“The Lobby”: censurado por Israel (Parte 4)

Nada assusta mais Israel do que os jovens negros americanos. Mesmo com a maioria do Congresso dos Estados Unidos ao seu lado, o lobby israelense treme na base com o Black Lives Matter, movimento que surgiu após o assassinato de Michael Brown pelo policial Darren Wilson em 2014 e vem escancarando a violência racista – e letal – das polícias dos EUA. Mas por quê?
Para começar, o assassinato de Brown aconteceu no mesmo verão que Israel apertou o cerco em Gaza, criando uma solidariedade online entre o Black Lives Matter e o BDS, movimento pacífico pró-Palestina que pede, entre outras medidas, o boicote a produtos israelenses.

O lobby, é claro, não aceitou essa aproximação quieto. Após o Black Lives Matter declarar publicamente apoio ao BDS, um evento de arrecadação de fundos para a causa negra foi cancelado por pressão do The Israel Project, uma das dezenas de grupos que compõem o lobby nos EUA.

E mais: Clarence V. Jones, autor do famoso discurso de Martin Luther King, “Eu tenho um sonho”, foi usado como arma. Jones era “amigo íntimo” de Andy David, cônsul-geral de Israel em São Francisco. E, por conta dessa relação, publicou três artigos na imprensa afirmando que King se reviraria no túmulo se visse as tendências anti-Israel do Black Lives Matter.

É o que confessou Andy David, então cônsul-geral de Israel em São Francisco. Sem saber que estava sendo gravado, David aparece no quarto e último episódio da série documental “The Lobby – USA”, da Al Jazeera.

Criado a partir das descobertas de James Kleinfeld, repórter que se infiltrou no coração do lobby israelense nos EUA, o documentário acabou censurado por causa da pressão do lobby de Israel nos EUA, que tem ligações diretas com o governo israelense. Agora, ele é exibido pela primeira vez em português pelo Intercept.

Os evangélicos e o Estado de Israel


Desde o recrudescimento dos ataques do Estado de Israel a Gaza, no dia 7 de outubro, sob a justificativa de retaliação à ação de resistência armada contra a ocupação, chama a atenção, inclusive no Brasil, a defesa do Estado sionista por amplos setores evangélicos. Por que segmentos cristãos que, do ponto de vista religioso, em tese, compartilham de uma visão mais próxima do islamismo (o Islã, ao contrário do judaísmo, reconhece e reverencia a figura de Jesus Cristo como profeta), se alinham de forma tão incondicional ao Estado israelense?

Trata-se de uma história ao mesmo tempo antiga e recente. Uma construção ideológica de séculos que ganhou força e uma nova roupagem com o fortalecimento da extrema direita nos últimos anos. E que de “espiritual”, como veremos, não tem absolutamente nada.

Cristianismo e sionismo
A identificação entre protestantismo e o que viria a ser o sionismo, ou seja, a ideia de que o povo judeu deveria retornar à Palestina histórica, remonta ainda aos primeiros anos da Reforma Protestante. Um clérigo inglês do século XVI, Thomas Brightman, afirmava que os judeus deveriam “retornar a Jerusalém outra vez”, já que “os profetas de todos os cantos confirmam e falam sobre isso”.

Por trás dessa ideia estava uma leitura peculiar do evangelho, especificamente da escatologia cristã, que previa o retorno dos judeus à terra prometida, a reconstrução do Templo de Salomão (destruído pelos babilônicos e romanos), preparando a segunda vinda de Cristo e finalmente a conversão dos judeus ao cristianismo. Essa doutrina seria chamada mais tarde de “dispensacionalismo”. Trata-se de uma visão que pressupõe o abandono da fé judaica para o cumprimento das profecias, o que muitos judeus, não sem razão, tacham de antissemitismo.

Essa ideia se tornou uma força prática no século XIX com o movimento Templo Alemão Pietista, originado do luteranismo. Dois clérigos alemães, Christoph Hoffman e Georg David Hardegg, fundaram a Sociedade de Templer em 1861, com a ideia de colonizar a Palestina por meio de assentamentos. Com o apoio da Corte na Prússia e de teólogos anglicanos da Grã-Bretanha, instalaram o primeiro assentamento em Haifa ainda em 1866, espalhando-se pela região. Bem antes, portanto, de Theodor Herzl lançar o sionismo como corrente política e ideológica no congresso de 1897.

Os “templadores”, que acabariam sendo expulsos após a fundação do Estado de Israel, em 1948, tiveram seus métodos de instalação de assentamentos de povoação imitados pelas primeiras levas de sionistas, entre o final do século XIX e o começo do século XX, com forte apoio britânico. Para a Inglaterra, era estratégico fortalecer sua posição na região, ainda sob domínio Otomano.

