Ninguém te amou assim



Se você quer brincar
Eu posso ser a chuva
Molhando os teus cabelos
Sentir teu coração
Sentir o teu apelo

E se quiser amar
Vou ser teu namorado
E se quiser chover
Faço em papel marchê
Um céu enluarado

Invento um mundo só pra gente
Tudo diferente, nosso paraíso
Vento que ventou saudade
Traz felicidade
Meu primeiro amor

Ninguém te amou assim
Do jeito que eu te amo
Cuida do que é teu
No fundo eu sei que eu
Sou parte dos teus planos

Ninguém te amou assim
Do jeito que eu te amo
Não deixa eu te deixar
Não dá pra separar
O azul do oceano.

[Composição: Gérson Cardozo]

Se (If) Rudyard Kipling

Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!

[Para você, meu filho Ulrich Zwínglio, neste dia em que completas 18 anos. Parabéns garoto!]

Apenas uma noite... - 2ª edição


Uma noite, se apenas por uma noite,
Se tão somente por uma solitária noite,
Ainda que esta noite fosse curta e irrepetível,
A minha mente descansasse,
Os meus pensamentos desacelerassem,
O turbilhão de sentimentos aquietasse,
O torvelinho de emoções diminuísse,
Os furacões do medo fossem contidos,
Os abismos escuros da ansiedade fossem lacrados,
Os incontáveis vendavais da angústia arrefecessem,
Os temporais do desespero fossem soprados para o mar,
Os corredores frios, úmidos e escuros da dúvida, fossem iluminados,
E o vazio da alma, qual redemoinho, parasse de sugar tudo em volta,
E que a poética procela em seu furor se acalmasse,
Se apenas por uma noite, apenas uma,
E por essa noite eu conseguisse dormir,
Sem ajuda de ninguém, nem de algo,
Qual criança que dorme sono solto,
O sono da despreocupação e da inocência,
Sem que as ilusórias drogas do sono me adormecessem,
E o sono sadio me restaurasse,
E a sanidade me fosse devolvida,
Eu seria feliz, ainda que só por uma noite,
Ainda assim seria feliz,
Se essa dádiva me for dada uma noite,
Ainda que seja a última noite,
Ainda assim serei feliz,
Mesmo que o sono que me tome,
Seja o ultimo sono,
O doce adormecer eterno,
Velado pela Dama das Sombras,
O sono do descanso da vida,
O doce e esperado sono da morte.
Alguns esperam ansiosamente pela manhã,
Eu, por outro lado, espero pela noite,
Não a Noite escura da alma,
Essa eu vejo todos os dias,
Espero pela noite em que minha alma descansará.
E o sol que nascerá ao amanhecer, não será como esse,
Que se levanta todos dos dias trazendo consigo mais um dia,
Que nem sempre é alvissareiro
O sol que se levantará, nunca mais se porá,
Não haverá mais noites, nem sombras, nem fantasmas,
E o sono não virá, mas quem iria querer dormir?
Quem iria querer perder um minuto que seja,
De uma existência que não conhecerá as lágrimas e o medo?
Quem iria querer dormir se o dia durará mil anos e as noites centenas de anos?
Eu sei que essa noite virá, e quando ela chegar,
Vou me lembrar de todas as noites que não dormi,
E vou sorrir de alegria, Por que saberei naquele momento,
Para o que de fato eu fui criado.
Estou esperando, acordado e cansado, mas estou.

Maltrapilho

Paro por aqui
Não posso passar pela porta dos perfeitos
Proíbem meu jeito, defeito não é bem aceito aqui
Acesso negado

Quero te seguir
Será que me deixam aproximar de Ti?
Tocar no Teu manto, comer nesta mesa, beijar Teus pés
Sentir o amor que não tem ressalvas, que salva, que é meu
que me chama a estar contigo

E assim posso esperar
que seja aquela mesma esquina
ou mesmo do lado de fora
ninguém merecerá
mas Tua graça me conforta
que deixa ao fim Te alcançar


[Composição: Maninho/Bruno Camurati]

Pr. Nilson do Amaral Fanini - 2ª edição

O regime militar estava em transição para o regime democrático, Tancredo morrera inexplicavelmente e Sarney tinha sido empossado, mas não conseguia convencer ninguém, acho que nem a si mesmo convencia, governava (sic) o país há cerca de um ano, a República do Maranhão dera alguns frutos naquele ano, uns bons, outros nem tanto. Eu, por minha vez, estava próximo de completar 18 anos e adentrar a maioridade civil. Há cerca também de um ano eu era aluno militar de uma escola preparatória da Marinha.

Era noite do dia 30 de março de 1986, domingo, véspera do aniversário do golpe que afundou o Brasil numa ditadura cruenta, já beirava às 23 horas, após três dias de folga em casa, nos quais eu tinha ido à igreja, estava voltando para o quartel, embarcava, no jargão da Marinha, para mais uma semana de intensa atividade. Eu iria me formar dentro de dois meses e seria transferido para o Rio de Janeiro, onde, certamente, embarcaria em algum navio, já que minha especialidade eram armas e convés, e iria conhecer novos portos, novos países e colecionaria as minhas próprias aventuras, e provavelmente desventuras também, já que as façanhas que minha mente colecionava eram de outras pessoas, fictícias ou não.

Naquele mesmo dia os batistas pernambucanos comemoravam o centenário no Ginásio Geraldo Magalhães, em Recife, mais conhecido como Geraldão, eu não fui, não porque não fosse batista, mas porque tinha optado em ir para minha igreja local, da qual eu sentia muita falta. Sabia do evento, havia sido muito divulgado, além do mais, o preletor era alguém que eu admirava desde a minha infância, sempre idealizei grandes pregadores, gostava de ouvi-lo e depois me trancar no banheiro e imitá-lo pregando. Era um ícone para mim, um modelo a ser seguido. Eu tinha por hábito brincar com minhas irmãs de “igrejinha”, elas dirigiam o culto, e eu, mesmo que mais novo que elas, pregava ao final do cultinho. Sempre, em toda e qualquer situação eu dizia que seria pastor quando me perguntavam sobre meus planos para o futuro. Pensava até em ser missionário nos países do leste europeu, tinha lido muita literatura sobre a Cortina de Ferro, era um adolescente cheio de ideologias, Ivan, Perdoa Natasha, Torturado por sua Fé e Torturado por amor a Cristo eram livros de cabeceira, eu sabia de cor as histórias narradas neles. Richard Wumbrand[1], mais do que pastor e porta-voz da igreja perseguida, era um herói para mim.

Quando entrei no alojamento, o mesmo estava na penumbra, o “Toque de Silêncio Obrigatório” já havia soado, visualizei o Gilberto, sujeito estranho, gente boa, mas estranho, magro, pequeno, dotado de um aparato cefálico avantajado, usava um par de óculos de armação preta e grossa e as lentes eram bastantes “generosas”, para não dizer que eram literalmente um “fundo de garrafa”, o conjunto facial do mesmo parecia uma caricatura de Crumb, antes que alguém me pergunte quem é Crumb, favor olhar a nota de rodapé[2], era um verdadeiro "bola sete" (epíteto utilizado na Marinha para aquelas pessoas que são sonsas, fingem serem bem comportadas, mas na verdade aprontam mais do que os demais), estava sentado numa cama abaixo da minha no treliche que ocupávamos, ouvia uma programação pelo rádio, numa estação de frequência modulada, me aproximei ao perceber que era uma pregação, mesmo vindo da igreja eu estava árido, algo estava mexendo com o meu espírito naqueles dias, me sentia insatisfeito com os rumos que a minha vida estava tomando. Ir para o Rio de Janeiro estava me dando um vazio enorme, a possibilidade de passar os próximos anos à bordo de um navio, sem poder estudar, sem poder filiar-me a uma igreja, sem família por perto, sem alguns lastros importantes, enfim, estava me sentindo perdido.

Perguntei-lhe quem estava pregando, ele então me disse que era o Pastor Nilson do Amaral Fanini, expoente da denominação batista, o sermão estava sendo reprisado pela rádio, já que o mesmo tinha sido pregado na tarde daquele dia. Perguntei-lhe se era evangélico, ele me confirmou que era sim, era filiado à denominação batista.

Tão logo eu me sentei ao seu lado, o volume do rádio estava baixo, corríamos o risco de sermos punidos por estarmos atrapalhando o sono dos que já roncavam, ouvi quando Fanini, naquela voz anasalada que tanto o caracterizava, bradou: “Jonas, aonde você pensa que vai? Se continuar fugindo de mim, eu posso afundar o navio em que está! Eu posso mandar uma tormenta para que balance este navio até que você resolva voltar”. Era este o tom da mensagem que ele proferira naquele dia, as palavras podem não ser exatamente essas, mas era com esse espírito, já fazem 25 anos desde então, não conseguiria reproduzir com exatidão, ipsis litteris, letra por letra, o que ele disse.

