Para quem vive a cristandade do nosso lado do planeta a salvação é entendida, fundamentalmente, em termos jurídicos. A partir de uma leitura pouco imparcial das cartas do Apóstolo, nossa tradição acabou concluindo que a salvação é uma mudança de status legal, um indulto emitido pelo juiz em favor de quem concorda em dar crédito ao caráter remissório do sacrifício do advogado.
Não é assim na metade oriental da cristandade, a igreja chamada de Ortodoxa e que gerou gente notável como Dostoiévski e Tolstói. Nossa igreja e a ortodoxa são gêmeas separadas não muito depois do nascimento, mas que desde a cisão não conseguem entender direito as idéias e o comportamento uma da outra. Por exemplo, ambas concordam que o homem carece de uma salvação que só Jesus pode dar — mas discordam sobre de que Jesus salva o homem, e para quê.
Para os cristãos ortodoxos, a essência da salvação não está na justificação, mas na deificação (grego theosis) — transformação de seres humanos em deuses. Nos documentos da igreja primitiva a deificação não merece menos destaque do que a justificação, mas a theosis como conceito teológico não comparece no pensamento cristão ocidental há mais de mil anos.
O evangelho diz que a todos que acolheram sua encarnação Deus “deu o poder de se tornarem filhos de Deus”. Tradicionalmente esse foi entendido como sendo o poder de nos tornarmos participantes da natureza divina. Essa é a lógica da deificação, resumida numa única frase de Irineu: “Se o Verbo tornou-se o homem foi para que homens se tornassem deuses”.
Os ortodoxos e seus antecessores deixam claro, no entanto, que o milagre da deificação não está em tornar o cristão um deus independente e digno, ele mesmo, de adoração. Agostinho raciocina que, “se somos feitos filhos de Deus, somos da mesma forma feitos deuses”, mas esclarece: “Deus quer fazer de você um deus; não por natureza ou nascimento, mas por graça e por adoção”. Atanásio também opina que “somos como Deus por imitação, não por natureza”.
A idéia está em imitar Deus em sua revelação máxima, a pessoa de Jesus. Aqui está o mistério: a deificação diz respeito muito mais a aprendermos a ser gente do que a ser deuses.
“Deus e a humanidade tornaram-se uma única raça.”
João Crisóstomo (349-407), pregador de Antioquia que ajudou a cristalizar o que viria a ser o pensamento dos cristãos ortodoxos sobre a deificação, ensinava que o mistério da redenção está indelevelmente associado ao mistério da encarnação. Isto é, a salvação diz pelo menos tanto respeito à vida de Cristo quanto à sua morte. A encarnação, para Crisóstomo, não só revelara Deus para a humanidade: revelara também a verdadeira humanidade para a humanidade. Imitar a legitimidade da vida terrena de Jesus é infundir-se do sopro vital de Deus, o regenerador “espírito de Cristo” — em letras tanto maiúsculas quanto minúsculas. O fim da deificação (e, portanto, da salvação) é restaurar no homem a imagem da divindade impressa nele por Deus na criação, imagem que Jesus estampou integralmente. Deus quer que sejamos deuses para que aprendamos finalmente a ser homens.
No pensamento ortodoxo a salvação instila uma mudança real na natureza humana; não se trata — como normalmente cremos aqui no Ocidente — de uma mudança relativa e temporária, a ser melhor implantada em momento oportuno. Para nós, o homem é salvo da condenação; para os cristãos ortodoxos, é salvo da mediocridade. Para nós o homem é salvo para viver com Deus um dia; para os ortodoxos, é salvo para viver como Deus hoje.
Nas palavras de Crisóstomo:
“Visto que Cristo ascendeu ao céu sua carne tornou-se, como as primícias, o princípio dos que dormem. Ele abençoou a humanidade inteira através dessa única carne e desse único princípio. Antes, por causa do pecado, nada era mais abjeto do que o homem, enquanto agora nada é mais honrado do que ele. Através do Cristo ressurreto e ascendido o homem vence a corrupção e adquire incorrupção. Vence a morte, porque a morte foi inteiramente abolida e não aparece em lugar algum, enquanto o homem adquire imortalidade e é deificado. Deus e humanidade tornaram-se de fato uma única raça.”