Evidentemente, os primeiros sionistas não eram motivados por essa doutrina oriunda do protestantismo. Aliás, se o sionismo no século XIX, enquanto ideologia que advogava a construção de uma nação judaica, não era uma força majoritária entre os judeus – rivalizando com os que defendiam a completa integração dos judeus a seus respectivos países (ainda que mantendo certas tradições e a religiosidade) –, mesmo entre os sionistas, o sionismo religioso que defendia a volta a Jerusalém, tampouco predominava. Tanto que se cogitavam regiões como Bariloche, na Argentina, ou Uganda, na África.

A escolha pela Palestina e a construção do mito do retorno dos judeus à terra que teria sido prometida a eles teve como objetivo cerrar fileiras com Estados e atrair a simpatia e a defesa de amplos segmentos religiosos cristãos mundo afora. Para isso, tornou-se essencial a consolidação de outro mito: o de que os atuais judeus descendem diretamente do povo hebreu do Velho Testamento (ou da Torá).

Um mito funcional
Há muitos estudos e debates sobre a origem dos povos que se autointitulam judeus, principalmente após a publicação da obra de Shlomo Sand, A invenção do povo judeu (2008). O autor retoma estudos de Arthur Koestler que, em 1976, publicou o livro A décima terceira tribo, no qual afirma que os judeus são, na verdade, descendentes dos tzares, do Cáucaso, convertidos no século VIII. Essa versão é aceita por muitos pesquisadores sérios.

O historiador israelense Illan Pappé relativiza esse debate afirmando que “os povos têm o direito de se inventarem, como fizeram tantos movimentos nacionais em seu momento de concepção, mas alertando que “o problema se agrava quando a narrativa de gênese engendra projetos políticos como genocídio, limpeza étnica e opressão”.

E foi justamente isso o que aconteceu. Os diversos segmentos do sionismo, do religioso ao de “esquerda”, confluíram a essa interpretação bíblica de que seriam os judeus (os atuais) os legítimos descendentes do antigo povo hebreu. Essa autoridade histórica, moral e ancestral, garantiria a justificativa para ocupar a Palestina e expulsar os “invasores”, no caso, os palestinos. Ainda que ironicamente não sejam poucos os que afirmam que os atuais palestinos, os povos originários daquela terra, carreguem mais DNA dos antigos hebreus do que os atuais judeus.

Contudo, para muitos sionistas, pouco importa se essa justificativa era falsa ou não. Até porque ela foi empregada por sionistas “socialistas”, ateus etc. O importante era colonizar a Palestina, expulsar quem lá vivia e instaurar um Estado judeu. E até hoje esse mito é empregado para a crescente ocupação de Gaza e Cisjordânia e os massacres perpetrados pelo Estado sionista há sete décadas. E principalmente para justificar a manutenção de Israel como um enclave militar, se antes da Inglaterra, agora dos EUA, numa região estratégica.

Israel e a extrema direita
Voltemos aos atuais evangélicos. O que essa trajetória tortuosa tem a ver com o pastor da esquina de um bairro de periferia que convoca seus fieis a uma “vigília por Israel” no exato momento em que o país lança toneladas de mísseis nas cabeças de crianças e bebês em Gaza?

O protestantismo teve um crescimento significativo no Brasi no século passado, principalmente por meio de movimentos pentecostais, mas ainda num contexto de um Brasil majoritariamente católico. A proliferação das igrejas neopentecostais, num quadro de crise, abissal desigualdade social e as promessas oferecidas pela Teologia da Prosperidade, vem mudando o placar religioso no país e, em breve, os evangélicos devem ultrapassar os católicos.

Sempre houve uma “natural” associação entre protestantismo e os judeus, mas essencialmente simbólica e religiosa. Jesus é o “Leão da Tribo da Judá”, a “esperança de Israel”. Mas era praticamente consenso que a “Israel” agora não se referia mais aos antigos judeus, mas à totalidade dos fiéis. A “lei” foi substituída pelo sacrifício de Jesus no calvário. Alguns segmentos inclusive resvalam no antissemitismo responsabilizando os judeus por “terem matado Jesus”.

Percebe-se, porém, uma profunda mudança nos últimos anos. As referências a Israel vão deixando de ser simbólicas e tornam-se quase literais. O milenarismo, ainda que não seja estudado em praticamente nenhuma igreja, é assimilado de forma acrítica. As igrejas vão se “judaizando”, e os próprios crentes se identificam como parte da diáspora judaica. Tornou-se frequente o uso de bandeiras de Israel, pastores ministrando cultos com quipás e, maior expressão desse processo, o enorme Tempo de Salomão construído pela Igreja Universal na capital paulista.

