Não sei dizer se tenho necessidade de Deus. Acho que sim, senão não existiriam estas indagações, estas dúvidas, senão não haveria esta página neste caderno. Já passei pela fase do automatismo, quando Deus se resumia a umas rezas apressadas antes de dormir, ou a uma lembrança mais ardente em véspera de prova difícil. Já passei também pelo ateísmo, embora fosse só de fachada. “Deus está morto”— eu repetia, citando frases de livros que não lera. Mamãe e papai se escandalizavam, eu me achava o máximo da intelectualização. Depois fui vendo que não podia resolver o problema assim da mão para o pé; que eu, Maurício, pouco mais que uma criança, não era ninguém para tentar resolvê-lo. Achei que seria melhor esquecer. Foi o que tentei fazer. O que estou tentando. Mas de vez em quando acontecem essas ameaças de revelações, e as dúvidas voltam.
De qualquer maneira, acho que se não existe Deus — ou qualquer outra força cósmica a que se possa dar esse nome — tudo é um grande caos. Uma grande merda, para ser bem claro. Todas essas filosofagens e angústias, essa procura de uma definição, de um caminho — tudo isso seria tão ridículo sem Deus. E são tudo hipóteses. Ninguém pode saber nada sobre Deus antes de morrer. Ou talvez possa — quem sabe? Os santos os iluminados? Talvez existam mesmo “os escolhidos”.
Mas este é um problema que não vou resolver em três ou quatro páginas de caderno, embora goste de pensar sobre ele. Inútil, portanto forçar o cérebro. E além do mais, fico muito etéreo quando escrevo sobre isso. Subo a tais alturas que depois é quase impossível descer. E eu quero descer para falar sobre algo bem concreto: a minha solidão.
Acho que o fato de ser só é inevitável, independe de fatos externos. Há pessoas que nascem para serem sós a vida inteira. Eu, por exemplo. Acho que mesmo que um dia case e tenha uns dez filhos (coisa que não me atrai nem um pouco, diga-se de passagem), ou mesmo que consiga encontrar a amizade que sonho — e de cuja existência a cada dia mais e mais duvido — acho que mesmo que aconteçam essas coisas, continuarei só. Claro que há a minha própria companhia, este diário, o livro que leio, as drogas que escrevo de vez em quando — mas tudo como que circunscrito a um círculo completamente fechado. Freqüentemente me assusto, pensando que a vida vai acabar sem que eu encontre um grande amor ou uma grande amizade, ou mesmo uma grande vocação que justifique esse isolamento. Mas nada posso fazer, estas coisas acontecem sem que a gente a procure. O melhor a fazer é deixar “lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar”, como disse o poeta. E mesmo assim, talvez eu continue a fazer as refeições sozinho durante toda a vida.
Muitas vezes tentei dizer essas coisas às pessoas. É tão difícil. Se elas são adultas, o que fazem é sorrir meio de lado, como quem diz: “Mas isso faz parte do jogo.” E se são da minha idade, me olham com um olhar onde se reflete o meu próprio desamparo, dizendo palavras que a minha voz também poderia pronunciar. É assim com Marlene. Foi assim com Bruno. Só agora eu sinto que a minhas asas eram maiores que as dele, e que ele se contentava com o ares baixos: eu queria grandes espaço, amplitudes azuis onde meus olhos pudessem se perder e meu corpo pudesse se espojar sem medo nenhum. Queria e quero — ainda. Voar junto com alguém, não sozinho. Mas todos me parecem tão fracos, tão assustados e incapazes de ir muito longe. Talvez eu me engane, e minhas asas sejam bem mais frágeis que meu ímpeto. Mas se forem como imagino, talvez esteja fadado à solidão.
Quando escrevo poesia, é sobre isso que escrevo: o medo da solidão como sina. E vivo a lavrar o campo, a limpar a casa, a colocar as coisas nos seus lugares certos; só que o que eu espero é a Desejada, não a Indesejada. Eu espero a Vida, não a Morte. Não sei se ela virá. E não sei se apenas por estar dentro dela, isso significa que ela esteja em nós, em mim.
Estou me repetindo, dizendo mil vezes a mesma coisa. No fundo, há só uma verdade: me sinto só. Talvez seja essa a causa dos meus males. Ou será o desconhecimento do que sou, como escrevi ontem? O que sei é que a coisas que preocupam podem ser resumidas em poucas palavras: Deus, solidão. E no fundo, o que existe sou eu. Como um grande ponto de interrogação sem resposta.
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