Por um cristianismo não religioso


Por William Felipe Zacarias

Na era pós-cristã, resta ao cristianismo limitar sua existência para fora das paredes do “túmulo de Deus”, metáfora de Nietzsche à igreja institucional. O esvaziamento da instituição pressupõe uma retomada do cristianismo original de Jesus que não fundou uma religião, mas, ao contrário, foi contra ela em suas discussões com fariseus e escribas. Por conseguinte, o que seria a vivência de um cristianismo não religioso? O cristianismo é a comunhão dos ateus.

Quando alguém me diz ser ateu, ironicamente tenho respondido, “pois é, também sou!”. O indivíduo se espanta, pois a resposta parte da boca de um teólogo. De fato, não creio na metafísica, nem no “deus comércio” da prosperidade material. Conforme o sociólogo francês também ateu Michel Maffesoli, “o mais prostituído dos seres é o ser por excelência: é Deus. Com efeito, em numerosas tradições religiosas, é Ele que se dá todo a todos.”(1)

Em grande medida, a teologia grega foi transportada para dentro da teologia judaico-cristã. A música gospel que atualmente faz tanto sucesso no mercado se identifica muito mais com o castigador imponente e vingador Zeus do que com o Deus pessoal judeu. Enquanto Zeus é a-histórico, Ihwh age concretamente na história e inclusive se encarna nela, um escândalo para os gregos, visto que a carne lhes era desprezível por aprisionar a alma. Para os gregos, Deus se fazer carne vai muito além do que se esperaria de uma divindade. O verbo (do gr. Lógos) nunca poderia se reduzir a algo tão nauseabundo. Como bem afirma o brasileiro Clóvis de Barros Filho, “o texto de João propõe que esse lógos – ainda traduzido por verbo – se fez carne e habitou entre nós. Aqui, as concepções de Deus se afastam brutalmente. É inaceitável para a concepção grega dominante da época que o divino da ordem universal tenha se convertido em carne. Na carne de um corpo específico. E essa carne, de que fala o texto, é Jesus, um homem, tido como Filho de Deus.”(2) De repente, Deus e torna em “um indivíduo. Um divino encarnado. Um Deus pessoal. Que podíamos encontrar na rua. Que podíamos bater um papo. Aparentemente, sem frescura. Afinal, dava prosa a qualquer um. E grande atenção aos carentes. Não só de riqueza, mas também de notoriedade, de capital simbólico de afeto etc. Nada a ver com os reis da época.”(3) De repente, Deus não precisa ser procurado no céu, pois está presente na terra. Ao invés do ser humano buscar a Deus, agora Deus busca o ser humano. Os gregos quase infartaram ao ler o v. 14 do primeiro capítulo do evangelho de João. Não é o ser humano que se “religa” a Deus, mas Deus que se ligou ao ser humano. Além disso, acontece uma aberração: o lógos morreu na cruz.

Jesus não fundou uma igreja ou uma religião. Ao contrário, promoveu a caridade e o amor como uma antirreligião. Ele não queria uma fé abstrata, mas concreta com ações práticas no mundo real. Assim como prometera que na casa de seu Pai há muitas moradas, da mesma forma agia cristãmente no mundo secular. Sua mensagem era para os seculares. O próprio Nietzsche o definiu como um “bom mensageiro” que “morreu tal como viveu, como ensinou – não para “redimir os homens”, mas para mostrar como se deve viver.”(4) Conforme Nietzsche, “A prática foi o que ele deixou para a humanidade. Sua atitude diante dos juízes, diante dos esbirros, diante dos acusadores e de todo tipo de calúnia e escárnio – sua atitude na cruz. Ele não resiste, não defende seu direito.”(5) Jesus não trouxe uma nova religião, mas o amor que concede dignidade aos fracos e malogrados do mundo.(6) Por isso que Nietzsche o odeia tanto e chama Jesus de “decadência” do Ocidente, pois sua mensagem fundou e é inexorável ao próprio Ocidente.

