Io Sì - Laura Pausini

Quando você fica sem palavras

Estou aqui
Estou aqui
Talvez te sirvam apenas duas
Estou aqui
Estou aqui
Quando você aprende a sobreviver
E aceita o impossível
Ninguém acredita
Eu sim

 

Eu não sei
Qual é o seu destino
Mas se quiser
Se me quiser
Estou aqui
Ninguém te escuta
Mas eu sim

Quando você não sabe mais onde ir
Estou aqui
Estou aqui
Você foge ou ergue as barreiras
Estou aqui
Estou aqui

Quando ser invisível
É pior do que não viver
Ninguém te vê
Eu sim

Eu não sei
Qual é o seu destino
Mas se quiser
Se me quiser
Estou aqui
Ninguém te vê
Mas eu sim

Quem se ama sabe
Serve encanto e realidade
Às vezes basta aquilo que há
A vida à sua frente

Eu não sei
Qual é o seu destino
Mas se quiser
Se me quiser
Estou aqui
Ninguém te vê
Eu sim
Ninguém acredita
Mas eu sim

Supermarket Flowers (Flores de Supermercado)

I took the supermarket flowers from the windowsill
I threw the day old tea from the cup
Packed up the photo album Matthew had made
Memories of a life that's been loved

Took the Get Well Soon cards and stuffed animals
Poured the old ginger beer down the sink
Dad always told me: Don't you cry when you're down
But mum, there's a tear every time that I blink

Oh, I'm in pieces, it's tearing me up, but I know
A heart that's broke is a heart that's been loved

So I'll sing hallelujah
You were an angel in the shape of my mum
When I fell down you'd be there holding me up
Spread your wings as you go
And when God takes you back He'll say: Hallelujah, you're home

I fluffed the pillows, made the beds, stacked the chairs up
Folded your nightgowns neatly in a case
John says he'd drive then put his hand on my cheek
And wiped a tear from the side of my face

I hope that I see the world as you did, 'cause I know
A life with love is a life that's been lived

So I'll sing hallelujah
You were an angel in the shape of my mum
When I fell down you'd be there holding me up
Spread your wings as you go
And when God takes you back He'll say: Hallelujah, you're home

Hallelujah
You were an angel in the shape of my mum
You got to see the person I have become
Spread your wings and I know
That when God took you back He said: Hallelujah, you're home

Ed Sheeran



Eu peguei as flores de supermercado do peitoril da janela
Joguei fora o chá velho
Empacotei o álbum de fotos que Matthew fez
Memórias de uma vida que foi amada

Peguei os cartões de melhoras e os bichinhos de pelúcia
Derramei a velha cerveja Ginger ralo abaixo
Meu pai sempre me disse: Não chore quando você estiver pra baixo
Mas mãe, há uma lágrima toda vez que eu pisco

Oh, eu estou em pedaços, rasgado, mas eu sei
Um coração que está quebrado é um coração que tem sido amado

Então eu vou cantar: Aleluia
Você foi um anjo na forma da minha mãe
Quando eu caí você esteve lá me segurando
Abra suas asas enquanto você vai
E quando Deus te receber de volta vai dizer: Aleluia, você está em casa

Eu afofei os travesseiros, arrumei as camas, empilhei as cadeiras
Dobrei sua camisola bem arrumada em uma mala
John disse que iria dirigir e colocou a mão em minha bochecha
E enxugou uma lágrima que escorria

Espero que eu veja o mundo como você viu, porque eu sei
Uma vida com amor é uma vida que foi vivida

Então eu vou cantar: Aleluia
Você foi um anjo na forma da minha mãe
Quando eu caí você esteve lá me segurando
Abra suas asas enquanto você vai
E quando Deus te receber de volta vai dizer: Aleluia, você está em casa

Aleluia
Você foi um anjo na forma da minha mãe
Você viu a pessoa em que me tornei
Abriu suas asas e eu sei
Que quando Deus te recebeu, Ele disse: Aleluia, você está em casa

Era uma vez...

Se alguma música pudesse definir minha personalidade ou minha própria vida em toda sua totalidade, esta seria C’era una volta il West de autoria do italiano Ennio Morricone (tema do filme de faroeste Once upon a time in the West, versão brasileira: Era uma vez no Oeste), revelo isto com temor de ser linchado pelos fundamentalistas modernos, já que a música que mais me fala à alma é uma música secular e não uma música sacra, além disso ela não tem letra e fala mais que muitas músicas que só tem palavrório sem melodia e harmonia. É triste e bela, tão triste quanto bela, triste ainda que bela, bela ainda que triste. Só aqueles que associam a beleza apenas às coisas alegres, pensamento fruto da pós-modernidade vaga e de modismos efêmeros, não conseguirão entender isto que eu estou apregoando, posso até parecer um arauto louco ou bêbado em cima de um telhado, mas pelo menos tenho a coragem de gritar o que penso sem fazer coro com a massa.



O início suave, quase imperceptível da música, a leveza do trinado das cordas, o piano que parece ter vida própria e querer falar, a harmonia da orquestra, a coesão dos instrumentos, a sensação de que nada é inadequado ou que está fora do lugar, o êxtase qual onda que quebra na praia, o sentimento de paz que se instala após a passagem do turbilhão avassalador e aquele solfejo triste da solista, qual Polimnia a musa grega do canto solene, encantam minha alma, com a mesma intensidade que a entristecem, o único ato propício, como uma liturgia recomendada por meio de rubrica, para ouvir adequadamente é fechar os olhos e calar, só assim, desligando alguns periféricos é possível ouvir com a alma, os olhos abertos podem distrair, as palavras ditas, por mais belas que sejam se mostram inadequadas.

