Gabo,
para uns, Gabito, para outros, Gabriel García Márquez para o resto
dos mortais, como eu, que não têm, ou não tiveram, o privilégio
de conviver com este “monstro” da literatura, assim é conhecido
este jornalista colombiano e um dos maiores escritores, não só da
contemporaneidade, mas de todos os tempos. Nascido em 6 de março
(mesmo dia em que meu pai, José Trezena, nasceu) de 1927.
Tal como eu, melhor dizendo (pecado de superbia!): eu tal como ele, fui marcado na adolescência por livros, e posso citar um em especial que “nos” influenciou bastante: A Metamorfose, de Franz Kafka. Gabo teve um verdadeiro insight ao ler a primeira frase do livro, "Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso", dizem seus biógrafos que ele pensou "então eu posso fazer isso com as personagens? Criar situações impossíveis?". E estava dada a largada de uma das maiores carreiras literárias de todos os tempos. Bom, minhas comparações com ele ficam por aqui, eu nunca tive um insight como este, o que eu fiquei pensando depois que li esse livro foi se era sobre um humano que virou um inseto ou um inseto que um dia teve um insight que era um humano. Até hoje eu não sei qual a resposta!
Podemos
citar dentre sua vasta obra: Relato
de um náufrago, Ninguém escreve ao coronel (amei
o livro, adorei o filme e viajo até hoje nas metáforas expostas
nele),
Os
funerais da mamãe grande, Cem anos de solidão
(para mim um dos melhores livros que pude ler, nunca mais li nada
igual), A
incrível e triste história de Cândida Eréndira e sua avó
desalmada, Crônica de uma morte anunciada, (que
acabou se transformando num chavão, bastante utilizado pela
imprensa), O
Amor nos tempos do cólera
(e o famoso romance impossível de Florentino Ariza e Fermina Daza,
li o filme e assisti ao livro, foi exatamente assim, não tente me corrigir!), Doze
contos peregrinos,
Memória
de minhas putas tristes (que
tem um traço autobiográfico muito forte)
e muitos
outros.
Um dos contos de A incrível e triste história de Cândida Eréndira e sua avó desalmada é o tão comentado O afogado mais bonito do mundo, (Vide aqui a Releitura que Rubem Alves fez do conto), eu o li pela primeira vez por volta de 1992, quando ainda era aluno do terceiro ano no Seminário Presbiteriano do Norte, foi durante um exercício de análise literária proposto pelo Ricardo Quadro Gouveia, professor de Literatura, um professor inadequado para aquela instituição: pensava demais! Posteriormente eu tive contato com a releitura de Alves e confesso que a elaboração que fiz seguiu muitas linhas, visto que minha mente, que, à época, era alimentada por Boff, Barth, Gutierrez, Tillich, Bultmann, etc, já tinha saído da caixinha de fósforo que era a fôrma imposta pelas escolas de teologia de orientação fundamentalista naqueles anos pós-ditadura. [por algum tempo mantive um site: www.presbiterianismo.com.br no qual colocava textos de todas as denominações presbiterianas brasileiras, um ex-professor meu, com fama de ortodoxo e conservador, não sem merecimento, me enviou um e-mail dizendo que os seus textos não poderiam coexistir no mesmo site que os textos de Rubem Alves e Leonardo Boff, pois estes não eram reformados, fiz um grande favor ao “reverendo”, naquela mesma tarde de domingo eu deletei todos os arquivos html do servidor com textos dele].
Este
conto, que tem uma conotação teológica muito forte, trata de um
fato corriqueiro, um afogado que aparece na beira da praia, numa vila
de caiçaras caribenhos, porém, sem que fizesse nada, nem dissesse
nada, apenas morresse, ele muda o universo daquelas pessoas, daquela
comunidade e daquela vila para sempre. Conheço a história de um
outro morto que fez o mesmo.
