundo as tradições judaico-cristãs teria sido esse o fruto utilizado para uma outra sedução, segundo os relatos do Gênesis, que culminou com a Queda do homem no Jardim do Éden. O fato de Branca de Neve permanecer imóvel encerrada num caixão de cristal é bastante metafórico, já que o caixão simboliza os seus órgãos sexuais e o fato de estar imóvel indica que estava sendo impedida de se tornar adulta, permanecendo presa na adolescência sem ter condição de se tornar adulta-mulher.

A maçã que fica na sua garganta sem que ela engula ou a expila é outra metáfora para a entrada do mal, ela está no limiar de ter contato com algo que a pode destruir, ela consegue de certa forma barrá-lo, muito embora não fique imune à ação maléfica do fruto que a envenena, mas não tem forças suficientes para erradicá-lo de si de uma vez por todas, e esse mal a condena ao sono eterno, à morte. Isto tem muita analogia com os efeitos da queda, ainda que o homem caído possa praticar boas ações, ele por si mesmo é incapaz de inclinar-se para o bem ou de erradicar esse mal de dentro de si.

Outro elemento que merece ser mencionado é a cor vermelha, presente em muitas partes deste conto e sempre de forma cheia de significância. O vermelho, que é trazido pela bruxa, possui uma carga de simbologia medieval muito grande, já que naquela época acreditava-se que as bruxas fabricavam as poções de amor usando esperma e o sangue menstrual, esta simbologia aponta pois para a puberdade de Branca, mas também parece sugerir que só com a expelição da mesma, ela poderia reviver.

Outro fato cheio de significado parece amedrontador, já que o belo príncipe pretendia levar o corpo de Branca consigo, seria uma necrofilia velada? Não creio, isso estaria mais associado à crença de que algo poderia ser feito e ela fosse então, libertada do feitiço e da morte.

Alguns elementos que não são tão imprescindíveis para o desenvolvimento da história merecem ser destacados: o espelho mágico, que é usado metaforicamente como “espelho da alma”, pode ser usado também como figura de linguagem do perigoso narcisismo e o auto-encantamento, o que abriria caminho para a vaidade e a soberba, passos que foram dados por Lúcifer antes de sua queda e do consequente afastamento de Deus. E é por ele que é instalada a discórdia entre as personagens principais do conto.

Outro elemento metafórico que merece consideração é que a estagnação, paralisia do desenvolvimento de Branca, é mais importante do que a sua morte, interessava mais que ela permanecesse “criança” e frágil, do que uma adulta confiante que pudesse se defender e que tomasse as rédeas de sua própria vida. Faz um paralelo com os ardis luciferianos que prefere incentivar que os seus alvos sejam religiosos ao extremo, fanáticos presos às superstições e aos ritos fetichistas que os impedem de crescer e de amadurecer, antes, busca atrofiá-los e privá-los de experimentar uma vida de maturidade da fé e de plenitude.

O período em que Branca de Neve adormece e que por fim, com a ajuda do Príncipe, consegue expelir a maça envenenada e então contrair bodas com este mesmo príncipe tem também paralelismos com as histórias evangélicas de Jesus e a Igreja, sua noiva, que contrairão bodas após a volta (ou segunda vinda do noivo) e o “despertar” de parte dessa noiva que terá dormido (morrido).

A metáfora do sapato de ferro em brasas que a bruxa madrasta passará a usar até a morte como castigo por suas maldades e por ter induzido Branca de Neve ao erro, tem analogia na prisão de Lúcifer, que procurou por toda a história da igreja induzi-la ao erro, seja afastando-a do príncipe, seja incentivando-a a colocar no lugar dele um simulacro, seja distorcendo a expectativa por meio de ação exagerada ou de omissão, ou esperava de forma errada ou não esperava mais.

Só recentemente depois de adulto e quando passei a fazer uma releitura destes contos eu fiquei chocado com a violência que eles contêm e me surpreendi com o fato de que não percebia isso quando era criança, na verdade posso afirmar que acabava me comprazendo nela. Isto decorre do fato de que a grande maioria das crianças aceita naturalmente o mundo maravilhoso dos contos e não se assusta e nem é pessimista quanto ao destino de seus heróis, pois sabe que de uma forma ou outra todos eles terminarão bem e a frase "e foram felizes para sempre" nunca vai deixar de encerrar um conto. Nos enganamos quando tentamos suavizar a dor, a violência ou o lado negro de um conto, são coisas que as crianças esperam que aconteçam, pois sabem que isso não é para sempre, e que ao fim e ao cabo o Bem triunfará. Isso é algo muito positivo para uma mente infantil: saber que não importa qual o alcance ou tamanho do Mal, ele será vencido sempre pelo Bem.

Muitos de nós nos surpreendemos com o fato de que as crianças não só desejarem ouvir inúmeras vezes os mesmos contos (numa repetição que deixa os adultos extenuados), mas também não admitirem qualquer mudança no enredo, por menor que seja (cobram do adulto que "encurta" a estória, omite ou esquece algum detalhe, altera alguma ação). Essa relação quase maníaca e obsessiva da criança com a narrativa é essencial.

Creio que para começo de reflexão o que discutimos é razoável, o que podemos fazer a partir de agora é seguir buscando estes “ventos” que o Espírito sopra nas culturas, dotando-as de lampejos da verdades eternas. Basta ler com os óculos certos, descobriremos que existem mais verdades evangélicas espalhadas por nossas estórias infantis do que imaginamos.

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