Se compararmos essa “universidade” musical com a superficialidade das músicas gospel de hoje de pouca letra e menos acordes ainda, não fica difícil entender a minha preferência por ela, as músicas contemporâneas parecem mantras, versos repetidos à exaustão, vãs repetições já dizia o evangelho. Quando a música acaba fica uma sensação de vazio que só passa quando eu volto e a ouço novamente, hoje com comodidade graças ao controle remoto, santa tecnologia! Antes tinha que fazer um esforço físico grande para mover o braço mecânico da radiola e posicionar no começo da faixa do disco de vinil. Sei que quando a ouço eu fico triste, mas a ouço exatamente para isso. Quando quero ficar reflexivo, pensativo, sondar minha própria alma, eu me sento e vou ouvi-la, não há saída, ao ouvir alimento minha alma, às vezes de uma tristeza profunda e de sentimentos inexplicáveis, sou tomado de uma sensação, que não sei definir, e não consigo fugir disso.

Já devo ter ouvido esta música pelo menos umas 5.000 vezes, ainda pretendo ouvir mais umas 10.000, mormente depois que eu me aposentar, mas a sensação é de que estou ouvindo pela primeira vez, os sentimentos se renovam ao primeiro acorde. Parece estranho este fato, principalmente para alguém que se sente inadequado quando tem que cantar o mesmo estribilho 10 ou quinze vezes só porque um ministro de louvor, que tem vontade de parecer com André Valadão, quer, tem alguns que até a flanela põe no bolso para ficarem mais caricatos, seria risível, se não fosse tão ridículo.

 Quando tinha uns 10 anos de idade eu era apaixonado por filmes de faroeste, ainda sou, mesmo hoje com 52 anos de idade, e a TV do Grande Irmão, que à época era apenas o braço direito na área de comunicação da ditadura militar, gostava de passar filmes que não permitiam a reflexão social, era para entreter, hoje é para “emburrecer” mesmo. Um dos que mais repetiu foi o citado Era uma vez no Oeste, com toda a poesia da direção do italiano criador de metáforas Sérgio Leone, a fotografia impecável, a capacidade de dar a uma cena de uma goteira uma dimensão inigualável e fazer de uma mosca uma atriz coadjuvante, o latinismo visceral, a atuação de grandes atores (como o novato Charles Bronson, o já veterano Henry Fonda e o expressivo e assustador Jason Robards) e a trilha sonora assinada pelo mestre Ennio Morricone, muito embora esta à época me passasse despercebida. Eu adorava assoviar a música de “O Bom, o Mal e o Feio”, mas não me lembro de ter sentido nenhum êxtase ao ouvir C’era una volta il West quando Cláudia Cardinale (seria Melpômene a musa grega da tragédia?) descia na estação do trem e o crescente melodioso até o âmago na chegada à fazenda e encontrar seu marido e os filhos deste todos mortos pondo um aparente fim à possibilidade de uma vida decente para uma prostituta em recuperação.

 Quando eu tinha uns dezesseis anos tentei entrar para o seminário, tinha pressa em cursar teologia o quanto antes possível para exercer o sacerdócio, quanto antes eu estivesse pronto mais rápido o mundo seria consertado, era mais ou menos o que eu pensava, não me deixaram entrar, o mundo deve ter agradecido, porém a “salvação” do mesmo foi adiada um pouco, era muito novo, como prêmio de consolação me colocaram num grupo teatral, composto em sua maioria de alunos do seminário, que tinha como missão despertar vocações nas igrejas da região.

Uma das minhas participações era como soldado comunista, eu vestia uma farda de verdade e junto com outros seminaristas (o hoje Rev. Alexandre da Igreja Episcopal Carismática e o também Rev. Marco Cosmo da Igreja Anglicana) representávamos soldados do então regime comunista que torturavam pastores, missionários e até mesmo leigos cristãos, era época da Guerra Fria e “Torturado por amor a Cristo”, “Ivan”, “Perdoa Natasha” e “Torturado por sua fé” estavam em evidência, eu já os tinha lido várias vezes e tinha uma grande vontade de ser missionário no leste europeu, porém na peça eu é que estava por trás do gatilho, recebíamos então ordens do “General” Zózomo Malta (isso mesmo, não escrevi errado o nome do sujeito é esse mesmo, Zózomo, irmão do Senador Magno Malta) para arrancar as unhas dos cristãos.

Os que representavam os missionários colocavam unhas feitas com pedaços de plástico de carretel de linha de costura, que eram presas com sabão, fingíamos então que cada unha era arrancada com alicate, o sangue de “brincadeira” escorria pelos braços e os gritos convincentes deixavam a plateia em prantos e depois atirávamos neles com revólveres de espoleta, que nem sempre davam tiros com qualidade, parecia que “a bala pinava”, os nossos missionários portavam por baixo da roupa um “saquinho” com suco de uva que ao ser apertado vazava parecendo sangue, o que dava um tom de realismo às cenas. Quantas crianças não fizemos chorar de medo, tínhamos que mostrar depois que era de brincadeira e que ninguém tinha morrido. 

A música que fazia fundo musical para a cena era essa, confesso que não associava a música ao filme, não fazia essa ilação. Um dia ao ouvir intencionalmente na casa de um parente essa música me dei conta das duas épocas de minha vida que ela tinha marcado e desde então eu passei a ouvi-la cada vez mais intensamente. 

Um dia estava fazendo terapia em grupo, não sei quanto ao grupo, mas eu num aprendi nada daquilo tudo e nem aproveitei uma linha sequer de caderno pequeno, quando a psicóloga colocou essa música eu travei, ela tinha invadido meu santuário particular, pois a música falava demais ao meu coração e o que ela falava não combinava com o momento, foi desde então que eu a “canonizei”, só a ouço em momentos especiais e que eu mesmo tenha escolhido ouvir, não gosto de intromissão. Até hoje não perdoei àquela psicóloga por tamanha heresia. 