Por conseguinte, o processo de secularização da tradição cristã é que permite o próprio cristianismo a continuar existindo em sua forma secular. A secularização é uma invenção necessária do próprio cristianismo que acabou eliminando os fundamentos metafísicos desta própria tradição.

O ateu e filósofo italiano contemporâneo Gianni Vattimo é um dos principais expositores de um cristianismo não religioso adequado à pós-modernidade. Vattimo aplica a kénosis (esvaziamento, cf. Fp 2.7) como vocação fundamental da secularização do cristianismo. O que já era para ser, desde o início, um movimento antirreligioso acabou se tornando mais uma religião dentre tantas outras. Com religião se pressupõe aqui o termo latino religare que literalmente significa religar. Este era o modo pela qual o ser humano buscava, com suas forças, alcançar a transcendência e a salvação. Em Jesus Cristo, ao contrário, é Deus que vem ao ser humano na encarnação do Lógos. O Deus cristão rompeu com a religiosidade sinérgica humana, pois o próprio Deus se doou e se entregou ao ser humano, vindo de encontro a ele aqui mesmo, na terra. Assim, como vocação do cristianismo, a kénosis seria a maneira pela qual o cristianismo consegue continuamente se esvaziar da sua religiosidade e de suas estruturas religiosas, tornando-se um movimento prático que vive e atua no mundo secular, servindo a Deus por meio do próximo. Thimothy Keller afirma sobre a igreja primitiva que “os cristãos mudaram a história e a cultura ao conquistarem as elites e também ao se identificarem profundamente com os pobres.”(7) Tal como Cristo se doou, os cristãos doavam-se a servir com honestidade e alegria, cumprindo sua vocação secular no mundo. Com a institucionalização pós-Constantino, perdeu-se a dimensão secular do cristianismo e do evento de Cristo como kénosis. Na verdade, conforme Westphal, Constantino se tornou em um arquétipo de Cristo, assumindo seu lugar. Cristo passa a ser o Deus que quer conquistar os povos vizinhos para si por meio do poderio militar, a exemplo das cruzadas. O cristianismo torna-se institucionalizado, rígido, litúrgico, preso às paredes do que mais tarde Nietzsche chamaria, como já dito, de “tumulo de Deus.” O evento de Cristo foi transfigurado em religião.

Para o sociólogo Max Weber, foi Lutero quem resgatou a vocação secular do cristianismo através da Befuf (profissão) e da Berufung (vocação): “a profissão concreta do indivíduo vai sendo, com isso, interpretada cada vez mais como um dom especial de Deus, e, a posição que ele oferece na Sociedade, como preenchimento da vontade divina.”(8)

Para Vattimo, “a kénosis de Deus, que é o cerne da história da salvação, ela não deverá mais ser pensada como fenômeno de abandono da religião, e sim como atuação, ainda que paradoxal, da sua íntima vocação.”(9) Logo, para Vattimo, a kénosis neotestamentária é o pressuposto da atuação cristã no mundo secular. A lógica é a seguinte: Cristo encarnou e atuou no mundo em caridade. A igreja é o corpo de Cristo, portanto, deve se encarnar no mundo com ações cristãs, servindo a Deus por meio do próximo. Por conseguinte, vive-se o cristianismo não religioso no bom cumprimento da profissão secular, seja pedreiro, carpinteiro, médico, agricultor, alfaiate, programador, fotógrafo, gari, bombeiro, etc.