Encolhi-me no lugar onde estava, não dei mais nenhuma palavra, aquelas palavras ditas de chofre me atingiram como um tijolo na face, não pestanejei e nem titubeei, elas eram dirigidas a mim. Desde os meus sete anos de idade que eu demonstrava vocação para o ministério pastoral, e por muitas vezes tentei entrar em dois seminários, um da Missão Novas Tribos do Brasil, no qual eu seria missionário e outro da denominação batista, mas sem sucesso, os dois me recusaram por ser muito novo. Frustrado com isso e sem paciência para esperar, fiz concurso para uma academia naval e fui aprovado, ingressei na mesma com a certeza de que seguiria carreira militar, tinha de tudo para ser um bom militar, disso eu sabia, até aquela noite, meu sonho se desfez no momento que Fanini falou para os “Jonas” que estavam se distanciando da vontade de Deus, que Deus não iria permitir que um navio atrapalhasse o seu propósito. Senti medo, mal consegui dormir naquela noite, no dia seguinte ao acordar, eu já sabia que pediria baixa. Não estava agindo exatamente pelos mesmos motivos que Jonas, pois eu não estava fugindo da obrigação confiada por Deus, eu estava chateado por conta de não ter sido aceito numa Escola de Profetas, mas a fuga era a mesma. Era tão desobediente quanto ele.

No outro dia, 1º de abril, procurei o comandante do corpo de alunos para comunicar a minha decisão, Capitão Tenente Paulo, dentista, já tinha feito tratamento odontológico com ele, sem que trocasse uma palavra sequer comigo, sujeito sério, taciturno, semblante sombrio e fechado, só o fato de falar com ele já era um desafio, quanto mais pedir desligamento no apagar das luzes do curso preparatório, ele acatou, não sem antes me aconselhar a mudar de ideia, meus colegas de farda achavam que eu estava brincando, pois era “Dia da Mentira” e eu era considerado um dos mais aguerridos alunos, tinha a fama de ser bom militar, ninguém acreditou em mim. Eu além de sargenteante, responsável pela escala de serviço dos plantões e da guarda, era o “mais antigo” do pelotão, jargão para o líder, eu havia sido escolhido mais por minha capacidade de liderança e comando do que por minha numeração, pois o verdadeiro “mais antigo” não sabia liderar, e isso para um militar era ruim, como eu já havia aprendido algo na igreja, não tive muitas dificuldades, mesmo à contragosto dos colegas, visto que eu era o 40º de 52, fui colocado à frente do pelotão como o líder e minha obrigação era conduzi-lo em todas as apresentações e formações que fizéssemos, isso quer dizer o dia todo, já que nunca ficávamos à vontade numa academia militar.

Para receber a devida baixa tive que ser submetido a exames médicos, constataram que eu tinha uma pneumonia, eu nem sequer tinha indícios disso, não sei se tinha mesmo, ou se foi uma forma de me fazer desistir, pois a Marinha não gostava de investir em alguém e depois esse alguém ir embora sem corresponder devidamente aos investimentos efetuados. Passei mais de um mês ainda, até que fizesse novo exame e recebesse a liberação definitiva. Chorei ao sair da Escola, não por saudades, ou tristeza, mas por enxergar a grandeza do que me esperava, do que estava diante de mim, do horizonte que vislumbrava. Saí com a alma cheia de paixão, cheio de sonhos e planos.

No dia 19 de setembro de 2009, um sábado, 23 anos depois do ocorrido que acabei de narrar, o Pastor Fanini faleceu durante a madrugada, em Dallas, Texas, aos 77 anos, ele tinha sido presidente da Convenção Batista Brasileira (CBB), da Aliança Batista Mundial (BWA, a sigla em inglês), com ampla projeção de sua liderança internacional e foi o fundador do programa de televisão “Reencontro”.

Fanini tinha viajado aos Estados Unidos com a esposa, Helga, para conhecer sua mais nova neta. No vôo, ele sentiu-se mal por causa de pneumonia e, posteriormente, sofreu um AVC (acidente vascular cerebral), que atingiu três partes do seu cérebro. Esteve internado no hospital de Dallas. Médicos constataram que a situação dele era irreversível, o que levou-os a desligarem os aparelhos. O funeral foi realizado nos Estados Unidos.

Fanini era paranaense de Curitiba, 18 de março de 1932. Aos 12 anos, converteu-se e foi batizado. Ao concluir o período de serviço militar obrigatório, Fanini passou a cursar o Seminário Menor no Instituto Teológico A. B. Deter, na capital paranaense, e seguiu, depois, ao Seminário Teológico do Sul do Brasil, completando o curso em 1955. Ele foi consagrado ao ministério pastoral em novembro de 1955, na Igreja Batista da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ano seguinte, casou-se com Helga, com quem teve três filhos: Otto Nilson, Roberto e Margareth. Fez mestrado nos Estados Unidos no Southwestern Baptist Theological Seminary, em Fort Worth, Texas. Ao retornar ao Brasil, passou a pastorear a Primeira Igreja Batista de Vitória, no Espírito Santo, onde atuou de 1958 a 1964, quando assumiu a Primeira Igreja Batista de Niterói, na qual trabalhou 41 anos. Após aposentar-se, continuou ligado ao ministério pastoral da Igreja Batista Memorial, de Niterói.

Certamente que ele jamais soube que eu desisti da carreira militar e abracei a carreira eclesiástica por uma palavra dita no meio de um sermão, ele que também desistiu da carreira militar no Exército. Devo a um sermão dele uma mudança drástica em minha carreira, talvez a mudança nem tenha sido tão grande assim, já que meu propósito original tinha sido de ser pastor desde que me entendia por gente, mas o fato de retomar o objetivo original não foi fácil, e até hoje 25 anos depois, vejo que não seria fácil nunca.

Como já disse em vários textos deste blog, desisti de ser pastor há muito tempo, por opções conflitantes com o ministério que tomei, ou tive que tomar, em minha vida, mas ainda lembro com emoção, e com uma paixão nostálgica que faz com que aquele momento fique marcado para sempre em minha mente, aquela noite de 1986, se eu estivesse lá outra vez, certamente que teria tomado a mesma decisão, teria cometido menos erros, e provavelmente não me sentiria mais uma vez como Jonas, sempre fugindo, sempre em meio às tempestades. Mas ainda há tempo, há tempo?

____________________________________________________
1 Richard Wurmbrand (Março 24, 1909 – Fevereiro 17, 2001) era um Romeno evangélico. Pastor e escritor. Ele foi o fundador da Organização Internacional Voz dos Mártires ou The Voice of the Martyrs. Fonte: www.wikipedia.com Verbete: Wurmbrand.
2 Robert Crumb (30 de agosto de 1943, Filadélfia, Pensilvânia) é um artista gráfico e ilustrador, reconhecido como um dos fundadores do movimento underground dos quadrinhos americanos, sendo considerado por muitos uma das figura mais proeminentes deste movimento, cujo ponto de partida foi publicação do gibi artesanal, Zap Comix, idealizado por ele. Fonte: www.wikipedia.com Verbete: Crumb.

Música da minha vida (II) 2ª Edição

"Salva, porém só”. Assim, de forma lacônica e sucinta, eu diria que até mesmo aparentemente desprovida de sentimentos, quase que apática, Anna Spafford comunicou, por meio de um bilhete telegráfico, ao seu marido Horatio que tinha sobrevivido ao naufrágio do Ville du Havre, porém, implicitamente, comunicava também que as suas quatro filhas que a acompanhavam não tinham sobrevivido ao desastre e tinham morrido afogadas, isso talvez explique a aparente falta de sentimentos a qual me referi no início deste parágrafo. Numa situação como essa, as pessoas, muitas vezes, são tomadas de algo que os Pais do Deserto¹ chamavam de Acedia². No mundo moderno costumamos confundir isso com depressão, já que, os acometidos por tal ausência de sentimentos não conseguem esboçar nenhuma reação diante de qualquer situação que lhes é proposta, desde a mais insignificante, como pentear o cabelo, a uma mais complexa, como tomar uma decisão estratégica, ou de extrema relevância, para algo que esteja fazendo ou que lhes diga respeito, até mesmo se essa decisão é em alguma área vital de sua vida. Até parece que algumas coisas não afetam em nada o ser humano que é tomado por tal sentimento, até parece não! De fato nada afeta mesmo o ser humano que foi dominado pela Acedia. Fecho o primeiro parágrafo com uma digressão e uma desculpa por tê-la efetuado, o meu vício por este tipo de recurso literário é incorrigível.

Ainda consigo lembrar o misto de emoção que senti ao ouvir e entender a mensagem de “Se paz a mais doce, me deres gozarpela primeira vez, conhecia o hino desde a minha tenra infância, porém não conhecia o drama que estava por trás da composição dele, não sabia a trajetória de vida do autor. Uma estranha emoção, com toda a carga benéfica que este vocábulo tem. Bela, boa e estranha, bela ainda que estranha e estranha ainda que bela e mesmo assim muito boa.

Eu estudava o primeiro ano no Seminário Presbiteriano do Norte em Recife, tinha cerca de 20 anos, estava naquela fase de encantamento, havia entrado para estudar e ser pastor, numa das melhores instituições do Brasil, sonho de minha infância, e estava passando por uma fase de despertamento espiritual muito intensa. A literatura que mais me chamava à atenção era literatura de avivamento espiritual. Ainda lembro do que senti ao ler: O homem que Deus usa, Por que tarda o pleno avivamento?, Recado para os ganhadores de alma, Crise de integridade e Avivamento na África do Sul. O grande professor Othon Guanaes Dourado, mais conhecido como “Mestre Othon”, era um dos maiores incentivadores de tais leituras e sempre tinha algum título novo para recomendar, o clima organizacional era muito benéfico e muito propício para que uma música como essa marcasse minha vida. Foi nesse período que surgiu o movimento de redescoberta da literatura puritana, algo que todos nós olhávamos com cuidado, pois quaisquer desvios, como querer reviver um movimento do passado como normativo para o presente, poderia causar distorções sérias e danosas, danos esses que poderiam ser irreversíveis. O anacronismo adoeceu este movimento, que nasceu com uma proposta tão boa. Hoje, muitas igrejas, que adotaram este movimento como modelo litúrgico e de práxis, sequer comemoram o Natal, posto que Jesus não nasceu em dezembro, e consideram a festa como de origem pagã, além de outras práticas que estão longe do culto reformado, assim como usar shofar durante os cultos, prática dos que adotam o modelo G-12, está longe do culto cristão. Recomenda-se moderação em tudo. Fechada segunda digressão, continuemos pois.