Muito tempo depois, não sei se foi sonho ou realidade, estava deitado numa praça bastante arborizada pensando na vida, sempre que não estamos fazendo nada, dizemos que estamos pensando na vida, até parece um contrassenso ou que a vida não vale nada para nós, já estava meio sonolento e quase dormindo, quando de repente ouvi esta música tocando, no começo tocava baixo, depois foi aumentando, ainda sem acreditar me ergui sobressaltado, a sensação que tenho hoje é que senti pânico (o sentimento trazido pelo mítico Pã), e vi que era um carro de som que havia parado próximo à praça e que tocava a música, tocava e repetia sem parar, achei que estava morrendo com minha cabeça repousada no colo de uma ninfa do bosque ou de uma náiade e que os anjos do céu ou as fortes e doces valquírias nórdicas tinham vindo me buscar tocando a música de minha preferência.

Seria uma ótima forma de se despedir da vida e entrar na eternidade, provavelmente não sentiria medo, tal era o êxtase, mas justamente por conta deste que eu queria permanecer vivo, a sensação de paz era maior que eu mesmo. A melhor definição do que senti naquele momento é o que disse o Leone sobre a película: “O ritmo do filme pretendeu criar a sensação dos últimos suspiros que uma pessoa exala antes de morrer. Era uma vez no Oeste é do começo ao fim, uma dança da morte...”. Na hora de partir da vida, tendo como fundo musical esta música, nada melhor que tirar a morte para uma dança. Ela vai gostar, há muito que não se diverte, trabalha demais e a área de atuação dela é muito sombria. 

Desde este dia decidi que se eu não morrer ouvindo esta música, pelo menos que a toquem em meu velório, tenho certeza que ela, naquele momento, não me poderá deixar triste, será vez de ouvi-la e sorrir, será a vez de mudar a história, será o momento de cantar definitivamente “era uma vez...

Diário de um confinado (6º dia)


Não fiz nada de relevante nos dias anteriores, comprar caldo para 08 dias e almoço para 05 ou 06 dias não é algo que mereça registro, bem como tomar banho, fazer café e sentar defronte a um notebook e tentar estabelecer uma rotina de trabalho com eficiência e produtividade.

Hoje me deparo com a noticia de que o presidente (sic) inseriu cultos religiosos como atividades "essenciais" que não poderiam ser impedidas de serem realizadas por decretos estaduais ou municipais.

Obviamente que o miliciano simplório atende aos pleitos de sua base dita evangélica que se queixa das igrejas fechadas, pois vislumbra que a arrecadação de dízimo será bem menor, as pessoas em casa não seriam presa fácil, pois o clima estático que cria nas reuniões para pedir as doações não teria o mesmo efeito aos que estão sentado no sofá com inúmeras distrações.

Postei um vídeo para mostrar o que os charlatães americanos estão falando sobre a pandemia, aqui em breve estará assim também, brasileiro não pode ver uma heresia americana que ele logo quer seguir.

Chegamos ao cúmulo da justiça estadual obrigar a um desse líderes (o charlatão e facínora do Silas Malafaia) a não realizar reuniões presenciais, para não colocar a população em risco de contágio.

Ainda há quem defenda um canalha desse... 

Diário de um confinado (2º dia)


Mesmo estando aqui em Uberaba, ontem eu consegui reunir minha família em diversos lugares: Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes, por meio de um desses aplicativos de chamadas de vídeos e tivemos alguns momentos lúdicos e de descontração, em meio a um momento de medo, pânico e incertezas. 

Lembrei de quando nós éramos crianças e nos deitávamos no chão da sala para ouvir meu pai contar histórias e estórias. Sempre que ele contava um conto pela segunda vez, descobríamos que ele havia acrescentado um final diferente ou um viés diferente, era a forma que ele tinha de nos entreter numa época sem TV e tantas outras formas de distração. 

Também pude acompanhar algumas manifestações da população batendo panelas para ironizar o aniversário do presidente (sic) e de alguns grupos evangélicos que foram às janelas cantar um hino que fala de ressurreição e destemor diante da morte. 

O hino diz mais ou menos isso: "... Porque Ele vive, posso crer no amanhã/ Porque Ele vive, temor não há/ Mas eu bem sei, eu sei, que a minha vida/ Está nas mãos de meu Jesus, que vivo está/ E quando, enfim, chegar a hora/ Em que a morte enfrentarei/ Sem medo, então, terei vitória/ Irei à Glória, ao meu Jesus que vivo está..."

A manifestação tinha como objetivo reafirmar a fé inconteste na ressurreição de Jesus, tema central da fé cristã, mas, também, e é aqui que perde todo o sentido, de "abafar" as manifestações de críticas a Bolsonaro, já que os grupos pentecostais são aliados de primeira hora do miliciano e não perdem uma oportunidade de angariar créditos e favores do executivo, na busca por consolidação do projeto de dominação e poder dos seus líderes inescrupulosos. 

A música também tem um efeito de alienação e tem um tema preocupante: se o crente não tem medo diante da morte, seja ela qual for, por que então se trancar em casa com medo do contágio, se ele pode ir à igreja (dar o dízimo, obviamente) para louvar a Deus ou ainda, evangelizar nas ruas em busca de almas perdidas?

Vi outra postagem hoje numa rede social que alegava que não precisavam de vacina, pois o sangue de Jesus protegia aqueles que creem nele, tal como o sangue do cordeiro protegeu os israelitas no Egito, durante o evento das dez pragas.

Isso não é fé, é puro fanatismo e irresponsabilidade. Já não bastam os despautérios de Bolsonaro com sua tentativa de minimizar o tamanho do problema e ainda vem seus apoiadores tentarem desviar a atenção da população do que de fato vai trazer o escape dessa pandemia: ficar em casa.