Trata-se de um movimento sincronizado com a radicalização do público evangélico à extrema direita e, mais recentemente, com o bolsonarismo. Essa é a razão pela qual muitos estranham a atual hipervalorização do Antigo Testamento. Lá, temos uma divindade guerreira, que destrói seus inimigos de forma impiedosa, não aceita o culto a qualquer outra divindade e se impõe à força. Uma narrativa mais fácil de ser absorvida e moldada a um projeto político de ditadura e de perseguição a opositores do que seria, por exemplo, uma divindade que pregasse amor ao próximo, protegesse prostituas e dissesse que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus”.

Nesse sentido, assim como Bolsonaro e Trump seriam homens enviados por Deus para proteger os valores morais tradicionais (ou a tão propalada cultura judaico-cristã), ameaçados pelo avanço dos direitos de mulheres, negros e LGBTI+, o Estado de Israel seria o Estado “ungido” para barrar os “selvagens islâmicos” e o “terrorismo”. Uma visão não só distorcida, como profundamente racista e xenófoba.

Junte-se a isso interesses que passam ao longe de ideologia. Há alguns anos, prolifera-se uma verdadeira indústria do turismo a Jerusalém, comando por pastores midiáticos e empresas voltadas ao público religioso. Ironicamente, os mais pomposos tratam de dar uma esticadinha na luxuosa Dubai, que tem tanto a ver com a bíblia quanto Osasco, aqui em São Paulo.

Massacre não tem nada a ver com religião
É comum pastores e igrejas apresentarem a questão como uma espécie de “batalha espiritual”. Porém o que ocorre de fato é a ação de um Estado, criado de forma artificial pelo império britânico e apoiado hoje pelos EUA, que o tem como seu enclave militar. Os palestinos, assim, são um “problema” a ser eliminado. O discurso religioso é usado de forma cínica para esse objetivo.

Muitos operários são evangélicos, e respeitamos suas crenças. No entanto, a luta contra o genocídio palestino não é uma luta contra a religião, mas sim contra um projeto de colonização, limpeza étnica e genocídio a serviço do imperialismo. Tanto que existem evangélicos que se posicionam contra isso, a exemplo de inúmeros grupos judeus antissionistas. Convidamos as companheiras e os companheiros evangélicos a se unirem a nós nesta luta.

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Diego Cruz

“The Lobby”: censurado por Israel (Parte 3)

O terceiro episódio da série mostra como se articula a rede de difamação de ativistas pacíficos em favor dos direitos dos palestinos – e revela quem está por trás da Canary Mission: o presidente do Conselho Americano-Israelita e magnata do ramo imobiliário Adam Milstein. Sua identidade havia escapado dos ativistas pró-Palestina por anos, apesar dos esforços constantes para revelá-la.

Condenado por fraude fiscal em 2009, Milstein financia inúmeras organizações pró-Israel. Em uma conversa com o repórter infiltrado da Al Jazeera, ele também evidenciou a estratégia para minar o ativismo pró-Palestina: “Antes de mais nada, investigue quem são eles. Qual é a agenda deles? Eles estão se implicando com os judeus porque é fácil, porque é popular. Precisamos expor o que eles realmente são”, afirmou. “Precisamos botá-los para correr”.

Também sem saber que estava sendo gravado, o então diretor de desenvolvimento do The Israel Project Eric Gallagher revelou: “Adam Milstein, ele é o cara que financia [a Canary Mission]”. Segundo ele, o magnata trabalha com pessoas focadas em espionagem digital.

“Há um grupo de pessoas anônimas que têm uma estratégia digital muito sofisticada para expor essas pessoas e garantir que as coisas colem nelas. Não há ninguém do lado deles fazendo isso, então você não tem que se preocupar com sua reputação”, confessou.

Apesar de ser a arma mais temida na guerra psicológica travada por grupos pró-Israel, a Canary Mission não está sozinha nessa estratégia suja de difamação e perseguição.

A Fundação de Defesa das Democracias, grupo ligado ao Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel, segue a mesma linha, forjando conexões infundadas entre o Hamas e os membros do BDS. O presidente da Organização Sionista da América, Morton Kelly, também reforçou: “Temos que deixar claro, de todas as maneiras possíveis, que eles estão sendo financiados e treinados por amantes perversos do Hamas”. O Hamas é oficialmente designado como uma organização terrorista pelos Estados Unidos, e o apoio material ao grupo é um crime.

O lobby de Israel também tem criminalizado o movimento não violento do BDS mais diretamente: dezenas de estados dos EUA aprovaram leis que proíbem e/ou penalizam o boicote a Israel. A Suprema Corte dos EUA, que atualmente é dominada por republicanos de direita, recusou-se este ano a ouvir uma contestação a uma dessas leis com base na liberdade de expressão.