À época, no Centro de Convenções de Olinda foi realizado o Congresso Nordestino de Evangelização, por algum motivo eu não pude comparecer, porém aqueles que foram falaram da emoção vivida quando Nelson Bomílcar, músico influente no protestantismo brasileiro, antes de levar os presentes a cantarem este hino, contou a história de seu autor e a razão de ser da mesma. Quando eu soube, chorei como se estivesse naquele auditório, desde então, não posso cantar e nem ouvir sem ser tomado por um vendaval de emoção que me conduz às lágrimas.

Se paz a mais doce me deres gozar,
Se dor a mais forte sofrer;
Oh, seja o que for, Tu me fazes saber 
Que feliz com Jesus sempre sou.

Sou feliz com Jesus!
Sou feliz com Jesus, 
Meu Senhor! 

Costumo dizer há muito tempo que a hora que os cristãos mentem mais é na hora em que cantam, cantar esse hino não é para qualquer um, eu mesmo evito cantá-lo, depois de algumas experiências, não quero mentir, não posso mentir num momento sublime de adoração, pois para cantar esse hino é necessário mais do que uma bela voz, é necessário viver o que está sendo dito, e a letra é muito forte, muito densa: “... Oh, seja o que for, Tu me fazes saber, que feliz com Jesus sempre sou...”, ou como diz o original em inglês: “... está tudo bem com minha alma...”³. Não sou dado à hipocrisia, prefiro ficar calado, e já fiquei algumas vezes de boca fechada no púlpito ou no auditório da igreja, por entender que não deveria cantar algo que não pudesse viver com honestidade. Por exemplo: não gosto de cantar “Tudo ó Cristo a ti entrego, tudo, sim por ti darei...”, acho esta construção frasal muito forte, densa, de extrema responsabilidade, se cantada sem a devida atenção ou noção, incorre-se no risco da prática da hipocrisia e de um cristianismo superficial e supérfluo.

Esta canção, prefiro chamar aqui de hino, para evitar ferir olhos e ouvidos mais sensíveis, como os dos puritanos, foi concebida e escrita em meio à adversidade pelo advogado Horatio Gates Spafford, a sua intenção foi de registrar o momento que estava vivendo e a emoção sentida, não entendia que estava escrevendo uma canção, até porque foi a única que escreveu a letra. Spafford foi também, professor de jurisprudência médica na Universidade de Lind e chegou a ocupar o cargo de diretor de um Seminário Presbiteriano.

Spafford nasceu no dia 20 de outubro de 1828 em Lansingburgh, Rensselaer County, Nova York, e faleceu em 1888 em Jerusalém.

Em 1861, aos 33 anos, casou-se com uma jovem chamada Anna Tuben Larssen. O casal morava em Chicago, quando o Grande Incêndio que acometeu àquela cidade, destruiu tudo o que eles tinham, deixando-os com sérias dificuldades.

Em 1870, Horatio e Anna Spafford perderam um filho (Chamado Horatio) que morreu em consequência de uma forte febre, provavelmente causada pela tuberculose, era o segundo impacto que sofriam, isso era apenas o começo de uma trajetória de vida marcada por toda sorte de acontecimentos, alguns dos quais poderia levar qualquer ser humano ao desespero. O casal já tinha nesta época 3 filhas (Annie, Maggie e Bessie), mais tarde teriam uma outra filha chamada Tanetta.

Esta época que estamos nos referindo, foi marcada por um forte despertamento espiritual, missionário e evangelístico na igreja estadunidense, bem como na inglesa, é a época de Dwight L. Moody, um dos maiores evangelistas que a Igreja já teve, ele morava também em Chicago, e era amigo muito próximo de Horatio. Quando Moody decidiu em 1873 efetuar algumas cruzadas evangelísticas na Europa, mormente Inglaterra, Horatio e sua esposa decidiram viajar também, para encontrá-lo e apoiá-lo em sua turnê missionária e tencionavam também visitar a Europa Continental, além da companhia a Moody e do desfrute das bençãos que adviriam daquelas campanhas, eles planejavam esta viagem como uma forma de se recuperarem emocionalmente dos embates que a vida lhes causou.

Para poderem embarcar para a Europa, precisavam deslocar-se de Chicago à Nova York, foi o que fez toda a família Spafford. Porém um compromisso inadiável no último momento impediu Horatio de viajar. Ele então pediu à esposa que viajasse com as suas quatros filhas na frente, já que as reservas tinham sido efetuadas e não deveriam cancelar a viagem, o plano dele era encontrá-las tão logo pudesse, tão logo os negócios permitissem. Elas embarcaram no S.S. Ville Du Havre no final de novembro de 1873, e este partiu para Europa levando Anna, as quatro filhas do casal e mais aproximadamente 310 passageiros. Horatio voltou para Chicago para resolver os problemas que o impediram de viajar.

Na madrugada do dia 22 de novembro de 1873 já em águas do Atlântico Norte, o navio em que a família de Horatio estava, se chocou com um outro navio inglês e afundou em apenas 12 minutos. Uma tragédia sem precedentes, 226 pessoas morreram neste naufrágio, incluindo as quatro filhas de Horatio. Das 90 pessoas que sobreviveram, Anna Spafford era só um número, já que a desolação da morte das filhas não permitia que comemorasse ter se salvado agarrada aos destroços que boiavam.

O bilhete, a que me referi, com a triste mensagem foi escrito tão logo que chegou a um lugar seguro, após ter sido resgatada, em 01 de dezembro de 1873: “Salva, porém só”.

Horatio, imediatamente pegou o primeiro navio com destino à Inglaterra e foi ao encontro de sua esposa. Como forma de solidarizar-se com a dor dele e de outros passageiros que também tinham perdido entes queridos, o capitão da nau mandou avisar a todos que estava passando perto do local onde o Ville du Havre tinha submergido, que lançaria âncora enquanto os parentes fizessem as últimas homenagens, Spafford mirou por alguns instantes aquelas águas sepulcrais e tomado de profunda emoção e comoção, voltou para sua cabine e começou a escrever uma declaração de fé, original, profunda e de uma sublimidade, por ter sido escrita no meio de um vendaval de emoções, que não existem muitas que possam ser comparadas: “Se paz a mais doce me deres gozar, se dor a mais forte sofrer, oh! seja o que for, tu me fazes saber, que feliz com Jesus sempre sou”.

Ainda que tenha escrito estes versos no meio de tanta dor, ele deixa transparecer por meio das linhas de cada estrofe, que o conforto que sua alma encontrou em Jesus, está além da compreensão e do entendimento humanos. A paz que ele nos deixa perceber que experimentou, não pode ser explicada por meios das palavras que estão escritas e nem por meio das que são cantadas. É preciso muito sentir o amor paternal de Deus para cantar: “... está tudo bem com minha alma...”. Foi um momento de muita dor, mas ao mesmo tempo um momento em que ele pode sentir o consolo da paz que está acima de todo o entendimento humano, que só Cristo pode dar.

O título que deu ao hino “Ville de Havre”é o mesmo nome do navio que naufragou com as suas filhas, parece querer relembrar, o que nas palavras de um autor dos tempos modernos seriam, os “sonhos despedaçados”. A tradução para nossa língua “Sou feliz” não corresponde à realidade do que ele quis de fato dizer. Ele não foge da dor, não tem medo de olhar para dentro de sua alma sofrida, ele não se esconde, não sublima o que sente, antes, pelo contrário, sente a dor em sua essência, porém, toma uma decisão madura espiritualmente que permite que sua alma não sucumba no abismo de suas emoções sofridas.

Quando ele diz: “... está tudo bem com minha alma...”, ele necessariamente não está dizendo que está feliz. Apenas que os anseios que tem, estão submetidos à autoridade divina. Ele deixa transparecer que o maior anseio que tem é de relacionamento com Deus, as demais coisas podem ser importantes, mas não são mais do que esta verdade. Isto faz com ele não seja abalado pelo que aconteceu. Não tem correlação com o budismo que ensina a minimizar os anseios como formar de minimizar as frustrações. Mas é a consciência de que o que mais importa neste mundo é a proximidade com Deus, as demais coisas estão em segundo plano.

Embora me assalte o cruel Satanás,
E ataque com vis tentações,
Oh, sim certo estou, mesmo em tais provações,
Em Jesus acharei força e paz.

Jesus meu Senhor, ao morrer sobre a cruz
Livrou-me da culpa e do mal;
Salvou-me Jesus, oh, mercê sem igual!
Sou feliz, hoje vivo na luz.

A vinda eu anseio do meu Salvador;
Em breve virá me buscar;
E então lá no céu vou pra sempre morar,
Com remidos na luz do Senhor.