Não, não é Deus e nem o sangue de Jesus que vai impedir que a nação sofra um holocausto, afirmar isso seria um desrespeito e desumano com as 14.611 vítimas fatais e as mais de 335.403 que foram contaminadas ao redor do mundo até esse momento (20h26).

Essa é uma crença de pequena parte da população, aquela que se diz cristã e, mesmo assim, boa parte do cristianismo que é sóbria e reflete sobre a fé sem fanatismo não propagaria isso. Não é que ter fé num momento desse é ruim ou atrapalha, o que atrapalha mesmo é o fanatismo.

Vi ontem um vídeo dos médicos cubanos (ateus em sua grande maioria) sendo aplaudidos num aeroporto da Itália, chegavam para ajudar a conter a peste inclemente. Com essa imagem me veio à mente a pergunta: quem estaria mais perto dos ensinos do Nazareno, os cubanos que estão arriscando suas vidas ao tentar ajudar os outros, que nem conhecem e nem são da mesma pátria ou Macedos e Malafaias da vida que tiveram que ser obrigados pela justiça a fechar seus templos (o que trará queda de arrecadação e prejuízo financeiro certamente)?

Pensar ainda é de graça e não faz mal.

Diário de um confinado (1º dia - II)


Por que um evangélico médio, aquele que não tem cargos na instituição eclesiástica que está inserido e nem recebe nenhuma renda da mesma, frequentaria os cultos ou reuniões em massa durante uma grave pandemia que põe em risco a integridade física e a existência dos que acomete?

É isso o que está sugerindo (não seria exigindo?) dois dos maiores "empreendedores" e "capitalistas" eclesiásticos do Brasil. Alcunhados por alguns como pastor e bispo, Silas Malafaia das Assembleias de Deus Vitória em Cristo e Edir Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus. 

Não é de hoje que esses dois líderes se envolvem com polêmicas e defendem práticas que estão muito distantes do evangelho do Nazareno e do ramo protestante majoritário tradicional. Aliados de primeira hora de Jair Bolsonaro, fica até difícil entender quem está explorando quem, já que os três são mestres em fingir ser o que não são para conquistarem seus objetivos de poder e dominação. 

Após mais de 40 anos como evangélico, hoje bem distante desse ramo e tendo me tornado um crítico desse movimento na última década, tenho vergonha de dizer que já fui um militante da causa protestante e até mesmo pastor e professor de seminário. Mesmo que sempre tenha desprezado figuras como Malafaia, Macedo, Santiago, Feliciano e tantos outros (difícil é achar um para elogiar...), ainda assim me sinto desconfortável quando vejo os caminhos que estão sendo trilhados por uma ampla maioria de igrejas e líderes eclesiásticos.

A resistência da dupla se deve mais à briga por espaço e poder que à teologia e crença que tenham. O medo desses dois é de que as pessoas deixem de contribuir em suas instituições e guardem o dinheiro ou mesmo gastem com coisas mais úteis. Quem fica em casa não dá dinheiro para igreja ou pastor, gasta com comida. Algo que esse dois não querem, precisam de dinheiro para alimentar suas redes de poder e influência.

Há muito que tenho chamado o Edir Macedo de adorador de Mamom (Mamom é um termo que aparece na Bíblia para se referir a bens terrenos. A palavra Mamom é uma transliteração do aramaico mamon e significa literalmente “dinheiro” ou “riqueza”.) e Silas Malafaia de homem de Belial (Belial é uma palavra de origem hebraica que aparece em algumas passagens bíblicas, principalmente na expressão “filhos de Belial”. No livro de Provérbios 6:12, o termo Belial é igualado ao hebraico ‘awen na expressão “homem de Belial”, cuja tradução frequentemente significa “iniquidade“, ou seja, “homem de Belial” equivale a “homem perverso”, “homem mau” ou “homem iníquo”.) pela busca desenfreada por poder, riqueza e influência que empreendem.

Guarde seu dinheiro, não apenas agora, mas sempre, Deus não precisa de nenhum centavo teu, não deixe que discurso de milionários, que enriqueceram às custas do povo ingênuo te façam continuar sustentando a vida de luxo e ostentação desses canalhas charlatães. Malafaia há muito tempo trocou o púlpito pela militância política, distanciando-se cada vez mais do perfil que se espera de um pastor, até quando você ainda vai chamar e tratar um impostor por "homem de Deus"?

Já fui por muitos anos dizimista, há muito tempo que direciono a minha renda para outras coisas, inclusive poupança para o futuro incerto, e nem por isso estou "amaldiçoado", como esses vermes vorazes apregoam todos os dias, causando pânico nas pessoas ingênuas.

Cada um faz o que a sua consciência e conhecimento permitem, a minha manda desligar a TV, guardar meu dinheiro para as necessidades futuras e hidratar minha mente com o que é sadio e edifica. Coisa que esses dois e outros tantos não são capazes de fazer. Não troque de canal (Globo por Record), desligue a TV e vá viver, vá ler a Bíblia ou um livro e conversar com seus familiares, vocês ganham muito mais com isso.

Chega um momento em que devemos escolher entre viver a vida que os outros querem que vivamos ou viver a vida para qual nascemos. É uma questão de escolha. 

Diário de um confinado (1º dia - I)


Hoje, como tantos bilhões de pessoas ao redor do mundo, eu estou confinado em casa. Distante de família (esposa, filha, mãe, irmãos, cunhados, sobrinhos e sobrinhos-netos) que está em Recife, Pernambuco, eu estou em Uberaba, no Triângulo Mineiro, cercado de livros e de pacotes de café. 

Esse é um diário de um sobrevivente. Sou do grupo de risco de vulnerabilidade ao Coronavirus disease (COVID-19), tenho mais de 50 anos e sofro de crises de asma. 

Acredito plenamente que o mundo nunca mais será o mesmo, depois que essa pandemia passar. Então, resolvi voltar a colocar as minhas impressões no blog, que há muito tempo não fazia. 