É preciso mencionar que, conforme Euler Renato Westphal, a “característica de toda a tradição protestante é a secularização, que enfatiza a racionalidade científica e técnica, a liberdade de pensamento e a autonomia para com as instituições.”(10) Não é à toa que grandes pensadores e cientistas da Modernidade eram ou tinham suas raízes no cristianismo, como, por exemplo, “Immanuel Kant, Schelling, Thomas Malthus, Friedrich Nietzsche e tantos outros.”(11) Foi o teólogo e pastor alemão pietista Friedrich Ernst Schleiermacher quem fundou a universidade moderna a partir da Universidade de Berlim.(12) Também as universidades modernas americanas surgiram a partir da Reforma, como Harvard, Princeton e Yale.(13)

A Pós-Modernidade rompeu não só com a Modernidade, mas também com a Pré-Modernidade que constituiu a Modernidade. O marco divisor entre Modernidade e Pós-Modernidade é anúncio nietzschiano da morte de Deus. Foi Nietzsche quem abriu o “mar vermelho” que separa a Modernidade da Pós-Modernidade. Para Nietzsche, a única maneira de superar a decadência ocidental é o estabelecimento de uma nova cultura a partir da era trágica dos gregos, especialmente na adoração do deus caótico e hedonista Dionísio. O Übermensch só pode sobreviver nesta nova cultura substituta da humanista e decadente. Para Nietzsche, o Deus que se fez fraco é uma vergonha, um “golpe de gênio do cristianismo” onde Deus se tornou “o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...”(14) Por conseguinte, o projeto trans-humanista do Übermensch pode ser executado somente na superação do mito decadente cristão-ocidental.

Entretanto, como afirma Marcus Throup, “No fim das contas, o velhinho da floresta riu por último porque Zaratustra havia se equivocado: Deus não morreu.”(15) Realizar bem a profissão é uma atitude concreta do genuíno cristianismo não religioso, servindo a Deus por meio do próximo. Mas também, como teólogo cristão, não excluo o cristianismo religioso com seus dogmas, ritos, hinologia, experiências, etc., desde que sejam legítimos e não abusem da fragilidade humana, especialmente financeira. Sou ateu deste deus da prosperidade financeira tão pregado por aí, que em sua orgia realiza transações com tudo e todos. Ao contrário, creio no lógos que se fez carne, esvaziou-se, serviu e lavou os pés de humanos simples sem cobrar nada, além de morrer em uma cruz de forma tão cruel. Elimino de minha crença a metafísica de Zeus. O Deus que se fez fraco (existindo ou não) é uma força simbólica incrível em momentos de fraqueza, pois ele me entende e até morrer ele sabe como é. O Deus que se fez fraco está no fundamento do Ocidente e confere dignidade aos pobres, fraco e malogrados da sociedade. O “Jesus constantiniano” não tem nada a ver com isso. Querido leitor, acabei de lhe dar uma chave interpretativa. Agora é com você. O objeto de sua fé deveria ser repensado.

Referências:
(1) MAFFESOLI, Michel. A Sombra de Dioniso. 2. ed. São Paulo: Zouk, 2005. p. 19.
(2) BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 100.
(3) BARROS FILHO, 2014. p. 101.
(4) NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O Anticristo – 1888. In: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Obras escolhidas. Porto Alegre: LPM, 2013. p. 399.
(5) NIETZSCHE, 2013. p. 399.
(6) Cf. BARROS FILHO, Clóvis. Somos Todos Canalhas. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2015. p. 114.
(7) KELLER, Thimothy. Igreja Centrada. São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 179.
(8) WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Livraria Pioneira, 1967. p. 57.
(9) VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 12. p. 35.
(10) WESTPHAL, Euler Renato. “A pós-modernidade e as verdades universais: a desconstrução dos vínculos e a descoberta da alteridade.” in: CARVALHO LAMAS, Nadja de; RAUEN, Taiza Mara (orgs.). (Pro)Posições Culturais. Joinville: Univille, 2010. p. 15.
(11) WESTPHAL, Euler Renato. Brincando no Paraíso Perdido. São Bento do Sul: União Cristã, 2006. p. 46.
(12) Cf. ZILSE, Raphaelson Steven. Base Filosófica para uma Estrutura Dogmática?. In: SCHWAMBACH, Claus (coord.). Vox Scripturae. São Bento do Sul, v. XXI, n. II, 2013. p. 144.
(13) Cf. WESTPHAL, 2006. p. 43-44.
(14) NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.. p. 74-75.
(15) THROUP, Marcus. Igreja na berlinda. Curitiba: Encontro, 2011. p. 45.