Se formos comparar a teologia deste hino com aquela que encontramos em boa parte da hinódia brasileira moderna, não encontraremos nenhum ponto de convergência. Vejamos alguns exemplos: “... restitui, eu quero de volta o que é meu...”, “... se diante de mim, não se abrir o mar, Deus vai me fazer andar por sobre as águas...”, “... abre as comportas do céu, e faz chover, faz chover...”, todas estas músicas hodiernas induzem a pensar que Deus nada mais é do que um garçom com um pano branco no braço, pronto a nos servir na hora em que quisermos, basta apenas que sejamos bons garotos e que contribuamos financeiramente com frequência e “fidelidade”. Distante demais do ideal de Horatio, que procurou demonstrar que nem mesmo a adversidade, nem mesmo a morte poderia afetar a sua alma e a relação desta com Jesus. Não precisamos ser falsos e hipócritas ao dizer “... sou feliz com Jesus...”, precisamos sim ter a certeza de que “... está tudo bem com minha alma...”, ainda que esteja doente, ou vendo um parente no leito da dor, ainda que tenha alguém da família num presídio, ainda que passando fome, ainda que desempregado, ainda que tenha distúrbios e transtornos graves psíquicos, está tudo bem com minha alma, nem sempre estaremos rindo, mas por conta do cuidado de Jesus conosco, poderemos sem hipocrisia alguma dizer: “... está tudo bem com minha alma...”. Quando a entregamos aos cuidados de Jesus, não importa a adversidade, realmente, está tudo bem com nossas almas.

Posso não ser plenamente feliz, nem tampouco ter tudo o que quero, mas, como o foco de meus desejos estão em Jesus e numa relação de dependência e de fé nele, posso dizer que está tudo bem com minha alma. E está mesmo, ainda que minha mente e minhas emoções sejam confusas e aterradoras, está tudo bem com minha alma, ainda que os medos e as angústias me dominem às vezes, está tudo bem com minha alma, ainda que sinta um vazio enorme no peito, está tudo bem com minha alma, ainda que desprezado pelos mais próximos, está tudo bem com minha alma, ainda que humilhado pelos outros, está tudo bem com minha alma, ainda que sofrendo as consequências dos meus próprios erros, está tudo bem com minha alma.

Meu maior anseio é ter uma relação com Jesus, desfrutar de seu amor e cuidado, meus sonhos não são de prosperidades e nem estou preocupado se vou ou não ser curado, quero enxergar Deus como Ele é, quero amá-Lo pelo que é, não pelo que pode fazer por mim. Está tudo bem com minha alma!

______________________________________________________
1 O termo, Padres do Deserto inclui um grupo influente de eremitas e cenobitas do século IV que se estabeleceram no deserto egípcio. As origens do monaquismo oriental se encontram nessas ermidas primitivas e comunidades religiosas. Paulo de Tebas é o primeiro eremita do qual se tem notícia, a estabelecer a tradição do ascetismo e contemplação monástica e Pacômio de Tebaida é considerado o fundador do cenobitismo, do monasticismo primitivo. Ao final do terceiro século, contudo, o venerado Antão do Egito orienta colônias de eremitas na região central. Logo, ele se torna o protótipo do recluso e do herói religioso para a Igreja oriental - uma fama devida em grande parte à vasta louvação na biografia de Atanásio sobre ele. Esses primitivos monásticos atraíram um grande número de seguidores aos seus retiros austeros, através da influência de sua simples, individualista, severa e concentrada busca pela salvação e união com Deus. Os Padres do Deserto eram frequentemente solicitados para direção espiritual e conselho aos seus discípulos. Suas respostas foram gravadas e colecionadas num trabalho chamado "Paraíso" ou "Apotégmas dos Padres". Fonte: www.padresdodeserto.net
2
“... A palavra saiu de uso tanto no português como em outras línguas latinas, mas continua presente no dicionário. De acordo com o Houaiss, significa enfraquecimento da vontade, inércia, preguiça ou desordem mental, caracterizada por apatia, melancolia e descuido...” Fonte: www.superinteressante.com.br/superarquivo/2006/conteudo_433090.shtml
3 It Is Well With My Soul
When peace like a river, attendeth my way,
When sorrows like sea billows roll;
Whatever my lot, Thou hast taught me to say,
It is well, it is well, with my soul.

Refrain:
It is well, with my soul,
It is well, with my soul,
It is well, it is well, with my soul.

Though Satan should buffet, though trials should come,
Let this blest assurance control,
That Christ has regarded my helpless estate,
And hath shed His own blood for my soul.

My sin, oh, the bliss of this glorious thought!
My sin, not in part but the whole,
Is nailed to the cross, and I bear it no more,
Praise the Lord, praise the Lord, O my soul!

For me, be it Christ, be it Christ hence to live:
If Jordan above me shall roll,
No pang shall be mine, for in death as in life,
Thou wilt whisper Thy peace to my soul.

But Lord, 'tis for Thee, for Thy coming we wait,
The sky, not the grave, is our goal;
Oh, trump of the angel! Oh, voice of the Lord!
Blessed hope, blessed rest of my soul.

And Lord, haste the day when my faith shall be sight,
The clouds be rolled back as a scroll;
The trump shall resound, and the Lord shall descend,
Even so, it is well with my soul.
Fonte: www.wikipedia.com – Verbete: “It Is Well with My Soul”.

Guerreiro Menino - Fagner



Um homem também chora
[Composição: Gonzaguinha]

Um homem também chora
Menina morena
Também deseja colo
Palavras amenas
Precisa de carinho
Precisa de ternura
Precisa de um abraço
Da própria candura
Guerreiros são pessoas
São fortes, são frágeis
Guerreiros são meninos
No fundo do peito
Precisam de um descanso
Precisam de um remanso
Precisam de um sonho
Que os tornem perfeitos
É triste ver este homem
Guerreiro menino
Com a barra de seu tempo
Por sobre seus ombros
Eu vejo que ele berra
Eu vejo que ele sangra
A dor que traz no peito
Pois ama e ama
Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E a vida é trabalho
E sem o seu trabalho
Um homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata
Não dá pra ser feliz
Não dá pra ser feliz.

[Esta música retrata com fidelidade um pouco do que eu estou sentindo hoje, para mim é mais que poesia, é minha vida!]

The sweet grandpa

Eu não sei direito como tudo isso começou. Pudera também, eu não tinha mais de 5 anos quando me veio o primeiro vislumbre de uma tragédia que talvez acabasse com tudo. Tragédia para nós porque seria um ganho e tanto às novas criaturas que dali por diante iriam cercá-lo. 

Aquela casa, preciso confessar, sempre me intrigou um pouco. Eu lembro do céu e sua cor inexistente, lembro do branco amarelado que assumiu naquele dia em que eu estava sentada em uma escada de pedra, vendo a rua movimentar-se lá embaixo. Estava tudo muito calmo, claro e silencioso. De alguma forma eu gostava daquilo. Eu gostava muito daquilo. 

Lembro-me que o vi chegar com aquele sorriso deslumbrante que só ele conseguia ter. Ele abriu o portão de ferro lá embaixo para adentrar o quintal de sua casa e eu me alegrava de vê-lo chegar, ainda mais do jeito que estava ali. Seu corpo estava mais forte, ele parecia muito mais saudável do que das outras vezes que eu o vira e vestia um terno cor-de-vinho incrivelmente bonito, lhe caía muito bem. Ao ver aquela imagem à minha frente, dirigindo-se a mim foi que eu comecei a pensar… Ora, mas por que ele estava vestido daquela forma? Não era normal, todas as vezes que eu passava algum tempo naquela casa eu o via vestindo roupas simples e confortáveis que sempre foi o que mais combinou com ele. 

Uma atmosfera caseira e extremamente aconchegante. Eu notei cada detalhe de seu terno, da bengala em sua mão e da cartola cobrindo sua cabeça calva. Ele parecia um daqueles senhores de filmes antigos, perfeitamente arrumado e adereçado. Isso com certeza não era normal apesar de eu ter apreciado bastante tal mudança. 

Foi então que eu entendi. Seus pés calçados naqueles sapatos engraxados e brilhantes vieram em minha direção lentamente, subindo a escada de pedra sem fazer barulho algum. Mirei cuidadosamente o rosto enrugado e doce daquele homem sorrindo pra mim e uma dor inexplicável tomou conta do meu peito, comecei a me sentir mal, um aperto imenso se formou dentro de mim. Eu queria sorrir também mas não conseguia. 

Queria retribuir aqueles olhos tão cálidos mas os meus só refletiam pânico, eu sentia que seria abandonada. Foi assim que da mesma forma silenciosa na qual apareceu, ele sumiu. O céu branco amarelado daquele dia calmo foi ficando cada vez mais brilhante e me cegou, até que eu vi meu avô sumir no meio da escada de pedra, em seus passos até mim. Quando tudo escureceu, eu já tinha me dado conta de que ele não estava mais comigo. E pensei na alegria que Papai do céu devia estar sentindo naquele momento, por ter aquele homem tão precioso ao seu lado agora.

Mysha Pepper (Retirado de seu blog com permissão)
http://www.tumblr.com/tumblelog/christwillremindus

Teu olhar!