Acho
que o texto é muito metafórico: as crianças
do povoado são as que veem o corpo primeiro, lidam com a morte de
forma lúdica, passam o dia brincando de enterrá-lo e desenterrá-lo;
as mulheres do povoado, que tinham a obrigação de preparar o corpo
para o funeral, conseguem restaurar a beleza daquele corpo e com isso
o surgimento dos mitos sobre a sua existência; o corpo passa a ser
propriedade de uma comunidade e não mais do próprio indivíduo.
Acho que já vi isso em outro lugar.
Todos
os que estavam ali foram influenciados pela não-existência do
Estevão, imaginaram que este era o nome do morto, os homens com mais
reticências, as mulheres sem nenhuma reserva, todos se apaixonaram,
de uma forma ou de outra, por aquele homem, não pelo o que ele foi,
mas sim pelo que eles imaginaram que ele foi. A sua não-existência
propiciou isso, o que quer que imaginassem que ele tenha sido, isso
seria incontestável, nem mesmo ele poderia contradizê-los. Aí
surgiu o Estevão histórico e o Estevão dos mitos contados à beira
das fogueiras.
O fato de que, a partir daquela data, iriam modificar a vila, suas casas e seus móveis para que Estevão não tivesse que se curvar ou que ficasse desconfortável ao entrar por suas portas ou ao sentar em suas cadeiras, indica o quanto de “Sebastianismo” aquela morte os dotou. Eles agora não seriam mais um povoado caiçara perdido em algum lugar distante, eles eram do Povoado de Estevão. Surgiu aí uma identificação entre eles e ele, e isso se tornou cada vez mais forte nas reuniões que tinham, e o messianismo de Estevão se instalou sub-repticiamente.
Este defunto, que como uma teofania, foi parar numa praia no fim do mundo, é idealizado por todos do povoado, cada um sublima suas deficiências e projeta os seus anseios e desejos naquele homem, na sua não-existência, no seu tamanho desproporcional, na sua beleza incomum, na sua voz - naquilo que projetavam que seria sua voz - obviamente, no seu olhar, no seu toque, no seu jeito tímido, etc. cada um procurou colocar nele aquilo que faltava em si, ou nos seus entes mais queridos, em outras palavras, aquele homem tornou-se o sonho mais querido de cada um, deixou de ser um homem qualquer e passou a ser uma imagem, que não poderia ser maculada, passou a ser um mito. E isso lhes trouxe esperança. Seria o "suspiro dos oprimidos" de Rubem Alves?
A partir de seu sepultamento, que os deixou com uma sensação profunda e real de perda e nostalgia, as reuniões e as conversas ao pé da fogueira ficaram mais interessantes, a auto-estima daquele povo ficou mais elevada, afinal de contas eles agora eram do "povoado de Estevão" no lugar que se podia dizer que: "onde o sol brilha tanto que os girassóis não sabem para onde girar". Agora tinham uma identidade.
A reflexão final que faço, que lançará os fundamentalistas e caçadores de hereges em meu encalço, é: se não há uma certa analogia entre Estevão e Jesus? Não estamos nós, após 2.000 anos de história, celebrando a existência de um morto que mudou as nossas vidas, que mudou a nossa história? Não é Jesus aquele que supre as nossas deficiências e os anseios inalcançáveis? Não estamos nós nos reunindo para celebrarmos um morto e divagarmos sobre seu corpo e sua existência, naquilo em que ela toca a nossa própria existência?
Para acalmar os “cães de caça” de heresias, eu diria apenas que Paulo, apóstolo pela vontade de Deus é quem nos ajuda a traçar uma diferença entre estes dois perfis, em 1º Coríntios 15:14, ele diz: “... e se Cristo não ressuscitou, a nossa pregação é vazia e também é vazia a fé que vocês têm...” (Bíblia Sagrada - Edição Pastoral ©Paulus, 1990). O morto que celebramos hoje está mais vivo do que qualquer homem vivo, e isso faz toda a diferença.
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