Invenção do Amor



Mundo dos espertalhões


Os Três Poderes estão se agitando freneticamente, se chocando e confrontando, por conta da Lava-Jato visivelmente. O Congresso tenta “redimir-se”, respondendo ao Supremo agressivamente, em retaliação, em parte por uma boa causa – de fato o Judiciário posta-se como entidade acima da lei, está acobertado de privilégios escusos (inconstitucionais, ainda que estejam na Constituição), está “moralizando” o Congresso (que, sim, não tem moral nenhuma, mas a moral do Judiciário é extremamente ambígua), judicializando procedimentos que deveriam ser resolvidos na Casa do Povo (que sarcasmo!). Como observador atônito, devo dizer que me espanta e incomoda o cenário de um jogo de espertalhões, onde ninguém é santo, ou não tem moral para moralizar nada. Sempre considerei o Judiciário o lado mais podre dos Poderes da República, porque tem a última palavra que, tendenciosamente, se volta a favor de si mesmo, em especial para regalias inconfessáveis, como simples aposentadoria no caso de condenação de Juiz, férias de dois meses, os salários mais elevados do país e repletos de penduricalhos, além de manobras feitas nas brechas da lei que eles mesmos arrombam. Macula o Supremo ser composto por gente “indicada”, um grupo inventado e aí ajuntado de maneira estranha, vitalícia e que pratica uma justiça lentíssima, suspeitíssima, ineptíssima. Alguma coisa mudou ultimamente, depois que Barbosa por aí passou, um evento muito memorável: deslanchando o processo do Mensalão, inaugurou alguma capacidade de reação que acabou eclodindo na Lava-Jato, uma das maiores conquistas dos últimos tempos no Judiciário.

Mas isto não refresca a suspeita que temos sobre o Judiciário, também no grupo de Curitiba, porque é constituído, em parte pelo menos, de oficiais apaniguados, privilegiados, que não se cansam de defender e degustar regalias salariais, e, em parte, por jovens (ou metidos a jovens) afoitos, sôfregos, que apreciam estardalhaço e barulho, holofote, ao invés do comedimento indispensável para se fazer justiça. Seria o caso lembrar que no Paraná, Juízes processaram jornalistas que colocaram o dedo nesta ferida fétida dos salários imorais da magistratura brasileira, só estancados por interferência do Supremo. Ao mesmo tempo, Carmen Lúcia, a franciscana do Supremo, ainda que transmita em seu posicionamento uma expectativa tocante (que se aproxima do Papa Francisco), não deixa de defender “a turma”, exalando corporativismo sonso – deveria combater abertamente privilégios do Judiciário, porque ela sabe, mais que ninguém, que poder público privilegiado deixa de ser “público”. O poder do Judiciário não é “público” – foi assaltado pelos próprios ocupantes do poder, cujo senso por salário é infinitamente superior ao senso por justiça. Não dá para confiar. A Justiça precisa calçar as sandálias franciscanas, sim, como sugere Carmen Lúcia, que são a únicas que servem a “fazedores honestos de justiça”. Não posso deixar de recordar que um Ministro deu um golpe sujo no julgamento sobre se réus poderiam ocupar cargos na linha sucessória presidencial, quando pediu vistas, mesmo havendo já maioria de votos – é muito difícil não suspeitar de conluio inacreditável, abjeto, sórdido. É o que dá ser “indicado” e dever favores...