Esse mundo de egoísmo e individualismo será questionado num momento futuro, espero que esse momento seja breve e que essas discussões conduzam a humanidade a um patamar de maturidade, empatia, tolerância e respeito, sobretudo de compaixão com os desfavorecidos e necessitados. 

Não é possível que a humanidade remanescente, mesmo que o número de mortos não alcance 100.000, não aprenda nada com essa pandemia. O que temos visto é individualismo, egoísmo, xenofobia, racismo, ignorância e intolerância. Inclusive vindo de pessoas que a mídia e as redes sociais dão voz e visibilidade (principalmente do deputado Eduardo Bolsonaro, pródigo em asneiras e falastrão como o pai). 

Vamos ter muito o que conversar, então, puxa uma cadeira, pega uma xícara de cafe, estou apenas começando.

Se quiser e puder, vamos conversar, trocar impressões e aproveitar esse momento para buscar novas formas de viver a vida. 

Um homem bom é difícil de encontrar


A avó não queria ir para a Florida. Queria visitar uns parentes no leste do Tennessee e aproveitava todas as oportunidades para induzir Bailey a mudar de ideia. Bailey, o filho com o qual ela morava, seu único filho homem, sentado a mesa na beira da cadeira, dobrava-se sobre o alaranjado da pagina de esportes do Journal. "Olhe só isso aqui, Bailey, olhe só, leia isso aqui", disse ela em pé a seu lado, com uma das mãos no quadril magro e a outra esfregando outra folha de jornal na careca do filho. "Esse tal cara que fugiu da penitenciaria federal, o Desajustado, como ele mesmo se chama, e que foi justamente em direção a Florida... leia só o que diz aqui, veja o que ele fez com as pessoas. Vale a pena você ler. Eu é que não levaria os meus filhos, fosse lá para onde fosse, com um bandido desses assim a solta na área. Não ficaria em paz com a minha consciência."

Bailey não olhou para cima, não parou de ler o que lia, e ela então deu uma volta. Foi ficar cara a cara com a mãe das crianças, mulher nova, numa calça folgada, cujo rosto era tão largo e inocente quanto um repolho, estando envolto num lenço verde de cabeça amarrado com duas pontas no alto, como as orelhas de um coelho. Ela, sentada no sofá para alimentar o bebê, dava-lhe geleia de damasco que tirava do vidro. "À Flórida as crianças já foram", disse a velha senhora. "Deveriam leva-las a algum outro lugar, para variar, para que vejam diferentes partes do mundo e possam ter perspectivas mais amplas. Ao leste do Tennessee elas nunca foram."

A mãe das crianças nem pareceu escutar, mas o garoto de oito anos, John Wesley, parrudinho e de óculos, disse: "Se a senhora não quer ir para a Flórida, por que e que não fica em casa?". Ele e a menina, June Star, estavam lendo historias em quadrinhos no chão.

"Em casa? Duvido. Por nada desse mundo ela fica", disse June Star sem levantar a cabeça.

"Ah, é? E o que fariam vocês, se esse camarada, o Desajustado, pegasse vocês?"

"Eu quebrava a cara dele", John Wesley disse.

"Nem por um milhão de dólares ela ficava em casa" June Star disse. "Tem medo de estar perdendo coisas. Tem de ir pra toda parte com a gente."

"Esta bem, mocinha", disse a avó. "Da próxima vez que me pedir para cachear seu cabelo, você vai ver uma coisa."

June Star disse que seu cabelo já era naturalmente cacheado.

Na manha seguinte a avo foi a primeira a entrar no carro, pronta para partir. Tinha posto num canto sua enorme malinha preta, que parecia uma cabeça de hipopótamo, por baixo da qual ela escondia numa cesta o gato, Pitty Sing. Não quis deixar o gato em casa sozinho, por três dias, porque ele sentiria muito a sua falta e ela tinha medo de que acidentalmente se asfixiasse ao se esfregar num bico de gás. Mas o filho dela, Bailey, não gostava de chegar a um motel com um gato.

A avó ia no banco de trás, no meio, com um neto de cada lado, John Wesley e June Star. Bailey e a mãe das crianças com o bebê iam na frente e eles saíram as oito e quarenta e cinco de Atlanta com o painel indicando 89.944 quilômetros rodados. A avó anotou o numero por achar que seria interessante saber quantos quilômetros eles teriam feito, quando voltassem para casa. Levaram vinte minutos para atingir a periferia da cidade.

A velha senhora se instalou a vontade, tirando as luvas brancas de algodão e pondo-as junto com a bolsa no espaço por trás do banco. A mãe das crianças continuava com a mesma calça folgada, e com o mesmo lenço verde amarrado na cabeça, mas a avó estava usando um chapéu de palha azul-marinho, com um buque de violetas brancas na aba, e um vestido também azul-marinho de bolinhas brancas. A gola e os punhos eram de organdi branco, com debruns de renda, e um ramalhete roxo de violetas de pano, que era um sachê, estava pendurado em seu peito. Qualquer um que a visse morta na estrada, em caso de acidente, logo saberia tratar-se de uma senhora distinta.

Disse que o dia, a seu ver, era bom para viajar, nem muito quente nem muito frio demais, e lembrou a Bailey que o limite de velocidade era de noventa quilômetros por hora, e que os guardas rodoviários, escondidos atrás de anúncios e de amontoados de árvores, logo saiam em disparada atrás, sem nem dar chance de reduzir. E apontou interessantes detalhes dos panoramas: Stone Mountain; o granito azulado que nalguns trechos aflorava de ambos os lados da rodovia; os barrancos brilhantes, de barro vermelho rajado ligeiramente de roxo; e as diversas plantações enfileiradas como rendilhados verdes na terra. As árvores estavam cheias de uma luz solar prateada, e até mesmo as mais insignificantes brilhavam. As crianças iam lendo suas historias em quadrinhos e a mãe tinha voltado a dormir.