Canary Mission à brasileira
Aqui no Brasil, o Instituto Brasileiro pela Liberdade começou a imitar o modus operandi da Canary Mission. Enquanto Israel comete um genocídio em Gaza, matando milhares de civis após o ataque do Hamas a israelenses em 7 de outubro, a organização criou um formulário para “identificar os professores universitários que apoiam o grupo terrorista Hamas dentro das instituições de ensino”.

O instituto esconde seu viés de extrema direita ao se definir como um promotor “da liberdade, da vida, da justiça, dos direitos humanos, da paz”. Mas suas ações recentes, além da criação do formulário, incluem a criação do 1º Colóquio Olavo de Carvalho em Duque de Caxias, cidade da Baixada Fluminense.

E a caça às bruxas não para por aí. Nesta semana, deputados bolsonaristas também começaram a divulgar em suas redes sociais nomes de brasileiros que seriam ligados ao Hamas. Uma das parlamentares chegou a pedir que seus seguidores enviem por e-mail provas de mais conexões de brasileiros com o Hamas. Segundo os deputados bolsonaristas, uma lista com os nomes foi enviada à embaixada americana com uma solicitação para que esses indivíduos tenham seus vistos dos EUA rejeitados ou revogados com base na acusação de serem apoiadores do terrorismo.

O deputado federal Ivan Valente, do PSOL paulista, foi apontado como um dos defensores do grupo terrorista. Em suas redes, ele afirmou: “Vamos ao STF [Supremo Tribunal Federal] com queixa-crime por injúria e difamação, ação civil por danos morais e Conselho de Ética”.

Diários do Apocalipse

Sob terror e escombros, humanidade e poesia. Crônica da guerra, por uma escritora palestina. A família confinada em Gaza. As bombas gritam, os telefones se calam. As mortes que não contam. Em meio ao terror de Israel, a Palestina viverá.


Por Sarah Aziza, no The Baffler | Tradução: Antonio Martins

Acordo cedo, de maneira estranha, em 7 de outubro, sonolenta após uma noite que terminou tarde. Coloco a chaleira para ferver e ligo o rádio na BBC. Um momento depois, ouço um noticiário que começa com “Lutadores palestinos de Gaza cruzaram a fronteira para Israel…”. Viro na direção do som desencarnado. Estou acostumada a acordar com notícias de violência na Cisjordânia – pelo menos uma manhã a cada semana começa assim, com uma história de ataques de colonos ou outra incursão do exercito de Israel. Labib Dumaidi, um estudante universitário palestino de dezenove anos, foi baleado ontem durante outro pogrom em Huwara, na Cisjordânia. Mas este relato é algo diferente, e minha mente luta para compreender as palavras. Gaza? Como?

* * *

Uma imagem: uma escavadeira estoura uma cerca em torno a Faixa de Gaza, vinda de Israel, e corpos passam pela abertura. Fora da câmera, um homem rouco grita em árabe: “Quebrei! Deus é grande! Quebrei!” Por um instante, Gaza já não significa inacessível, encurralada, inerte. Toda a minha vida, esse nome tem sido uma dor, amada e intransponível, íntima e fora de alcance. É a terra onde meu pai nasceu como refugiado, um lugar que ele amou apesar da Grande Tragédia [Nakba] que enroscou sua família por lá. Gaza, um lugar que nasceu em mim da primeira vez que ele me contou histórias do mar. Quando tinha seis anos, ele mergulhava no Mediterrâneo a caminho de casa, nadando nu na água até que seu irmão chegasse para puxá-lo de volta. Vejo Gaza retornar em seus olhos cada vez que ele avista as ondas.

Gaza, também o lugar onde meu pai viu minha avó cavar trincheiras à medida que se aproximava a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Ele não entendeu as valas até que os aviões rasgaram o céu. Por toda a vida, lamentei os familiares mantidos cativos lá, suas vidas tornando-se mais desesperadas a cada ano de cerco que começou em 2007. Prendi a respiração com eles através de quatro guerras, seus corpos presos sob céus em queda, impedidos de qualquer fuga. Um massacre tão rotineiro que Israel o chama de “aparar a grama”. Minha família e dois milhões de outros, enjaulados por um poder nuclear que os chama de ervas daninhas. Muitas vezes desesperei que jamais viveria para vê-los livres.

No entanto, por um instante, vendo aqueles corpos correndo sob o sol, parece absurdamente simples. Um muro é apenas um muro.

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“Lutadores palestinos romperam as barreiras israelenses…”. Aguardo a inevitável sequência – notícias de que esses guerrilheiros em potencial foram mortos, como é o destino da maioria dos palestinos que se rebelam. Em vez disso, ouço que dezenas de israelenses foram mortos – a contagem acabou de começar. Ruptura. O único status quo que já conheci – aquele em que qualquer violência desvia-se para a morte brutal dos palestinos – foi, ainda que brevemente, derrubado. Uma sensação estranha: minha visão embaçando, meu corpo se dividindo ao meio, as partes se separando. Meu corpo sabe o que ainda está além da minha capacidade de compreensão. Uma história terminou, e estamos caindo, já sangrando, na próxima.