Às vezes esbarro com tua Bíblia gasta ainda guardada na gaveta,
Ou com aquele velho guarda-chuva que guardavas com capricho,
Ou mesmo com teus sapatos empoeirados no armário,
Ou com tua roupa arrumada no guarda-roupas,
Ou com a cadeira que costumavas usar,
A tua presença é invisível, mas perceptível, por toda casa.
Muitas vezes a tua ausência se faz presente,
Ultimamente, se faz mais presente do que de costume.
Quando um instante de calmaria se instala,
E o silêncio domina o ambiente e a mente para,
A tua ausência é tangível, tocável, palpável,
Então procuro algo que me traga você de volta,
Só então é que me dou conta de que,
É  o teu olhar que me faz mais falta!
Só então é que me dou conta disso.
Não são os objetos, nem mesmo tua roupa.
Não são tuas mãos afáveis que me lembram mais você,
Nem teu sorriso de criança que recordo mais,
Nem teu jeito simples e encantador,
Nem teu abraço cálido e suave,
Nem teu beijo protetor e marcante,
Nem a tua voz peculiar e meiga.
Mas sim teu olhar, teu simples olhar.
Foi por meio dos teus olhos que eu aprendi a te conhecer,
Por meio deles que eu te descobri,
Sabia o que tua alma queria dizer,
Sabia se estavas triste ou alegre,
Sabia se estavas ou não suscetível ao cansaço,
Sabia até mesmo o que te preocupava,
Não havia em você nada mais transparente.
Por meio dos teus olhos eu te lia,
Como faria com qualquer livro,
Eras o que os teus olhos mostravam,
E o que teus olhos mostravam, era de fato você.
Não havia incoerência, não havia distorção.
São teus olhos azuis, quais diamantes,
Que me fazem mais falta hoje.
Teus lindos olhos azuis meu pai!
Saudades deles, saudade de você,
Ainda lembro deles na última vez que te vi,
Quando beijei tua testa febril e disse: - Te amo!
Sei que um dia, quando tudo acabar,
Terei o teu abraço cálido e suave,
Quando voltar para a casa eterna.
Mas antes de qualquer palavra que possa ser dita,
Quero olhar em teus olhos, olhar mais uma vez.
Depois eu sei que nada mais precisa ser dito,
Aí poderemos nos sentar na beira desse lago de prata,
Pegar anzóis e fingir que estamos pescando,
E deixar o tempo passar lentamente,
E o tempo jamais será um problema para nós.
Até breve vaqueiro, até breve herói!

Clarisse - Legião Urbana


Estou cansado de ser vilipendiado, incompreendido e descartado
Quem diz que me entende nunca quis saber
Aquele menino foi internado numa clínica
Dizem que por falta de atenção dos amigos, das lembranças
Dos sonhos que se configuram tristes e inertes
Como uma ampulheta imóvel, não se mexe, não se move, não trabalha.
E Clarisse está trancada no banheiro
E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete
Deitada no canto, seus tornozelos sangram
E a dor é menor do que parece
Quando ela se corta ela se esquece
Que é impossível ter da vida calma e força
Viver em dor, o que ninguém entende
Tentar ser forte a todo e cada amanhecer.
Uma de suas amigas já se foi
Quando mais uma ocorrência policial
Ninguém entende, não me olhe assim
Com este semblante de bom-samaritano
Cumprindo o seu dever, como se eu fosse doente
Como se toda essa dor fosse diferente, ou inexistente
Nada existe pra mim, não tente
Você não sabe e não entende
E quando os antidepressivos e os calmantes não fazem mais efeito
Clarisse sabe que a loucura está presente
E sente a essência estranha do que é a morte
Mas esse vazio ela conhece muito bem
De quando em quando é um novo tratamento
Mas o mundo continua sempre o mesmo
O medo de voltar pra casa à noite
Os homens que se esfregam nojentos
No caminho de ida e volta da escola
A falta de esperança e o tormento
De saber que nada é justo e pouco é certo
E que estamos destruindo o futuro
E que a maldade anda sempre aqui por perto
A violência e a injustiça que existe
Contra todas as meninas e mulheres
Um mundo onde a verdade é o avesso
E a alegria já não tem mais endereço
Clarisse está trancada no seu quarto
Com seus discos e seus livros, seu cansaço
Eu sou um pássaro
Me trancam na gaiola
E esperam que eu cante como antes
Eu sou um pássaro
Me trancam na gaiola
Mas um dia eu consigo existir e vou voar pelo caminho mais bonito
Clarisse só tem 14 anos...

[Composição: Renato Russo]

Eu, um Borderline (III)


Duas considerações são necessárias antes do desenvolvimento do texto propriamente dito, eu deveria ter feito as mesmas, desde o primeiro artigo desta série: 1º) Alguns visitantes do blog me perguntaram por que eu associo uma máscara com alguns textos e com outros não? 