"Vamos passar pela Geórgia bem rápido para não ter de olhar muita coisa" John Wesley disse.

"Eu, se eu fosse um menino", disse a avó, "eu não falaria assim desse jeito do meu estado natal. O Tennessee tem montanhas, a Geórgia tem suas colinas..."

"O Tennessee não passa de um lixão, é uma terra de arigós" John Wesley disse, "e a Geórgia também é uma porcaria de estado."

"E isso mesmo", disse June Star.

"No meu tempo", a avó disse, cruzando os dedos de veias finas, "as crianças tinham mais respeito pela terra natal, pelos pais e por tudo o mais. Procedia-se bem, naquela época. Oh, mas vejam só o pretinho, que graça!" disse e apontou para um menino negro, em pé na porta de um barraco. "Não daria um quadro?" perguntou, e todos se viraram, olhando o menino negro pelo vidro de trás. Ele deu adeus.

"Ele estava sem calça", disse June Star.

“Talvez nem tenha" a avó explicou. "Os negrinhos da roça não são assim como nós, não tem coisas." E acrescentou: "Ah, se eu soubesse pintar, bem que faria esse quadro!".

As crianças trocaram de revista.

A avó se ofereceu para segurar o bebê, que a mãe das crianças lhe passou por cima do banco. Tendo-o posto nos joelhos, ela agora o puxava para cima e lhe falava das coisas pelas quais estavam passando. Revirava os olhos, fazia bico com a boca, colava a cara magra e dura no rosto, lisinho e fofo, da criança, que de vez em quando lhe dava algum sorriso distante. Passaram por uma grande plantação de algodão com um cercado com cinco ou seis túmulos no meio, como uma ilhota.

"Olhem lá o cemitério!" disse a avó, apontando. "O antigo campo- santo da família. Pertencia á fazenda."

"E onde esta a fazenda?" John Wesley perguntou.

"E o vento levou..." disse a avó. "Ha, ha."

Dois modelos de homem, dois modelos de Igreja


Acabei de assistir o filme do consagrado cineasta brasileiro Fernando Meirelles: Dois Papas.

Considero o filme técnica e esteticamente bem elaborado, feito nos próprios espaços grandiosos do Vaticano. Sua base é fundada em fatos históricos, evidentemente, com a criatividade que este tipo de arte permite, particularmente na construção dos diálogos. Mas neles se entrevê suas respectivas teologias e afirmações conhecidas.

O que digo é opinião estritamente pessoal. Tive o privilégio de conhecer a ambos os Papas pessoalmente e com os quais entretive e entretenho relações de certa proximidade e até amizade.

O Papa Ratzinger: finíssimo e rigoroso
Com o Prof. Joseph Ratzinger tenho uma dívida de gratidão por ter apreciado minha tese doutoral sobre “A Igreja como Sacramento Fundamental no Mundo secularizado”, volumosa, mais de 500 páginas impressas. Ajudou-me financeiramente com uma soma considerável de marcos e encontrou um editora para sua publicação, pois ninguém queria assumir o risco de lançar um livro desta proporção. A acolhida na comunidade teológica internacional foi grande, considerada uma obra fundamental, especialmente pelo renomado especialista em Igreja Jean Yves Congar, dominicano francês.O Prof. Ratzinger é uma pessoa finíssima no trato, extremamente inteligente e nunca o vi alçando a voz; mas é muito tímido e reservado.

Ao saber de sua eleição a Papa, logo pensei: “É um Papa que vai sofrer muito, pois talvez jamais tenha abraçado pessoas, mesmo uma mulher e se exposto às multidões”.

Nossa amizade se fortaleceu porque durante cinco anos, a partir de 1974, toda semana de Pentecostes (por volta de maio) cerca de 25 teólogos e teólogas progressistas, renomados do mundo inteiro, nos encontrávamos em Nimega na Holanda ou em outra cidade europeia. Durante uma semana discutíamos ecumenicamente, acompanhados por um pequeno grupo de cientistas, inclusive de Paulo Freire, sobre temas relevantes do mundo e da Igreja. Editávamos uma revista Concilium que se publicava em 7 línguas que ainda continua a ser publicada (no Brasil pela Editora Vozes). Ai colaboraram as melhores cabeças mundiais, nas várias áreas do conhecimento que vai da sexualidade, da Teologia da Libertação, à moderna cosmologia.

O Prof. Ratzinger sentava-se quase sempre ao meu lado. Depois do almoço enquanto quase todos tiravam uma sesta eu e ele passeávamos pelo jardim, discutindo temas de teologia, nossos preferidos, Santo Agostinho e São Boaventura dos quais li praticamente toda obra.

Cada um com seu papel sem perder a relação
Feito Cardeal e Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, teve a ingrata missão de me interrogar sobre o livro Igreja: carisma e poder em 1984. Ele cumpria institucionalmente sua função de interrogador e eu de defensor de minhas opiniões. Foi um diálogo firme, mas sempre elegante da parte dele, mesmo quando, após o interrogatório, tivemos um encontro já mais duro com ele e os Cardeais brasileiros Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Aloysio Lorscheider que me acompanharam em Roma e testemunharam a meu favor. Éramos três contra um. Devo reconhecer que ele se sentia constrangido.

Depois de um ano, recebi a solução do processo doutrinário com a deposição da cátedra de teologia, de minhas funções na Editora Vozes e a imposição de um “silêncio obsequioso” que me impedia de falar, de ensinar, de dar entrevistas e de publicar qualquer coisa. A decisão final após o interrogatório foi feita por 13 cardeais (13 para desempatar). Soube mais tarde, através de um emissário de seu secretário particular que ele, Card. Ratzinger, votou a meu favor mas foi voto vencido. Cabe dizer que sempre que jornalistas perguntavam a ele sobre mim, respondia, com certo humor, que sou “ein frommer Theologe”(um teólogo piedoso) que um dia vai aprofundar seu verdadeiro caminho teológico.