* * *

Começam a chegar mensagens de um dos meus primos em Gaza começam: “Exatamente às seis e trinta [em 7 de outubro], acordamos com o som de mísseis partindo da Faixa de Gaza como relâmpagos. A pergunta repetida por todos foi: ‘O que está acontecendo???’. . . A situação até este momento não é nada. . . mas tememos a resposta da ocupação. Eles não nos deixarão dormir esta noite. . . Pedimos a Deus segurança. . .”

* * *

Levará dias para saber o número final de israelenses mortos pelo Hamas. Mas quando ultrapassa cem, entro em pânico. Embora meu estômago se revolte com imagens dos mortos, tenho certeza de que eles já estão sendo metabolizados pela máquina sionista. Receio a maneira como a violência – tanto real quanto fabricada – será alavancada para lançar um arsenal do tamanho de um século em uma jaula humana. Este é o cálculo cruel de nossa opressão: minha compaixão pelos mortos é ofuscada pelos números altos de nossos já mortos e dos que em breve morrerão.

“Eles nos chamam de terroristas, Sarah”. A voz do meu pai está perplexa, ferida. Por trinta anos, ele esperou, certo de que os Estados unidos retribuiriam seu amor. Estamos falando no domingo, 8 de outubro, e as últimas 36 horas passaram por nós como dentes. “Eles chamaram isso de massa…?”. Sua boca gagueja a palavra em inglês. “Massacre, Baba. Isso significa matar em grande escala. E sabe de uma coisa? Acho que foi um massacre… Muitas pessoas foram mortas”. Na cozinha, meu parceiro judeu mantém-se discreto sobre o fogão, preparando comida que não iremos provar. Meu pai suspira. Estamos nos afogando em um luto complexo.

É uma pesar muito maior que as palavras. Grande o suficiente para reconhecer a dor judaica, tanto recente quanto histórica. Como palestina, recuso-me a imitar o opressor negando a humanidade dos falecidos. Mas essa tristeza situa-se dentro da cratera da certeza de que o mundo continuará a recusar a nossa. É um abismo esculpido por décadas de discurso, no qual apenas certos corpos sangram. Dentro deste consenso, não há desapropriação violenta da nossa terra, nenhuma forma aceitável em que possamos resistir às nossas muitas mortes lentas e instantâneas. Recusa o fato de que, por décadas, enterramos centenas de mortos para cada israelense morto. Nesse olhar seletivo do Ocidente, só há a nossa barbárie, que deve ser brutalmente contida.

Para o meu pai e para mim, o assassinato de cidadãos israelenses em 7 de outubro vibra com uma familiaridade primal, uma espécie de déjà vu. Minha família foi expulsa etnicamente da região a nordeste da Faixa de Gaza durante a Nakba em 1948 – bem perto do local dos ataques. Muitos dos meus parentes perderam irmãos, pais e filhos para balas e bombas sionistas. O horror vivenciado em 7 de outubro pareceu estranho, como se eu já tivesse visto isso antes. Essa ressonância não mistura tristezas ou histórias únicas, mas para nós a terra há muito tempo está assombrada, o chão já está manchado. Por mais chocados que estejamos com os ataques, também os vemos pelo que são – as convulsões inevitáveis de um corpo político violento. A erupção de uma verdade purulenta: a de que um regime de apartheid é sempre um território de morte.

* * *

“The Lobby”: censurado por Israel (Parte 2)

Viagens luxuosas com tudo pago, financiamento de candidatos e destruição política de parlamentares que incomodam. É assim que os grupos de lobby pró-Israel garantem o apoio de parte do Congresso americano ao país. As táticas pesadas combinam com o que está em jogo: Israel já recebeu mais de 157 bilhões de dólares dos EUA desde 1951 e depende de seu forte apoio diplomático e militar para continuar suas políticas, impopulares em grande parte do resto do mundo.

No primeiro episódio de “The Lobby – USA”, você viu como o governo israelense e grupos pró-Israel tentam minar o movimento pró-Palestina em uma universidade da Califórnia. Agora, o repórter infiltrado da Al Jazeera James Kleinfeld revela como o lobby israelense atua para garantir o apoio incondicional de parlamentares americanos a Israel.

“Os deputados e senadores não fazem nada, a menos que você os pressione. Eles empurram com a barriga, a não ser que você pressione. A única maneira de fazer isso é com dinheiro”, disse David Ochs, fundador da Ha Lev, organização que paga para enviar jovens para a conferência do Comitê Americano de Assuntos Públicos de Israel, conhecido como AIPAC.