Na outra ponta temos um Congresso desarvorado, porque está na iminência de ser devorado pela Lava-Jato. A delinquência é de tal monta que a saída foi anistiar o caixa-dois de campanha, não porque não seja crime, mas porque, tendo sido cometido por quase todos, “não deveria ser visto como crime”! As dez medidas propostas para sanear a corrupção na República (com mais de 2 milhões de assinaturas) foram desfiguradas ostensiva e porcamente, num recado vergonhoso de legislação em causa própria. A anistia não entrou porque o entrevero entre Calero e Geddel desmoralizou a ideia, mas outras manobras foram contempladas, desvelando o quanto o Congresso é um “poder paralelo”, no sentido pejorativo de uma republiqueta dentro da República. Punir abuso de poder sempre cabe, não sendo correta a alegação de Moro e sua turma de que não cabe discutir isso agora. Cabe sim. Pode-se reclamar de pressa, açodamento, texto mal elaborado; mas retirar privilégios sujos do Judiciário é preciso urgentemente. Um castelo de juízes e procuradores não convence a ninguém, porque, mesmo praticando coisas muito nobres também, o eco da autodefesa sempre macula o cenário. O tom de elite intocável, até mesmo acima da lei, é escandaloso, para dizer o mínimo. Usando uma expressão apropriada, quer-se lavar a República com água suja.

O choque entre Calero e Geddel escancarou porões da República nada edificantes. É lamentável que o Presidente perca seu tempo em acomodar pleitos inconfessáveis de um Ministro que força a invasão de área urbana tombada e sempre sugeriu anistiar o caixa-dois, possivelmente para salvar a própria pele. Não dá para confiar no governo (Executivo) – num momento paroxístico como esse, é preciso ter moral para impor moral. Nenhum Poder tem. Todos querem lavar a República com água imunda. Corrupção é o combustível político do dia a dia, endêmica, sistemática, nojenta. A razão da política é o enriquecimento ilícito e desbragado; não se roubam restos, gorjetas, mas tudo que se pode, astronomicamente. O mais triste é constatar que nenhum Poder consegue se autorreformar, tamanha é a devassidão. Não adianta propor uma Constituinte exclusiva para refazer um pacto federativo contra a corrupção, porque não faríamos nada diferente da atual Constituição: um poço de proteções corporativistas, onde todo grupo privilegiado exarou seus privilégios. Precisamos de uma Constituinte que venha de fora: um grupo, digamos de 50 pessoas (25 juristas e 25 não juristas), que fique fechado por 3 meses e produza uma constituição mais “objetiva”, voltada para o bem comum, estritamente. Onde o Judiciário, o Legislativo e o Executivo metem a mão, sai porcaria. Não tenho condição de esperar outra coisa.

Quando se mostra tão urgente e indispensável conter gastos públicos, porque a conta não fecha, não se vê um Judiciário tomando iniciativa de arrumar sua casa, ou o Congresso. Longe disso. A conta vai ficar com a população, com os assalariados que já são “assaltados” no próprio contracheque. O Rio de Janeiro escancarou esta manobra: pretendia-se taxar os servidores com até 30% para a previdência; somando-se o imposto de renda, resta meio salário, se tanto! Embora sempre se possa aludir excesso de servidores, acomodação de muitos de modo ilegal etc., não podem pagar a conta sozinhos. Sequer estamos conseguindo acabar com os supersalários, algo abjeto e já disseminado, defendido como legal por conta de “brechas da lei e garantias constitucionais”. Gostaria de lembra que lei com brecha e garantias constitucionais predatórias não podem ser “constitucionais”. Uma Constituição que permite tais excrescências nunca foi “constitucional”. Aí Ulysses Guimarães nos deixou um legado pérfido – esta Constituição não é “cidadã”, é corporativista, de privilegiados para privilegiados. Foi feita a dedo para ter brechas e proteções inconfessáveis.