O filme não retrata a figura fina e elegante que o caracteriza. Em certa cena, levanta a voz e quase grita, o que, me parece, totalmente inverosímel e contra seu caráter.

Apesar de estarmos agora em situações diferentes, ele Papa e eu um um teólogo promovido a leigo, nunca perdemos a amizade. Por seus 90 anos, ao ser organizada uma Festschrift (um livro de homenagem), na qual muitos notáveis escreveram, a pedido dele solicitaram-me que escrevesse meu testemunho a seu respeito, o que fiz, prazerosamente. A amizade é mais forte que qualquer doutrina sempre humana.

O Papa Francisco: terno, fraterno e inovador
Com referência ao Jorge Mario Bergoglio, agora Papa Francisco, diria o seguinte: Conhecemo-nos em 1972 no Colégio Máximo de San Miguel em Buenos Aires, cada um discorrendo sobre a singularidade do caminho espiritual de Santo Inácio de Loyola (ele) e o caminho espiritual de São Francisco (eu). Ai discutimos a vertente da teologia da libertação de tipo argentino (do povo silenciado e da cultura oprimida) e a nossa brasileira e peruana (sobre a injustiça social e a opressão histórica sobre os pobres e afrodescendentes). Deste encontro há uma foto que ele, desde Roma, teve a gentileza de me mandar, onde aparecemos, todo um grupo de teólogos e teólogas, a maioria não mais entre nós, alguns perseguidos e torturados pela repressão bárbara dos militares argentinos ou chilenos. Depois nos perdemos de vista.

O Papa Francisco: teólogo da libertação integral
Soube pelo seu professor de teologia, recentemente falecido, Juan Carlos Scannone, o representante maior da teologia da libertação argentina. que Bergoglio entrou para a Ordem Jesuítica como vocação adulta (era químico antes, como aparece no filme). Entusiasmou-se logo com a teologia da libertação e aí mesmo fez um voto que cumpriu sempre, mesmo como cardeal de Buenos Aires: toda semana passar uma tarde ou mesmo um dia numa favela (villa miseria), sempre sozinho, entrando nas casas e conversando com todo mundo.

Foi Superior Maior da Província dos Jesuitas da região de Buenos Aires. Era muito rigoroso. Aqui teve que enfrentar uma situação gravíssima que carregou no coração até os dias de hoje: dois jesuítas, o padre Jalish e o padre Yorio (que conheci pessoalmente em Quilmes) viviam numa favela, apoiando os pobres e marginalizados. Quem trabalhava com o povo, como no Brasil de 1964 (e talvez também hoje sob o novo governo) seriam considerados marxistas e subversivos. Eram vigiados pelos órgãos de segurança dos militares. Bergoglio soube que seriam sequestrados com as torturas que se seguiam. Tentou salvá-los até apelando ao voto de obediência, típico de sua Ordem, no sentido de abandonaram a favela para não serem vítimas da repressão.

Eles argumentaram de forma evangélica: “um pastor não abandona seu rebanho, seu povo; participa de seu destino; vale mais obedecer ao Deus dos pobres do que obedecer a um superior religioso”.

Efetivamente foram sequestrados e duramente torturados. Jalish se reconciliou com Bergoglio e vive na Alemanha, enquanto Yorio se sentiu abandonado e distanciou-se dele (morreu no Uruguai, anos atrás). Pude sentir sua amargura pessoal, ao mesmo tempo que procurava entender o impasse que uma autoridade religiosa, com responsabilidade, enfrenta em situações-limite. Mesmo assim, Bergoglio escondeu a muitos no Seminário Maior de San Miguel ou os levou até a fronteira de outro país para fugirem da morte certa.

O Papa Francisco: o cuidado da Casa Comum
Ao ser eleito Papa, voltamos a nos comunicar. Sabendo que havia me ocupado intensivamente com o tema da ecologia integral, envolvendo a Casa Comum, a Mãe Terra, solicitou-me subsídios, coisa que fiz com assiduidade. Mas logo me advertiu:”não mande os textos para o Vaticano, pois, não me serão entregues (o famoso sottosedere da Cúria: sentar em cima e esquecer) mas envie-os diretamente ao embaixador argentino junto à Santa Sé, especialmente aquele que todos os dias, bem cedo, toma o chimarrão (el mate), comigo”. Assim fiz sempre, mesmo com textos sobre o Sínodo Panamazônico de 2019. Respondeu várias vezes agradecendo.

Ao escolher o nome de Francisco sob inspiração de seu amigo brasileiro, o Card. Dom Cláudio Hummes que lhe sussurrou logo fazer uma opção clara pelos pobres, ele se transformou. O rigor jesuítico se uniu com a ternura franciscana. Com os problemas internos da Cúria, a pedofilia, a corrupção financeira dentro do Banco do Vaticano é extremamente rigoroso. Contrariamente, com o povo é visivelmente terno e fraterno.

Nenhum Papa anterior castigou tão duramente o sistema que perdeu a sensibilidade, a solidariedade com os milhões de pobres e famintos, a capacidade de chorar e que são adoradores do ídolo do dinheiro. Depredam a natureza e são anti-vida e anti-Mãe Terra. Não precisamos declarar a que sistema se refere. Sua opção pelos pobres é altissonante. Tornou-se por suas posturas corajosas face à emergência ecológica da Terra, ao aquecimento global e à desumanização das relações humanas, um líder religioso e político. Sua voz é ouvida e respeitada pelo mundo afora.

Dois modelos de homem e dois modelos de Igreja
O propósito do filme é mostrar dois modelos de personagens religiosas e dois modelos de Igreja.