Não estamos falando de pouca grana. A AIPAC é capaz de levantar centenas de milhares de dólares para políticos que atendam a seus interesses – o maior deles, garantir o apoio militar dos EUA a Israel. Mas não é só por meio do financiamento de parlamentares favoráveis ao estado israelense que o lobby garante a defesa de sua agenda no Congresso americano.

“Se você se tornar crítico em relação a Israel, você não apenas não receberá dinheiro, como a AIPAC fará de tudo para encontrar alguém para concorrer contra você e apoiar essa pessoa muito generosamente. O resultado final é que você provavelmente perderá seu mandato no Congresso”, detalhou John Mearsheimer, coautor do livro “O Lobby de Israel”.

Eric Gallagher, diretor da AIPAC entre 2010 e 2015, revelou que tudo o que a organização faz tem como objetivo influenciar o Congresso. “Você não pode influenciar diretamente o presidente dos Estados Unidos, mas o Congresso pode”, explicou, sem saber que estava sendo gravado.
     
 

O uso de “antissemitismo” para defender Israel
Na segunda parte deste episódio, o jornalista infiltrado mostra as investidas do lobby em prol de Israel contra mais estudantes americanos e a tentativa de ampliar o significado de antissemitismo para englobar toda e qualquer crítica ao estado de Israel e a seu governo.

Desta vez, o alvo é a Universidade de Tennessee, estado do sul dos EUA onde a população evangélica cresce rapidamente. Como no Brasil, os evangélicos americanos também têm um laço dúbio com Israel.

Por um lado, defendem o estado com unhas, dentes e dinheiro. Isso por acreditarem que, para Jesus voltar à Terra, os judeus devem estar no controle de Jerusalém. Por outro, propagam antissemitismo: reduzem a população judaica a mero instrumento para o retorno de Cristo e creem que, após cumprirem essa missão, os judeus ou se converterão ao cristianismo, ou serão “merecidamente” dizimados por serem judeus – e enviados para o inferno por toda a eternidade.

“Acho incrivelmente preocupante que, numa época em que vemos um aumento do verdadeiro antissemitismo às claras nos Estados Unidos, existam aqueles que afirmam: ‘Ah, sim, estamos tentando acabar com o antissemitismo’, quando o que eles estão realmente tentando fazer é acabar com a defesa dos direitos humanos palestinos”, resumiu o rabino Joseph Berman, parte da campanha Jewish Voice for Peace [Voz Judaica pela Paz], o grupo antissionista sediado em Washington D.C.

“The Lobby”: censurado por Israel (Parte 1)

Os defensores do governo de Israel não querem que você saiba que ele tem um grande flanco aberto: o apoio dos Estados Unidos. E é por isso que, quando um jornalista disfarçado da Al Jazeera se infiltrou em organizações influentes do lobby israelense junto ao governo americano, acabou provocando um incidente diplomático internacional – e descobrindo casos de espionagem, difamação e até investidas do estado israelense contra universitários americanos. 
Este é o primeiro de quatro episódios da série censurada por Israel, disponível pela primeira vez em português. Ele revela como representantes do governo israelense e de outros grupos pró-Israel nos EUA atuam para estrangular o movimento pró-Palestina Boicote, Desinvestimento e Sanções em um campus universitário da Califórnia.

Massacres de Israel contra a Palestina

Violência contra civis de Israel é condenável, mas a história está cheia de ataques a palestinos – e mostra que colonizadores só cedem com faca no pescoço.

Bruno Huberman
Professor do Curso de Relações Internacionais da PUC-SP.


O contexto importa para entender o que se passa na Palestina, mais particularmente em Gaza, desde 7 de outubro. A ofensiva militar liderada pelo Hamas não surgiu como um raio no céu azul. Os guerrilheiros palestinos que improvisaram drones e outras formas de superar o bloqueio terrestre, aéreo e marítimo imposto sobre a Faixa de Gaza desde 2005 são o estouro da panela de pressão.

Importante destacar: a violência que gera mortes de civis, como na ofensiva do Hamas, não deve ser justificada sob nenhum ponto. O objetivo aqui é compreender a razão que faz os palestinos recorrerem à violência para lutar por libertação nacional. E a razão principal é a violência colonial sionista-israelense.

Este é o ataque palestino mais letal desde o início da colonização sionista-israelense da Palestina no final do século 19. Foi a primeira vez, desde 1948 (quando o estado de Israel foi criado por meio de um processo de limpeza étnica), que palestinos retomaram território expropriado pelos israelenses.