Bom, aqui vai uma tentativa de resposta, para algo que eu julguei que estava claro:  desde que descobri (relato isso em Eu, um Borderline I) ser portador de um distúrbio psíquico, conhecido como Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), e que comecei a escrever algumas coisas sobre a égide deste tema, tenho colocado a insígnia da máscara bipartida, que demonstra a divisão que há na alma de um Borderline, não há ligação alguma com segredos, ou hipocrisia (lembrar que em grego, hypocritê, de onde vem o termo hipócrita, que significaria mais ou menos julgar pelo que está por baixo, não pelo que se vê, era a máscara usada pelos atores no teatro, por isso existe a máscara que representa a tragédia, outra a comédia, etc). Nos textos que a máscara não aparecer, eu entendo que minha personalidade Borderline não “contribuiu” tanto assim para a concepção do texto, não significativamente, uma vez que seria impossível esta separação, não posso simplesmente pegar meu lado Borderline e colocar na gaveta e tirá-lo quando eu quiser, mas entendo que algumas vezes a minha inspiração não vem de minhas emoções distorcidas de um Borderline, mas sim que são sadias e absolutamente normais, posso parecer que estou sendo confuso ao dizer isso, e não peço desculpas por isso.
2º) Para todos os textos que conceber para esta série, presumo que serão no máximo cinco, começando por este, vou colocar alguma informação sobre o TPB entre colchetes e em seguida efetuar comentários, ligando o descrito com a minha própria experiência. Sempre que enxergar que algum sintoma é dominante em minha personalidade, vou procurar revisitar minha vida e ver como isso me afetou ou me afeta. Bom, com isto posto, encerro esta digressão. Este texto promete, nem bem começou e já teve uma digressão.
[“... O borderline é extremamente intolerante às rejeições e outras frustrações comuns no cotidiano de todos. A dor pela falta de amor é intensamente sentida em indivíduos borderlines, o que pode estimular o processo auto e hétero destrutivo. Por isso, muitas vezes o borderline torna-se um indivíduo aparentemente rebelde e com um instinto vingativo contra os maus tratos passados...”] Começo este terceiro texto desta série, parafraseando uma famosa canção de Milton Nascimento: Eu sabotador de mim! E que seria um excelente título para este texto. É exatamente assim que me sinto hoje, quando olho para o meu passado, e até mesmo para o presente. Isso foi o que eu fiz em toda a minha vida, seja na área doméstica, familiar, seja na área afetiva, seja na área eclesiástica, seja na área profissional, seja na área acadêmica, eu fui muito competente em destruir meus projetos, planos, objetivos e sonhos. Eu mesmo os contruí e eu mesmo os derrubei com a mesma facilidade com que os erigi.
Sempre foram paradoxais para mim alguns fatos de minha infância, dentre eles posso citar o fato de ser um brilhante aluno em sala de aula, e ser quase um fracasso na hora das provas, cheguei a ser reprovado duas vezes na quarta série, ainda que fosse um dos melhores alunos e ser destaque em todas matérias. Eu aprendi a ler sozinho, lembro de que de uma hora para a outra eu, simplesmente, descobri que sabia ler, aprendi num gibi de Tio Patinhas, e antes mesmo de meus 12 anos, lia livros de teologia em espanhol, emprestados por um amigo, aprendi esta língua sozinho também, antes mesmo da adolescência. Eu ensinava a todos os outros alunos, eu os ajudava nas suas dúvidas, eles conseguiam as notas necessárias e passavam nas provas, eu fui reprovado, até hoje não sei o porquê, bom, hoje eu sei o porquê.
A dificuldade de terminar um projeto, um plano, um livro, um CD, um filme, qualquer coisa, exigia, e ainda exige, um esforço muito grande, facilmente me entendiava, e me entedio, e largava o que estava fazendo, pois perdia o interesse muito rápido. Isso passou a fazer parte de minha vida acadêmica, sempre tirei notas boas nas primeiras unidades, nas demais, tiro notas sofríveis, pois não me interesso mais pela matéria, já que me entedia e deixou de ser novidade. Isso também ocorre com atividades profissionais, se eu não estiver engajado em algo que a rotina seja não ter rotina, eu vou me entendiar, perder o interesse e cair fora. Paguei diversos cursos de idioma, informática, etc, e nunca os concluí, simplesmente desisti perdi o interesse. Desisti de mestrados, pós-graduações e graduações, com a mesma facilidade que jogo fora um lenço de papel que usei para efetuar a higiene nasal ou bucal.
Até mesmo nos relacionamentos eu era assim, mas isso eu vou falar em outro texto, não é o momento adequado agora. Mas não posso deixar de falar na intolerância às frustrações e rejeições. Parece que os Borderlines são mimados e birrentos, que não aceitam ouvir um sonoro “Não!”, mas é isso mesmo, não sei ouvir um não, posso ser birrento, mas não sou mimado, não tenho imunidade contra rejeição e nem sei trabalhar com frustrações, se algo não sai exatamente como eu quero, e olha que sou extremamente perfeccionista, pode ter certeza que vem uma tempestade de ira em seguida, se eu der uma ordem e ela for desrespeitada, pode acreditar que acenderam um vulcão e que vai entrar em erupção em segundos. Hoje que sou adulto, ocupo cargos estratégicos em várias empresas, posso enfrentar isso de forma que canalize essa tendência para as atividades profissionais, isso faz de mim um profissional respeitado, já que a minha fama é de gostar de tudo certo e bem feito, isso me deu a verve da eficiência. Mas, às vezes, o custo disso é muito alto.
Agora imagine essa não imunidade num garoto ou num adolescente? Frustração e ira na certa, pois ninguém se preocupava comigo, diziam que era birra, ou eu tomava uma sova, ou eu lidava com isso de outra forma, seja me refestelando em sujeira pornográfica, seja por meio de agressão física, contra mim mesmo.
[“... Os borderlines são pessoas com memória muito exacerbada para eventos negativos: não são capazes de perdoar, remoem coisas do passado e vivem e revivem intensamente um sofrimento desproporcional aos fatos porque apresentam um juízo de valor muito rígido...”] A capacidade que tem um Borderline de ser afetado por aquilo que os outros pensam sobre ele ou fazem para ou com ele, é simplesmente estarrecedor! Quando criança, eu frequentava a escola dominical de uma Igreja Presbiteriana, era sempre um dos primeiros a responder as perguntas feitas, isso por conta de ter lido a Bíblia quase quatros vezes, antes mesmo de completar 10 anos, ainda bem que eu nunca confundi Donald, Huguinho, Zezinho e Luizinho com os 04 Evangelistas, eu não perco a oportunidade mesmo de fazer uma digressão, que mania! Para estimular o aprendizado os professores costumavam promover gincanas bíblicas, eu sempre me saía muito bem. Lembro que numa destas, eu fiquei empatado com outro aluno, a professora resolveu então fazer um sorteio, ela não tinha mais tempo para novas peguntas, quando ela tirou o nome do primeiro sorteado, ela não conseguiu esconder a insatisfação que teve, chegou a exclamar: “-Esse não!”, mas antes que pudesse fazer novo sorteio, informaram que o tempo havia acabado da aula. Subimos para a nave central da igreja, depois que todas as classes estavam reunidas, ela foi à frente da igreja para anunciar o vencedor da gincana: eu! Eu mesmo. Fui à frente receber o prêmio, que nunca me consolou pela demonstração de desafeto dela, que pode ter passado desapercebido por todo mundo, menos por mim, até hoje quando vejo esta ex-professora, ainda me lembro disso. Nunca comentei isso com ninguém, absolutamente ninguém.
Não sei até hoje a razão de que uma tia materna minha, de personalidade forte e influente na família, me perseguir tanto, ela procurava saber quais as traquinagens que eu fazia na escola, depois chegava na casa de meus pais e dizia para minha mãe, que nem sequer me perguntava nada e me aplicava mais uma homérica sova. Um dia, eu me desviei do meu trajeto da escola para casa por algo em torno de 200 metros, ia buscar na casa de uma colega um gibi para ler, já era um leitor voraz à época, ela me viu, desistir de ir. No mesmo dia ela foi na minha casa, antes mesmo que entrasse eu pedi-lhe que não dissesse nada, ela nem me deu ouvidos, contou para minha mãe o ocorrido, apanhei igual a um cão de rua. O que me choca hoje é que a razão da surra foi que a irmã da menina que eu ia pegar o livro, segundo as más línguas, havia cometido um aborto, logo, eu não poderia me relacionar com pessoas assim, nem mesmo com os seus parentes. Até hoje me lembro da surra. Nunca perdoei minha mãe por não coibir isso, nunca perdoei por ela alimentar isso.
Quando alguém me diz: “-Quero falar com você depois!”. Seja quem for, mãe, irmãos, amigos, namoradas, colegas, chefes, professores, subordinados, etc, causa em mim uma tempestade emocional de proporções desmedidas e incomensuráveis, não porque eu seja curioso, não é este o fato, mas por que a minha mente trabalha rápido, e eu acabo criando centenas de cenários desfavoráveis e caóticos, imagino milhares de coisas, acabo me exaurindo emocionalmente e já me antecipo à conversa, imaginando que tipo de defesas eu devo construir ou como reagir diante de cada fato. Tudo isso pode durar um fim de semana, um dia, uma hora ou mesmo uma pequena fração de segundos enquanto o interlocutor entabular a conversa. Muitas vezes eu imagino que alguém vai me dizer algo desagradável, e já passo a “odiar” aquela pessoa sem que ela tenha dito nada, quando descubro que o que ela queria dizer era banalidades, percebo que sofri antecipadamente em vão, é tarde, se o ocorrido tornar a acontecer, eu vou ter a mesma reação, invariavelmente.
[“... que, em momentos de ira intensa, podem oscilar entre um comportamento explosivo ou friamente vingativo, passando bruscamente do papel de vítimas injustiçadas para o de verdadeiros vilões sanguinários e cruéis que não medem esforços para cometer ações maldosas em busca de vingança. Interiormente, eles acreditam estar corretos em suas atitudes e não entendem por que as outras pessoas os olham com espanto e indignação após tais comportamentos...”] Não foram poucas as pessoas que agredi fisicamente e emocionalmente, mesmo aquelas indefesas, por conta de não saber aceitar uma atitude diferente daquela que esperava, ou mesmo porque não consegui lidar com um fato que me levasse a imaginar que estava sendo rejeitado, traído ou abandonado.
Mantive uma relacionamento com uma mulher, divorciada, duas filhas, bonita, inteligente e bem sucedida profissionalmente, quando tudo parecia que estava às mil maravilhas, o medo do abandono e da rejeição, ainda que imaginário, me fez desencadear uma atitude de ira contra ela, eu a feri e agredi, ainda é algo que me lacera, quando me lembro, e faço questão de não lembrar, mas nas muitas ocasiões que pensei sobre o assunto, eu percebo que estou vendo uma outra pessoa agredindo-a, não sou eu fazendo aquilo. No outro dia eu mesmo a levei à delegacia e pedi que registrasse queixa contra mim, queria purgar o que fiz, e, mesmo depois de 12 anos, ainda sinto as consequências deste ato insano.
Em dois outros relacionamentos posteriores, as mesmas reações foram desencadeadas, uma sem muita gravidade, outra com uma gravidade muito mais acentuada, resolvi romper os relacionamentos, pois eu mesmo não queria mais ferir ninguém. Não conseguia lidar com frustração, nem com o sentimento de que estava sendo rejeitado ou traído. A dor que isso causava em mim, ainda que parecesse hipocrisia, não era menor do que a dor que eu causava, eu simplesmente fico exaurido, esgotado, sem forças e desiludido com a vida. O arrependimento por ter feito aquilo, me acompanha por dias, de forma palpável, a única coisa que quero é me afastar da pessoa, não me sinto digno de estar perto e nem tenho o direito de machucar alguém daquela forma. Sempre ouvi de uma mulher que eu machuquei que eu era um covarde por fazer aquilo, ainda ouço a voz dela me xingando, ainda ouço seus queixumes, não posso tampar ou ouvidos para não ouvir, a voz dela grita dentro de minha mente, não tenho como calá-la! Isso dói  mais do que alguém possa imaginar.
[“... No fundo, são muito imaturos emocionalmente e — embora não demonstrem — facilmente frágeis.  O borderline também é, essencialmente, insaciável. Em termos de busca de atenção, eles sempre querem mais do que realmente têm. Por mais que as pessoas lhe dêem atenção, eles estão a exigir muito mais do que recebem. Talvez porque quando crianças não tiveram sua necessidade de atenção e afeto suficientemente preenchida. Para o borderline, toda a atenção do mundo não é suficiente. Inclusive, eles tendem a ser "paranóicos", exigentes e desconfiados sempre de que os outros não lhe dão importância, mesmo que isso não seja a realidade...”] Eu nunca gostei do fato de que sempre, invariavelmente, sempre eu queria ser o centro das atenções onde estava. E olha que a vida me ajudou nisso, pois desde os 14 anos que efetuava palestras na igreja, desde meu primeiro ano de faculdade que me tornei monitor e posteriormente professor, depois fui pastor, e era bastante convidado para pregar em centenas de igrejas, e por último, me tornei gestor de algumas empresas, sempre gerindo e liderando equipes com mais de 100 pessoas. Ou seja, eu sempre tive plateia. Mas, naqueles lugares em que eu falasse, e por algum motivo, as pessoas não me dessem a atenção que eu queria, eu dava às costas e ia embora, ou então me sentava e ignorava o mundo em volta.
Outra coisa que sempre me incomodou: a fragilidade emocional. Como expressa bem o título de um livro sobe TPB, sou um ser com Sensibilidade à flor de pele, as pessoas precisam pisar em ovos para lidar comigo, do contrário me machucam, me ferem e me afastam. Se alguém me disser algo que me fira, eu perco o fim de semana, ou mesmo eu peço até demissão de um emprego, o que já fiz algumas vezes, apenas porque alguém disse algo que me magoou.
[“... Eles, sem querer, distorcem-na, e acabam por tendenciar tudo para um lado "ruim" e enxergar somente o lado negativo ou das pessoas ou das situações com que se defrontam, acreditando, por exemplo, que as outras pessoas não lhe dão atenção, ou que de repente mudaram de comportamento e por isso são más, merecendo assim, punições e vinganças. Borderlines costumam ver e achar coisas inexistentes no comportamento de outras pessoas, o que causa sempre reações exageradas e tempestades emocionais. Uma "mudança" quase imperceptível no comportamento de uma pessoa aos olhos de outros, para o borderline é um enorme motivo para se desesperar e acreditar que a pessoa não gosta mais dele. Por isso, o borderline é excessivamente possessivo, acreditando que a pessoa pertence apenas a ele e a mais ninguém. Ninguém mais merece atenção a não ser ele. Caso contrário, ele perceberá qualquer simples atitude de distração ou enfado do próximo como rejeição, o que o fará dar início a uma série de comportamentos extremos que se traduzem em atitudes perigosas tanto para si quanto para os que estão ao seu redor, causando medo e espanto às outras pessoas...”] Um copo que esteja cheio pela metade, não estará meio cheio para mim, está meio vazio, sempre absolutamente sempre, eu vou enxergar as situações com uma perspectiva negativa. As pessoas ou são boas ou são ruins e caso me deixem pensar que me abandonaram, quando talvez nem saibam como evitar que eu me sinta assim, eu imediatamente escreverei seus nomes nas ostracas e as relegarei ao ostracismo (por favor quem não souber o que é isso, consulte o Google ou a Wikipédia, eu não estou com paciência para explicar agora, nem para terminar este texto eu estou!).
Possessividade e chamar à atenção demasiada, são duas outras atitudes infantis que me irritam, irritam porque eu as tenho e nem sempre sei lidar com isso. Isso afasta as pessoas, ninguém quer ser posse, as pessoas querem ser amadas e não portadas como um objeto. O vazio que existe dentro da alma, requer muita atenção, muito mais do que uma pessoa é capaz de dar, por mais que se esforce.
O caminho mais curto para a cura ou mesmo para a atenuação desses sintomas é reconhecer que eles existem, eu estou trilhando este caminho doloroso, mas necessário. Sou Borderline sim, tenho TPB, mas não vou continuar para o resto de minha vida cometendo os mesmo erros que me custaram tantas coisas preciosas, perdi muitas coisas, pessoas e oportunidades, mas não perdi minha vida, e por isso eu vou em frente, sei que ainda posso fazer diferente, vou fazer diferente, estou fazendo diferente.
P.S.: O texto que se encontra entre colchetes é citação de parte do verbete Transtorno de Personalidade Borderline da enciclopédia virtual Wikipédia®. Os grifos são todos meus.