Quando um país quebra, todos precisam pagar a conta. Clama aos céus que o acerto de contas comece pelo mais fraco, não pelos Juízes, deputados, em especial pelos supersalários e contratos lesivos com empresas. O Judiciário nunca fez qualquer gesto para recompor a probidade institucional. Encastelou-se e cospe de cima como casta blindada. É uma pena. A turma da Lava-Jato deveria ter incluído nas dez medidas o saneamento do Judiciário, para ter um pingo de moral. É imbecilizante insinuar que o Judiciário é um poder impoluto a ponto de poder restabelecer a moral pública e que o grupo de Curitiba é o bastião da probidade. Tem feito grande serviço, mas não consegue evitar a cortina de fumaça da autoproteção: uma elite assaltante que usa o direito à última palavra para benefício próprio. Não tem a moral que proclama. Não está a serviço da República. Está a seu serviço próprio. Uma república da elite judiciária também é de “banana”.

Não podemos desistir da democracia – embora com todos esses problemas, é o regime preferível, de longe. Mas é nessas horas que notamos o quanto é uma flor frágil. Não conseguimos sair da “sociedade do privilégio”: ser tratado de modo igual é coisa de pobre. Para ser Juiz é preciso ter supersalário, carro oficial, séquito, honrarias, acréscimos salariais de toda sorte, porque – assim parece – a competência é medida pela ostentação. Não conseguimos montar a ideia de que Juiz, para ter o acato, respeito e mesmo reverência da sociedade, não deve ter carro oficial, salários suspeitos, favorecimentos imorais, posar de elite inatingível, ser dono da lei. Justiça apaniguada não pode ser justa. O Congresso é incapaz de fazer uma faxina profunda em seus desvarios clássicos, reduzindo o número de deputados e senadores (por exemplo, manter apenas senadores, três por estado), tendo 12 salários anuais (sem estatuto próprio previdenciário), dispensando moradia subsidiada ou funcional, pagando suas contas todas com o salário, viajando com recursos próprios etc. Deputado, senador privilegiados são sanguessugas.

O Executivo também não se autorreforma. Não consegue nem conter os supersalários, cortando todos que ultrapassam o teto constitucional, acatando apelos sórdidos de brechas da lei ou garantias constitucionais, totalmente inconstitucionais. É inchado em quase todos os órgãos. Se olhássemos pela exiguidade/precariedade dos serviços oferecidos – digamos educação pública, saúde pública, segurança pública... – não justifica nem um terço dos gastos. Se quase ninguém aprende na escola, temos um sistema de ensino inepto, fraudulento, imbecilizante, e caríssimo. A população paga para ser maltratada. Mas, se houver, cá e lá, alguma oferta qualitativa – digamos, universidades federais de qualidade mais elevada – é logo feita botim dos mais ricos, sob a alegação de mérito (porque passam nos vestibulares). Sociedade do privilégio é assim – o Estado existe para proteger o mercado e a elite econômica e política. Povo é capacho – quando muito tem Bolsa-Família.

Vejo na web a celeuma em torno da ida do Presidente para os funerais do jogadores mortos da Chapecoense (hoje é dia 3 de dezembro) – vai até ao aeroporto; não vai ao campo do time por temer protesto. E Josias Souza avisa: “Talvez Temer viva o próprio velório” (josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br). A que ponto chegamos! No dia 1o de dezembro Joaquim Barbosa avisava que o “governo Temer corre o risco de não chegar ao fim” (http://www1.folha.uol.com.br/poder), por conta de um “impeachment Tabajara” (uma encenação anunciada). Um governo usurpador que não consegue legitimar-se. Tudo água suja. Talvez seja por isso também que a economia não consegue “arrancar” – falta mínima confiabilidade no governo ou nos Poderes, de modo geral. “Deitado eternamente em berço esplêndido” – um país que, ao contrário do refrão cínico, não “é para todos”; é para alguns, políticos, empresários, juízes, funcionários públicos apaniguados... Somos totalmente reféns dessa elite perversa, espertalhona.

Por Pedro Demo
Fonte:http://pedrodemo.blogspot.com.br/2016/12/ensaio-111-mundo-dos-espertalhoes.html