Descolonização, como muitos palestinos têm lembrado desde sábado, não é uma metáfora, não é um discurso, não é uma teoria acadêmica, mas um ato material de retomada de terra, libertação e autodeterminação. A questão é que, aos povos colonizados, como os palestinos, muitas vezes não resta outra alternativa a não ser a violência. Frantz Fanon, intelectual martinicano ativo na libertação anticolonial da Argélia contra a França nos lembra: o colonizador cede apenas com a faca no pescoço.

As descolonizações, ao longo da história, sempre envolveram, em maior ou menor grau, formas de violência por parte dos povos colonizados. Isso porque o colonialismo é a representação da violência pura. E a única linguagem que ele compreende, segundo o mesmo Fanon, é a violência. O intelectual martinicano acrescenta: a violência ainda é essencial para a humanização do colonizado. Para a sua transformação em novos homens e mulheres que deixem de ser objetificados e animalizados pelo colonizador.

Algo muito similar é dito pelo intelectual C.R.L. James sobre a libertação dos haitianos contra os mesmos franceses e por Rosemary Saiygh. Ela mostra como os refugiados palestinos que viviam sob opressão do Líbano em campos de refugiados se sentiram humanizados quando guerrilheiros palestinos pegaram em armas e assumiram o controle dos campos para lutar por sua libertação e retorno à Palestina.

O resultado do levante dos palestinos no Líbano foi o massacre de Shabra e Shatila, em 1982. A milícia libanesa formada por cristãos maronitas de direita, a Kataib, aliada de Israel na Guerra Civil do Líbano, assassinou entre 800 e 3,5 mil palestinos, incluindo idosos e crianças. O ataque contou com apoio das tropas israelenses que ocupavam Beirute sob a anuência do então ministro da Defesa de Israel, Ariel Sharon.

Esse foi o mais famoso de uma série de massacres que os israelenses provocaram contra os palestinos. Essa é a realidade da Palestina desde a Nakba, que é o termo em árabe para catástrofe, que os palestinos utilizam para designar a tragédia que o seu povo sofreu no processo de criação de Israel e da Guerra Árabe-Israelense de 1948-1989. Isso porque, além da expulsão em massa e da criação da diáspora palestina (são aproximadamente 7 milhões de refugiados espalhados pelo mundo), aconteceram diversos massacres contra a população nativa.

O maior deles ocorreu no vilarejo de Dawayima, perto de Hebron, quando 145 palestinos foram executados por militares israelenses, em 29 de outubro de 1948. Mas o massacre mais famoso aconteceu no vilarejo de Deir Yassin, próximo a Jerusalém. Na ocasião, integrantes das milícias sionistas de direita Gang Stern e Irgun mataram 110 palestinos – incluindo 30 crianças – depois que a liderança palestina do vilarejo fez um acordo de não agressão com a principal milícia sionista, a Haganah.

O ataque provocou pânico nos palestinos dos vilarejos do entorno e causou a fuga de milhares durante as operações israelenses de conquista de Jerusalém. Os massacres contribuíram decisivamente para o que o historiador israelense Ilan Pappe chamou de processo de “limpeza étnica” na Palestina.

Massacres de Israel contra palestinos se acumulam
Listo aqui os massacres cometidos por Israel contra os palestinos antes do conflito iniciado este mês. O compilado foi feito pelo historiador Nur Masalha em seu livro “The Palestine Nakba: Decolonising History, Narrating the Subaltern, Reclaiming Memory” [“A Nakba palestina: descolonizando a história, narrando o subalterno e reivindicando a memória”] e atualizado por mim:

Qibya, em outubro de 1953: tropas israelenses da Unidade 101 atacaram o vilarejo de Qibya, na Cisjordânia, matando 69 palestinos. Muitos se escondiam em suas casas quando bombas explodiram as residências. Foram destruídas 45 casas, uma escola e uma mesquita.

• Kafr Qasim, em outubro de 1956: a polícia de fronteira israelense massacrou 48 cidadãos palestinos de Israel, incluindo seis mulheres e 23 crianças.

Vilarejos na Galileia, em março de 1976: seis cidadãos palestinos de Israel foram mortos, 100 foram feridos e outros 100 foram presos em protestos contra a expropriação de terras na Galileia pelo estado de Israel.

Hebron, em fevereiro de 1994: foram massacrados 29 muçulmanos dentro de uma mesquita em Hebron pelo colono fundamentalista judeu Baruch Goldstein.

Campo de refugiados de Jenin, em abril de 2002: o Exército de Israel atacou o campo usando bulldozers, tanques e helicópteros. Estima-se que morreram centenas de homens, mulheres e crianças, embora não se saiba o número exato, pois muitos foram enterrados sob os escombros.

Intifadas em 1987, 1993, 2000 e 2002: milhares foram mortos e feridos pelo Exército de Israel.

Gaza, em dezembro de 2008: 1.417 palestinos foram mortos, sendo mais de 900 deles civis.