A obsessão forense da igreja ocidental fez com que nos concentrássemos quase que exclusivamente nos méritos da morte de Cristo. O terrível preço dessa ênfase foi que perdemos de vista os méritos de sua vida e sua encarnação. Por deixarmos de considerar o caráter do Jesus dos evangelhos, a teologia ocidental tornou-se eminentemente racionalista, intelectual e escolástica; perdeu contato com as necessidades da vida real e a espiritualidade do homem comum. Perdeu o dom de lavar pés e ensinar lavradores. Ocupou-se em entender a revelação racionalmente e explicá-la com argumentos lógicos a uma audiência sofisticada. Passamos a crer que a salvação é questão de uma aceitação intelectual da verdade, sem relação alguma com a vida real de Deus ou com a nossa.
Perdemos no processo o dom que Jesus veio nos conceder, o de sermos gente: agentes humanizadores num mundo desumano e deuses suplentes num mundo sem Deus. Como sempre acontece, o que nos falta é voltar aos princípios mais fundamentais da humanidade de Jesus — o Deus encarnado que escolheu chamar a si mesmo de Filho do Homem.
Fonte: Paulo Brabo - A Bacia das Almas
Publicado originalmente na edição online da Revista Ultimato.
Publicado originalmente na edição online da Revista Ultimato.
Publicação autorizada pelo autor.
1 comentários:
Artigo muito bem escrito. É seu ou do Paulo Brabo? Também gostaria de agradecer por você me botar no meio desse "boi de fogo". Vamos lá. O Leonardo Boff vinha tentando, algum tempo atrás, fazer uma síntese dessas duas teorias. Ele reafirmava que "Deus se fez homem para que este se fizesse deus". Ao mesmo tempo, ele olhava a vida de Jesus e dizia: "Humano e tão humano desse jeito, só podia ser Deus". Até aí se podia compreender melhor, e de modo cristão, a teologia de Boff. Acontece que atualmente ele cedeu muito à mística pagã oriental e descambou para um pan(en)teísmo brabo, no qual Criador e criatura se misturam e não acho que ele consiga distinguir um do outro... Mas a pergunta continua: De que e para que Deus salvou o ser humano? As respostas mais clássicas são: "salvou da morte para a a vida", "das trevas para sua maravilhosa luz", "do pecado para uma vida em santidade" etc. Tudo isso é bíblico e verdadeiro. Mas parece que ainda não satisfaz algumas mentes mais curiosas. Eu, a exemplo de Santo Anselmo, acho que é impossível falar do sacrifício de Cristo sem falar de Sua Encarnação. Em "Porque Deus se fez homem?", o Arcebispo de Cantuária diz que "era impossível salvar o mundo de outro modo, e Ele queria a todo custo morrer, antes que deixar o mundo perecer". Sendo assim, qualquer doutrina a respeito de Cristo terá que partir da Encarnação (Jo 1.14). Quanto à crítica feita ao Calvinismo, que é quem mais se apropriou da teoria judicial da expiação de Santo Agostinho, também vejo que a doutrina é muito mais mentalizada que introjetada ou vivida. Mas entendo que "a santificação sem a qual ninguém verá ao Senhor" (Hb 12.14), é muito mais ação de Deus e Sua santa Palavra (Jo 17.17) que de qualquer esforço humano, embora devamos buscar uma vida santa, pois "quem diz estar nEle também deve andar como Ele andou" (1Jo 2.6). Esse mesmo processo que chamamos de "santificação", ao que me parece, é chamado "deificação" pelos nossos irmãos ortodoxos. Quanto à vida com Deus ser presente ou futura, eu creio que ela começa agora (como a escatologia realizada do Quarto Evangelho) e se aprofunda por toda a eternidade, quando" nós o veremos assim como Ele é", e mais: "nós seremos semelhantes a Ele" (1 Jo 3.2). Esta é minha humilde e rápida contribuição à pergunta do meu amigo Jocelenilton Gomes. Grande abraço.
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