Confissões de um ex-pastor(III)

Davi, maior rei de Israel, aquele que Deus chamou de o Homem segundo o meu Coração, ao ser confrontado por Natã, profeta de Deus, no caso do adultério com Bate-Seba deixa sua alma gemer: "Eu nasci em pecado e em pecado me concebeu minha mãe”(Salmo 51:7) ou na versão Pastoral: “... Eis que nasci na culpa, e minha mãe já me concebeu pecador... eu ”, para início de conversa também tenho que admitir que não sou uma exceção, não estou imune à queda, não fui vacinado contra a degradação humana que acometeu todos da minha raça, posso não gostar do fato, mas tenho que conviver com isto: sou um ser caído. No dizer do calvinismo mais radical: sou um ser depravado.

Desde a minha tenra infância eu percebo que a inclinação para as coisas más era uma constante, por mais que soubesse o que fazer de forma correta, era sempre a incorreta que acabava fazendo. Lembro das goiabas roubadas no roçado de Seu Otacílio (nenhuma semelhança com Santo Agostinho, roubava para comer, não para estragar) lembro das pedradas nas casas alheias, ou daquelas que atirei nos cachorros na rua, nas malvadezas com alguns pobres gatos, ou dos amigos que enganei na escola dizendo que colocar ferro em brasa no congelador o transformava em imã, brinquedo de nossa predileção. Lembro com tristeza ao ver hoje como o sinal da queda já era forte, mesmo nessa época.

Sempre gostei de livros e os lia com muita voracidade, cheguei a ler mais de 300 por ano, quando não conseguia pegar emprestado na biblioteca, os roubava dentro do caderno, só para ler mais um pouco, às vezes devolvia, às vezes jogava fora com medo de ser apanhado. O livro A menina que roubava livros não me é nenhuma novidade, roubei muito mais livros que ela.

Nesse período, noto hoje, que já era dotado de uma ira incontida, muitas vezes irracional, contra tudo e contra todos, talvez porque queria mais do que chicotadas e tapas, queria apenas ser aceito, como achava que não era, sonhava com outros horizontes, outros lugares, outras pessoas, mas quando acordava estava sempre no mesmo lugar, na mesma situação e a tristeza aumentava.

Acho incrível que com pouco mais de cinco anos, já sofria de insônia, não dormia bem, ficava horas e horas com o pensamento divagando, assustado com os terrores da noite e os gritos lancinantes. Creio que por isso não conseguia evitar molhar a cama, motivo de mais vergonha e punições.

Gostava de ler para dormir, mas minha mãe não permitia, então eu escondia os livros debaixo do lençol e quando ela dormia eu abria o livro e começava a ler à luz de uma telha de vidro no teto de meu quarto. Por isso hoje eu tenho sérios problemas de visão, gastei-a, mas gastei muito bem, não me arrependo, pois viajava, sonhava e fugia de minha realidade nas asas de bons livros, devorei coleções inteiras, ainda hoje lembro de milhares de histórias que li, devo ter mais horas de leitura que urubu senil tem de vôo.

Mas como Davi admito: sou pecador, um ser caído, imerso numa cultura de pecado, não fui nenhum pouco diferente das centenas de milhares de garotos de minha idade. Porém hoje eu sei que por trás de tudo isso, alguém me olhava, com olhos de ternura, olhos de afeto, não me olhava como eu era, mas me olhava como eu ainda serei, sempre me olhou com olhos de futuro, de como Ele fará com que eu seja. Olhos de pai, olhos de mãe, olhos que não reprovam, não incriminam, olhos que afagam, acolhem, restauram e refrigeram. Como Davi posso dizer também: "... bondade e misericórdia me seguirão...". Ou melhor bondade e misericórdia me seguiram e me seguem...