Gaza, em novembro de 2012: 174 palestinos foram mortos e centenas ficaram feridos em uma ação israelense para assassinar o dirigente militar do Hamas, Ahmad Jabari.

Gaza, em julho e agosto de 2014: o sequestro de três jovens israelenses pelo Hamas resultou em uma guerra de sete semanas em que 2,1 mil palestinos e 73 israelenses foram mortos, incluindo seis civis de Israel.

Gaza, em março de 2018: milhares de palestinos protestaram próximos à cerca em torno de Gaza na Marcha do Retorno. As tropas israelenses abriram fogo e mataram 170 palestinos ao longo de vários meses de protesto, resultando em um novo confronto entre Hamas e Israel.

Gaza, em maio de 2021: depois de meses de tensão durante o Ramadan, centenas de palestinos foram feridos em um dia de reza na mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém. O Hamas demandou a desocupação israelense. Em um confronto que durou 11 dias, 260 palestinos e 11 israelenses foram assassinados em Gaza.

O resultado de décadas de colonialismo israelense é a formação de um apartheid em todo o território da Palestina. Dentro de Israel, existem os palestinos que sobreviveram à Nakba e que compõe cerca de 20% da população israelense como cidadãos de terceira classe. Eles são uma minoria marginalizada, mas com direitos civis.

Nos territórios palestinos ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza desde 1967, Israel é soberano e não oferece direito algum aos palestinos. A Autoridade Nacional Palestina, estabelecida nos Acordos de Oslo, tem o poder de uma prefeitura: assegura serviços como educação, saúde, transporte, etc. Mas o poder de controlar fronteiras, finanças, comércio, entre outros, pertence exclusivamente ao estado de Israel, o que limita severamente a autodeterminação palestina.

Anos de cooperação de segurança e reza à cartilha neoliberal de desenvolvimento pela ANP não resultaram na criação de um estado da Palestina. A moderação do grupo dirigente da ANP, o Fatah, e a negociação diplomática trouxe apenas mais colonização para os palestinos. Essa é a razão de o Hamas ainda optar pela resistência violenta, como fizeram diferentes grupos guerrilheiros palestinos durante a Guerra Fria.

Em Gaza, é onde os palestinos têm a vida mais restrita. Onde ninguém entra nem sai. Onde Israel controla a entrada de alimentos calculando a quantidade de calorias mínimas para sobrevivência dos 2 milhões de palestinos. Onde bombas caem do céu e destroem prédios inteiros. Onde a ONU considera a vida “invivível”. Uma distopia na realidade. É nesse ambiente que a radicalidade do Hamas ferve e explode.O que acontece agora em Gaza é uma continuação do que ocorre desde 1948. É por isso que os palestinos dizem viver uma “Nakba contínua” , isto é, uma catástrofe diária. Os massacres se repetem, as expulsões se repetem, as demolições de casas e vilarejos se repetem. A negação da autodeterminação palestina por meio da ocupação militar na Cisjordânia e na Faixa de Gaza criou uma panela de pressão de insatisfação e ressentimento entre os palestinos. No sábado, ela estourou.


Repito: a violência do Hamas é fruto do colonialismo israelense, que segue a lógica dos colonialismos por povoamento, segundo o teórico australiano Patrick Wolfe. Enquanto houver terra indígena, os colonos buscarão expropriá-la. Enquanto houver resistência indígena, os colonos buscarão silenciá-la. A ofensiva dos ruralistas brasileiros sobre as terras indígenas na proposta do Marco Temporal revela como essa lógica vai do Brasil a Israel, passando também por países como EUA, Canadá, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia. A eventual reação violenta de indígenas contra o roubo de terras por grileiros operaria na mesma racionalidade observada em Gaza.

Importante ressaltar que os palestinos têm encontrado diferentes formas de resistir ao longo da história além do levante armado. Manifestações em massa, boicotes e auto-organização são algumas das formas utilizadas para lutar por sua libertação nacional. E, embora a luta armada possa ser importante para fazer os palestinos serem ouvidos globalmente e interromper a normalização da sua ausência de liberdade, ela nunca trouxe vitórias significativas para a conquista do seu estado. O aumento da opressão após a Segunda Intifada e o fim das negociações diplomáticas entre Israel e palestinos demonstram o fracasso da luta armada.

Será somente com o combate à ordem internacional liderada pelos EUA, que permite que esse regime de apartheid colonial se mantenha de pé, que virá a libertação da Palestina. Essa é a importância de trazer à tona a lógica colonial que estrutura a violência opressora contra os povos indígenas na Palestina e em diferentes localidades do mundo, para construir novas alianças internacionais de solidariedade capazes de mover a descolonização.

Fonte: https://www.intercept.com.br/2023/10/13/israel-estes-sao-os-maiores-massacres-contra-a-palestina/