Primeiramente mostra como ambos, Ratzinger e Bergoglio. são humanos, profundamente humanos. Nesse sentido: ambos possuem seu lado luminoso e também seu lado sombrio. O Papa Bento XVI sua leniência com os pedófilos. Não devemos esquecer que escreveu a todos os bispos, sob sigilo pontifício que jamais deve ser quebrado, de não entregar os padres e os bispos pedófilos aos tribunais civis. Isso desmoralizaria a instituição Igreja. Deviam, sim, confessar-se do pecado e ser transferidos para outro lugar. O Papa não se deu conta suficientemente de que não tinha a ver apenas com um pecado perdoável pela confissão. Tratava-se de um crime contra inocentes que a justiça comum deve investigar e punir. Não se pensou nas vítimas, apenas na salvaguarda da imagem da instituição-Igreja.

O Papa Bento XVI colocou-se na esteira do João Paulo II que era moral e doutrinariamente conservador. Procurou relativizar arggiornamento do Concílio Vaticano II (1962-1965). Via a Igreja como uma fortaleza sitiada por todos os lados por inimigos, vale dizer, pelos erros e desvios da modernidade. A solução que se propunha era a de voltar à grande disciplina anterior, vinda do Concílio de Trento (século XVI) e do Concílio Vaticano I (1870). A centralidade era a ortodoxia e a sã doutrina, como se fossem as prédicas que salvassem e não as práticas. Nesta linha o Card. Joseph Ratzinger foi rigoroso: mais de 110 teólogos ou teólogas foram condenados, depostos de suas cátedras, silenciados (no Brasil Yvone Gebara e eu pessoalmente) ou de alguma forma punidos. Um deles, excelente teólogo, foi condenado sem receber nenhuma explicação. Ficou tão deprimido que pensou em suicidar-se. Só se curou quando foi à América Central trabalhar com as comunidades eclesiais de base.Viveu-se um inverno eclesial severo.Toda uma geração de padres foi formada nesse estilo doutrinário e com os olhos voltados ao passado, usando os símbolos do poder clerical.  Igualmente, toda uma plêiade de bispos foram sagrados, mais autoridades eclesiásticas ortodoxas que pastores no meio de seu povo.

Outro modelo de personalidade religiosa é o Papa Francisco. Ele vem do fim do mundo, de fora da velha e quase agônica cristandade europeia. Ele trouxe uma primavera para a Igreja e para o mundo secularizado.

Primeiramente inovou os hábitos. Ao negar-se de vestir a “mozzeta” o pequeno manto branco, cheio de brocados que os papas carregam aos ombros, símbolo do absoluto poder dos imperadores romanos pagãos, diz o filme claramente : “acabou-se o carnaval”. Não aceita a cruz dourada, continua com sua cruz de ferro; rejeita o sapato vermelho (Prada) e continua com o seu velho sapato preto. Não se anuncia como Papa da Igreja, mas como bispo de Roma e somente a partir daí, Papa da Igreja universal. Animará a Igreja não com o direito canônico, mas com o amor e com a colegialidade (consultando a comunidade dos bispos). Em sua primeira fala pública diz “como gostaria uma Igreja pobre para os pobres”. Não mora no palácio papal, o que seria uma ofensa ao poverello de Assis, mas numa casa de hóspedes. Come na fila como os outros e comenta, com humor:”assim é mais difícil que me envenenem”.

Dispensa um carro especial e um corpo de proteção pessoal. Mistura-se no meio do povo, dá as mãos a quem as estende e beija as crianças. É pai e avô querido das multidões.

Seu modelo de Igreja é o de “um hospital de campanha” que atende a todos, sem perguntar de onde vem e qual é sua situação moral. É uma “Igreja em saída” para as periferias humanas e existenciais. Respeita os dogmas e doutrinas mas diz claramente que prefere colocar-se vivamente diante do Jesus histórico, opta pelo encontro direto com as pessoas e a pastoral da ternura. Insiste que Jesus veio para nos ensinar a viver o amor incondicional, a solidariedade e o perdão. Central para ele é a misericórdia infinita de Deus. Vai mais longe ao dizer :”Deus não conhece uma condenação eterna pois perderia para o mal. E Deus não pode perder. Sua misericórdia não conhece limites”. Por isso chama a todos, uma vez purificados de suas maldades, para a casa que o Pai e Mãe de bondade preparou para todos desde toda a eternidade. Morrer é sentir-se chamado por Deus e vai-se alegre para o Grande Encontro.

Eis outro tipo de pontificado, outro modelo de ser humano que reconhece que perdeu a paciência quando uma mulher o puxou e apertou longa e duramente sua mão. Irritado, bateu-lhe a mão por duas ou três vezes. Mas no dia seguinte pediu publicamente perdão.

Dois Papas: diferentes e complementares
O Papa Francisco abriu sua inteira humanidade, dando-se o direito à alegria de viver, de torcer pelo seu time de estimação o San Lorenzo, de apreciar a música dos beatles até conquistar o Papa Bento XVI a dançar um tango, impensável a um severo acadêmico alemão. Aqui aparece não o Papa mas o homem Bergoglio que desentranha humanidade recolhida do homem Ratzinger. Ambos são diferentes mas se integram na dança de um tango de pessoas anciãs.

O filme é uma bela metáfora da condição humana, de dois modos diferentes de realizar a humanidade, que não se opõem mas se compõem e se completam, uma com a ternura e a outra com o rigor. Vale ver o filme, pois nos faz pensar e nos oferece lições de mútua escuta, de verdades ditas sem rebuços e de uma amizade que vai crescendo na medida em que a relação se descontrai  de encontro a encontro. O perdão que um dá ao outro e o abraço final, longo e carinhoso, engrandece o humano e o espiritual presentes em cada  um de nós.

Leonardo Boff é teólogo,filósofo e membro da Comissão Internacional da Carta da Terra
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