Tédio



Sempre entediado, nunca não entediado.
Nunca terminando nada que começa,
Sempre começando algo que nunca vai terminar,
Quando termina, o esforço para isso é titânico,
Parece que nada merece ser concluído.
Atrai as pessoas com a mesma força que as repele,
É por vezes tão cativante e simpático,
Tão doce em seu trato, faz da meiguice sua marca,
Mas é tão cruel e frio ao menor sinal de rejeição,
Mesmo que esta rejeição seja apenas delírio.
Ler um livro inteiro, ainda que um best-seller,
Pode exigir uma força hercúlea,
O que nem sempre tem, pode ter ou quer ter.
Ouvir uma peça musical completa,
Ainda que uma Sinfonia Angelical,
Pode se tornar uma batalha inclemente.
Inclemente porque dificilmente vencerá.
Mesmo um filme, ainda que cinéfilo inveterado,
Pode ser rejeitado e nunca mais ser visto,
Basta apenas que o momento não seja propício.
Ou talvez não baste nada mesmo.
Uma conversa pode de boa virar péssima,
Basta apenas uma vírgula mal colocada,
Basta apenas um milésimo de segundo de descuido,
Ainda que o interlocutor nem saiba o que disse,
Que causou tremendo afastamento e desinteresse.
Aquela amizade calorosa,
Pode virar uma relação esfriada,
Por um simples segundo de vazio e desinteresse,
E o amigo, nem sabe o que fez para isso,
Por que na verdade não fez nada mesmo.
Tédio que nasce do vazio dentro de si,
Tédio que serve para calar a angústia que grita.
Tédio que torna os beijos da mulher amada indesejados,
Tédio que faz com que os braços amados se tornem garras sufocantes.
Tédio em qualquer momento da vida,
Tédio até mesmo para morrer.

Confissões de um ex-pastor (XII) 2ª Parte


Foi na obra de Flannery O’Connor, uma brilhante escritora oriunda do Sul dos Estados Unidos, que eu enfim encontrei alguém, ainda que um personagem fictício, na literatura com o qual eu tenha me identificado em absolutamente tudo. Segundo alguns estudiosos das obras de Flannery, ela revela, em seus textos, uma verve racista e preconceituosa, mesmo que professasse a fé católica, ainda assim é acusada de possuir tais tendências. Eu já li todos os contos que ela escreveu, bem como os romances que são, em sua maioria, ambientados no Sul, rural, protestante e preconceituoso, o que por isso, reforçaria a tese do racismo, e não vi nada de preconceito da parte dela, os personagens revelam algo que existia na sociedade, ainda que alguns sejam caricaturescos, não encontrei nada despropositado ou fora de lugar. Só imagino como é que ela sobreviveu naquela região, o famoso “Cinturão da Bíblia”, não por sua literatura, mas pelo seu credo, mesmo depois de morta ainda é perseguida.

Posso garantir de antemão que não se trata de um mocinho, nem de um herói destemido, nem mesmo de um príncipe encantador, não é nem mesmo um vilão sedutor ou um ser superinteligente, acho que ele está mais para anti-herói.

Foi num menino, um estranho menino, num mundo estranho, criado por uma escritora estranha, que julguei encontrar o mais perfeito correspondente literário para mim, todo mundo tem um, mesmo aqueles que acham que não têm, têm sim, basta procurar. Ruller é o seu nome, é o personagem central do conto O peru da genial Flannery, morta em 1964 aos 39 anos de idade (tenho outros dois ícones que também morreram aos 39 anos de idade: o sorumbático Soren Kierkgaard e Dietrich Bonhoeffer, achei até que eu mesmo morreria com esta idade. Cuidado! Digressão à vista.).

Eu tenho que admitir que, quando criança, eu já pensei em ser Elias, aquele profeta ranzinza do Primeiro Testamento, seria ranzinza mesmo ou o primeiro caso notificado de um Borderline? Vamos continuar o assunto, caso contrário eu entro numa digressão e acabo não voltando mais, ou mesmo João Batista, o alter-ego de Elias no Segundo Testamento, ou ainda Paulo de Tarso, feio e eloqüente orador, pensei em ser Sansão ou Davi, mas eu não tinha a força do primeiro e nem a sagacidade e beleza do segundo, pensei em Moisés, Josué, Salomão, etc. mas nunca fui e nunca serei nenhum destes, nem outro personagem qualquer da Bíblia.

Foi fora dela que eu encontrei o meu correspondente literário. Ainda bem que meu nome não é bíblico, caso contrário eu teria que corresponder ao profeta, evangelista ou rei. Já pensou o que faria se meu nome fosse Sofonias? Ou se eu tivesse sido registrado como Zorobabel? E se meu pai tivesse me batizado de Acabe? Acabar-se-ia tudo de vez mesmo, ao invés de Borderline eu seria defunto, eu me matava se tivesse um nome desses. Aprender a escrever Jocelenilton, aos quatro anos requereu um esforço mental indizível, já basta o trauma de ter que decorar as 12 letras, a ordem de escrevê-las e a necessidade da primeira ser maiúscula. Melhor seria que um simples João ou José fosse meu nome!

Já havia vasculhado a literatura, o teatro, o cinema e a televisão em busca de um correspondente, desde Robinson Crusoé a D’Artagnan, de Ivanhoé ao Arthur da Távola Redonda, mas não encontrava uma identificação plena, passei por Superman, Homem-Aranha, Durango Kid, Zorro, Tex, Heitor de Tróia, etc. tantos que nem consigo citar sequer um décimo. Hoje eu iria querer ser Passolargo de Senhor dos Anéis, Capitão Miller de Resgate do Soldado Ryan ou Maximus de Gladiador.

Ruller, porém, é diferente de todos estes que eu citei, ele é tangível, sua forma de introdução é humana, visceralmente humana, ou no dizer de Nietzsche: humano, demasiadamente humano, é como eu diria, de um perfil mais atingível. Muitos dos que eu admiro, ou admirava, não parecem humanos, são figuras míticas, de perfis inatingíveis. Creio que ele é uma obra inacabada da natureza, se isso soar como heresia, eu não vou pedir perdão, pois é assim que me sinto também, logo a natureza não o deixou sozinho, eu vim para fazer-lhe companhia, creio que não houve tempo necessário para que o Controle de Qualidade Angelical me vistoriasse e me liberasse para descer, eles estavam muito ocupados, dois dias antes de eu nascer, Martin Luther King tinha sido assassinado, as coisas não andavam muito bem lá nos EUA e nem na França, que passava por uma tormentosa rebelião estudantil, por isso, creio eu, que miríades de anjos sobrevoavam estes países, e esqueceram um pouco o setor de envio de bebês para o Brasil, eu fui um destes que não passou pelo Setor de Qualidade, fui despachado incompleto, inacabado. Quem iria se preocupar com um bebê que fora enviado para Monteiro na Paraíba no ano de 1968? Ainda mais com um alto índice de mortalidade infantil? A Seleção Natural daria um jeito, caso as coisas não saíssem bem. O pior é que quase que ela dá um jeito mesmo! Antes dos dois anos, quase que morro de tantas doenças que tive, o médico mandou até que minha mãe não se apegasse tanto, pois eu era enfermiço demais. Acho que até mesmo ela, a Seleção Natural, se descuidou e eu cheguei aqui, mas por descuido da morte do que por vontade da vida.

