Colônia Correcional: Ilha Grande


Tinham conseguido armar na cama vizinha um difícil mosquiteiro. Na manhã seguinte vi sentado nela um sujeito maduro, atraente, óculos grossos de miopia, a roupa de casimira pelo avesso.

- Bom dia, atirou-me risonho e lento.

Estava com desejo de conversar e logo se apresentou: Mota. Escorregamos depressa numa camaradagem fácil, tive realmente muito prazer em conhecê-lo.

- O senhor tomou parte na Aliança Nacional Libertadora, seu Mota?

- Não senhor – respondeu a criatura amável. Tinha as minhas simpatias. Sou admirador de [Luís Carlos] Prestes.

Vejam só. Porque simpatizava com a Aliança Nacional Libertadora – cadeia, braços cruzados, a roupa vestida pelo avesso, a cabeça baixa e sem cabelos. Pobre de seu Mota. A situação dele era com certeza a do Manuel Leal, meu amigo velho arrancado às Alagoas, metido no cárcere dos sargentos no quartel de Recife, depois na prisão de Manaus e agora ali a carregar tijolos. Mas Leal não tinha o sossego, a conversa amável de seu Mota. Andava irritado, sombrio, num desespero mudo, contido. Um dia essa mudez se quebrou e o infeliz, de volta do trabalho, suado, coberto de pó vermelho, dirigiu-se a mim, ríspido:

- Por que é que eu estou preso? Hem? Diga.

Estranhei, tive pena do homem a desabar em velhice rápida. Coitado. Não me parecia longe o tempo em que os tristes olhos hoje apagados no rosto murcho brilhavam muito vivos, os fartos anéis da cabeleira negra seduziam mulheres. Pobre de Leal. Provavelmente a decadência não era apenas física; o espírito devia estar em declínio também para ele me vir fazer tal pergunta.

- Que é que você quer que eu diga? Sei lá! Nem sei porque estou preso.

O meu antigo camarada engasgou-se, esteve um minuto a examinar-me com espanto e censura. Tomou fôlego e, de supetão:

- Você? Ora essa! Está preso porque é comunista. Sempre foi.

Declarou isso aos berros, sem ligar importância aos guardas e à polícia.

- Desde menino. Sempre foi. Ainda usava calças curtas e já lia essas coisas no balcão de seu pai. Mas eu? Que foi que eu fiz para estar aqui? Hem? Explique.

Cheio de piedade, não conseguia eximir-me ao desejo de rir ouvindo esse despropósito. Leal gritava a denúncia, provavelmente ignorando que ela me poderia ser funesta. Não repliquei, temendo encolerizá-lo ainda mais. Coitado. Não percebia a exígua significação das brochuras que li na infância; continham veneno, supunha, estava nelas a causa da minha desgraça. Tinham sido justos comigo. Pois não passara a vida a procurar sarna para me coçar? Com ele havia injustiça. Por quê? Responsabilizava-me:

- Diga. Por que me mandaram para aqui? Diga ao menos que é comunismo. Não sei. Nunca me meti com vocês, nunca li nada disso. Explique.

A aflição tornava egoísta uma pessoa amorável. Desequilíbrio, certamente. Vinham-me à lembrança o riso aberto de Leal, as anedotas de caixeiro viajante sem graça, narradas muitos anos atrás, quando ele se hospedava em nossa casa no interior. Que horrível decadência! Via-me obrigado a fazer a comparação, e isso me dava imenso desgosto. Não me ocorreu uma palavra generosa, capaz de minorar aquela angústia. Afastei-me em silêncio. Esquisito afligir-se um prisioneiro de tal modo, não achar sossego, alhear-se do meio, o pensamento fixo no exterior, em casos remotos. Esses viventes arredios ficam desagradáveis. Sentimos não poder auxiliá-los, distraí-los, receamos contagiar-nos, finar naqueles tormentos. Buscamos a companhia de sujeitos expansivos, esboçam-se camaradagens num instante desfeitas. As histórias de Gaúcho afugentavam-me o sono, seria agradável escutá-lo muitas horas. Infelizmente quebravam-se: vinha o momento de recolher, éramos forçados a calar-nos e o resto da narrativa se adiava para a noite seguinte.

- Imagine vossa mercê. Peguei um dia uma roupa nova bacana, azul marinho. Assentava no meu corpo e não foi para a muamba. Vesti-me nela e caí na rua. Pois veja que azar, na Lapa um sujeito do meu tope começou a espiar demais para mim e não deu tempo de pirar. Chegou-se e atacou: “- Moço, me desculpa. Onde foi que o senhor arranjou esse terno?” “- Pergunta muito bem, respondi eu. Comprei hoje por cem mil reis a um adelo da rua da Constituição, número tal.” “- Pois moço, juro que esse terno é meu. Foi roubado ontem.” Aí eu me ofendi e propus: “- O senhor quer ir comigo falar com o adelo, agora mesmo? É um negociante conhecido.” O tipo afrouxou: “- Não, não, posso estar enganado. Mas ia garantir que não estou. É o feitio, é a cor, é o tamanho.” Foi-se embora. E eu voei para casa. Um susto medonho, não sei como tive tanta calma. Tirei a roupa e disse à mulher: “Leva este diabo ao intrujão, dá sumiço a isto.” A gente não deve usar as coisas que rouba.

A conclusão vinha quase em forma de conselho: o ótimo ladrão parecia querer livrar-me de tais vexames. Também me agradava a figura tranquila de seu Mota. Apesar de ser vítima de uma iniquidade, pois não se envolvera em política, mantinha na prisão melhor humor. “- Bom dia”. Estava ali junto, emoldurado pelo mosquiteiro entreaberto, os óculos a faiscar. A voz nunca se alterava, e a afável saudação nos transmitia serenidade. Realmente só vi seu Mota zangar-se uma vez. Fazia uma semana que nos conhecíamos, e ele me narrava os seus começos. Fora secretário da prefeitura em Corumbá, ou Cuiabá, não me lembro. De fato quem se responsabilizava pela administração era ele, que o prefeito, coronel e analfabeto, não entendia de verbas.

- Esse matuto viajou para o Rio e lá ficou três meses. Dirigi o pessoal na ausência do homem e fiz boa arrecadação. Quando ele chegou, havia em caixa trinta contos, naquele tempo uma fortuna. Arrumei o balancete e dei ao prefeito a chave do cofre. Não faltou um tostão.

O meu vizinho interrompeu-se, um minuto se conservou absorto, o olhar distante, mergulhado nas suas recordações. Súbito inquiriu:

- O senhor acredita? Acha que eu entreguei esse dinheiro?

- Sem dúvida, seu Mota. Ora essa!

O ex-secretário da prefeitura de Corumbá teve um longo suspiro:

- Entreguei. Foi uma doidice. Com trinta contos nas mãos, e passei a outro esse dinheiro todo. É o remorso que me persegue na vida.

Seu Mota concluiu, exaltando-se:

- Eu era muito novo. E muito burro.

Graciliano Ramos
[Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia/142275-1]

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