Ruller adora andar só vivendo no meio da mata e das estradas as suas aventuras imaginárias, como eu um dia fui e fiz. Não sei se este sujeito era Borderline, mas eu mesmo sendo um, gostava da solidão, da sozinhês que o campo me permitia ter, acho que no meio do nada, do vazio, eu conseguia exercitar minha mente com mais facilidade, sem os barulhos e sem as interrupções indesejadas,. Lembro com nostalgia as tardes em que me embrenhava nas matas com um pequinês pulguento e encrenqueiro, acho que ele era esquizofrênico, chamado Dick, para desbravar lugares inabitados e conquistar penínsulas e países com a força de meus exércitos imaginários. Vezes sem conta fui capitão de navios que desbravavam os 07 mares, aventuras que fariam A viagem do Peregrino da Alvorada de Lewis parecer contos para crianças de 05 anos.

Ruller sente que não se ajusta fácil às formas que o mundo lhe impõe, como eu até hoje me sinto. O combinado era dizer que ele parecia comigo na minha infância, mas pelo que vejo este sujeito sou eu mesmo, eu sou ele adulto, ninguém me disse isso antes! Este sentimento de inadequação me acompanha a vida toda, vou repetir, a vida toda. Em lugar algum eu me senti em casa, me senti aceito, adequado e amoldado. Ruller cresceu, conseguiu chegar à idade adulta, só que o nome dele agora é Jocelenilton e mora no Brasil, esta é um revelação tardia, mas necessária de ser feita, só que Flannery nunca soube disso, que pena! Ela morreu quatro anos antes que eu nascesse.

Ruller ganha perus, sem esperar, e os perde com a mesma facilidade, como até hoje acontece comigo. A verdade é que ganhei menos do que perdi e os que ganhei, eu mesmo os joguei fora, por não saber aproveitar, ou porque achava que um dia iriam tirar de mim, então eu mesmo me desfiz, para que a desilusão não fosse maior. Aos 06 anos eu consegui ganhar um presente de Natal na Igreja, e no caminho para casa, eu consegui, olha que fiz isso sozinho, consegui deixá-lo cair de minhas mãos dentro de um riacho, de um canal, e nunca mais consegui recuperá-lo, a correnteza o levou embora, como eu disse em outro texto, foi meu último Natal.

Para Ruller as coisas nunca foram fáceis, para mim também não. Nada absolutamente nada foi fácil, tudo, absolutamente tudo, foi e é difícil, até mesmo sobreviver. Nunca encontrei nada, nunca ganhei nada, nunca sequer fui sorteado ou ganhei em Rifa de Igreja, pois é, nem Cesta de Páscoa eu ganho em rifa. Todas as poucas coisas que consegui na vida, foi à base de suor e muitas lágrimas, isso inclui até mesmo o simples ato de pegar um ônibus, não sei o que essas geringonças têm contra mim, pois sempre, absolutamente sempre, eu desço na parada errada, ou mesmo espero por ônibus que nunca passam por aquele trajeto. Se algo pode dar errado com alguém, pode ter certeza, esse alguém sou eu!

Apesar de tudo isso, me enganava fingindo ser normal, até que um dia meu mundo caiu. Sei exatamente o dia em que meu mundo de cristal quebrou, que nem era tão de cristal assim, a mesma sensação que Ruller sentiu no dia em que ganhou e perdeu muito mais que um simples peru, foi há exatos 18 anos, 31 de agosto de 1993, dia em nasceu meu primeiro filho Ulrich Zwínglio, poderia também dizer que neste mesmo dia morreu o meu primeiro filho, as duas datas são importantes para mim, pois acho que perdi, nesse dia, um sonho, nesse dia perdi a fé. Nesse dia senti “Uma Coisa Medonha” me perseguindo, até hoje eu a percebo, tem horas que é tão tangível que penso ser capaz de tocá-la. Sinto seu bafejar quente em minha nuca e ouço amedrontado sua respiração fétida e barulhenta.

Quando o desespero é maior do que o medo ou a angústia, se é que pode haver algo maior que isso, procuro consolo nas paternais palavras de Brennan Manning comentando o conto:

“Muita gente pensa o mesmo que Ruller sobre Deus. O Deus em quem cremos é Alguém que nos dá um peru com uma mão e o tira com a outra. Quando ele dá, vemos nisso um sinal de que Deus se importa conosco. Quando conseguimos o que queremos, a sensação é de que estamos perto de Deus, o que também faz com que nos sintamos generosos. Assim, todo mundo fica satisfeito, certo? Mas a história é diferente quando perdemos o peru — um claro sinal de rejeição. Procuramos entender o motivo. Onde foi que eu errei? Por que Deus está bravo comigo? Deus está tentando me ensinar alguma coisa? A maioria de nós jamais fala algo assim em voz alta nem se arrisca a pensar muito nisso, mas quando perdemos o peru, passamos a pensar que Deus é imprevisível, mal-humorado, mesquinho e injusto. São pensamentos que nos afastam dele e nos fazem mergulhar em nós mesmos. Deus se transforma num contador que contabiliza cada passo em falso, cada erro, cada burrada, e debita tudo contra nós. Deus é alguém rancoroso que nos arranca das mãos família, amigos, saúde, dinheiro, satisfação, sucesso e alegria.”

Meu nome é Ruller, sou apenas um esquisito menino que ainda me embrenho nas matas acreditando que vou caçar alguma ave, nem que seja outro peru, e mudar e moldar a minha história ou estória. O peru pode nunca mais ser dado, mas eu vou voltar àquela clareira, quem sabe o que pode acontecer, quem sabe?

A "Coisa"


Ela está sempre à espreita,
Maligna e invisível presença,
Qual serpente marinha à espera da presa,
À espera de incautos navegantes.
Age sempre covardemente, sempre,
Não há honra em suas batalhas,
Suas vitórias não merecem gládios.
A escuridão é seu manto, as sombras suas vestes,
Seus olhos infernais não brilham no escuro,
Não se pode prever a sua presença,
Não se percebe a sua aproximação.
Qual fera indômita, aguarda em seu covil,
Uma serpente que dorme aos pés da presa.
Esperando o menor sinal de fragilidade!
Ao menor sinal de fraqueza, ela ataca,
Sem piedade, sem dó,
Tal como os sanguinários bárbaros,
Não faz prisioneiros,
Não tem celas em seus palácios,
De sombrios cadafalsos e insaciáveis sepulcros,
Seus palácios são rodeados e ornamentados.
Seus palácios mais parecem a Caverna de Laracna.
Nunca dorme, sempre vigilante.
Nunca descansa, nunca desiste.
Quando lhe permitem, assoma,
E quando assoma, domina tudo.
Impedir que assome é tarefa hercúlea,
È insaciável em seu desejo de dominar
É uma ditadora inclemente, não conhece misericórdia,
Tem inveja da felicidade alheia, por isso é tirana,
Seu reinado não conhece clemência, é déspota.
Governa com mão de ferro,
Sua sutileza é de aço,
Seu abraço é de titânio.
Seu beijo é tal qual uma lareira,
Não aquece, mas queima.
Quando aparece, amedronta,
Quando resolve visitar, destrói tudo,
Quando passa, o cenário é caótico,
Os sinais de sua passagem são dantescos,
Fariam Ovídio ter medo.
Poriam Caribdes e Cila em fuga,
Tal seu aspecto desolador.
Por que invocar tão medonha criatura?
Por que convidar tão voraz monstro?
Por que abrigar alguém que se alimenta do medo?
Por que hospedar alguém que se embebeda com a angústia?
De quem mais ter medo,
Da “Coisa” que escraviza, destrói e mata,
Ou daquela que a desperta de seu sono infernal?

[Este é um apenas um grito de um náufrago que afunda em suas emoções, pedindo que não despertem a “Coisa” que habita em seu interior, não despertem o que há de pior em sua alma.]

Quem sou eu?

Quem sou eu?
Freqüentemente me dizem
Que saí do confinamento da minha cela
De modo calmo, alegre, firme,
Como um cavalheiro da sua mansão. 

Quem sou eu?
Freqüentemente me dizem
Que falava com meus guardas
De modo livre, amistoso e claro
Como se fossem meus para comandar.  

Quem sou eu? Dizem-me também
Que suportei os dias de infortúnio
De modo calmo, sorridente e alegre
Como quem está acostumado a vencer. 

Sou, então, realmente tudo aquilo que os outros me dizem?  
Ou sou apenas aquilo que sei acerca de mim mesmo?
Inquieto e saudoso e doente, como ave na gaiola,
Lutando pelo fôlego, como se houvesse mãos apertando minha garganta,
Ansiando por cores, por flores, pelas vozes das aves,  
Sedento por palavras de bondade, de boa vizinhança
Conturbado na expectativa de grandes eventos,
Tremendo, impotente, por amigos a uma distância infinita,
Cansado e vazio ao orar, ao pensar, ao agir,
Desmaiando, e pronto para dizer adeus a tudo isto? 

Quem sou eu?
Este, ou o outro?
Sou uma pessoa hoje, e outra amanhã?
Sou as duas ao mesmo tempo?
Um hipócrita diante dos outros, 
 
E diante de mim, um fraco, desprezivelmente angustiado?
Ou há alguma coisa ainda em mim como exército derrotado,
Fugindo em debanda da vitória já alcançada? 

Quem sou eu?
Estas minhas perguntas zombam de mim na solidão.
Seja quem for eu, Tu sabes, ó Deus, que sou Teu!

[Fonte: BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão: Cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003.]