Alguns posicionamentos têm sido expressos por lideranças evangélicas nos últimos anos nos quais se declara o desconforto frente a face visível, ou o perfil dominante, do “movimento evangélico” no Brasil, representado pela bancada parlamentar em nível federal e por algumas estrelas midiáticas pentecostais. Anuncia-se a desfiliação ao “movimento”.
A primeira coisa que é preciso dizer é que é fato inconteste que a maioria substancial dos cristãos não católico-romanos brasileiros é pentecostal. Esta maioria pentecostal representa, do ponto de vista demográfico — origem social, étnica, condição de gênero, posição econômica, nível de escolarização etc. — a maioria do povo brasileiro. É uma minoria fractal! Nela está contida a estrutura desta sociedade profundamente desigual, desproporcionalmente feita de pessoas pobres e negras, com indicativos muito recentes de mobilidade socioeconômica e educacional ascendente e sem tradição de vida associativa e socialização política. Do ponto de vista religioso, é uma comunidade diferenciada por seu ativismo e uso público de sua linguagem própria e uma crescente capacidade de influência cultural, por sua visionária abertura à utilização da mídia numa sociedade porosa e modernamente audiovisual. Mas não é uma comunidade monolítica e em todos os aspectos mencionados e muitos outros, a diversidade impera. A começar por sua fortíssima e incontrolável capacidade de se dividir, conflitivamente, produzindo novas igrejas, lideranças e propostas as mais “criativas”, algumas ao ponto da aberração.
Em segundo lugar, é preciso dizer que a construção da visibilidade pública desta minoria emergente se fez a partir de uma extrema concentração do poder nas mãos das lideranças eclesiásticas, particularmente dos pastores e bispos (esta sendo uma inovação introduzida pelos neopentecostais) e de uma clara disputa entre pentecostais históricos e neopentecostais, decididamente vencida pelos últimos. Do poder clerical, vem a patente debilidade da representação política construída em termos de participação do povo pentecostal, dos leigos e leigas. Vem o dirigismo autoritário, quase ao modo do velho “centralismo democrático” dos comunistas e vem a determinação em fazer crer que a voz autoautorizada dos pastores é a única voz legítima do povo crente. Dos neopentecostais vêm a estratégia mais bem-sucedida de definição de candidaturas, de negociação de alianças, de ocupação do espectro partidário (combinando partidos “próprios” e presença em outros partidos, quase sempre de centro-direita e direita). Os pentecostais históricos foram tragados para essa estratégia.
O resultado desse processo foi duplo: a identidade evangélica passou a expressar-se em termos marcadamente pentecostais — revertendo a hegemonia dos protestantes históricos, que introduziram o termo “evangélico” como autoidentificação — e a presença pública assumiu o viés clerical-neopentecostal. Resultado: entre os anos de 1990 e 2000, ser evangélico passou a ser publicamente identificado com a pauta desse ator pentecostal. O termo “evangélico” foi sequestrado para uma agenda particular, que, para usarmos uma das expressões mais icônicas de nossa malaise democrática, “não representa” o conjunto dos cristãos não católico-romanos no Brasil.
É verdade que os pentecostais são a maioria da minoria evangélica. É verdade que grande parte do discurso moral dos pastores(as) e bispos parlamentares corresponde à posição de grande parte dos pentecostais brasileiros. Mas, enfaticamente, não é verdade que o discurso público dos pentecostais representa o conjunto dos evangélicos ou expressa uma voz única e coesa de todos os próprios pentecostais. Nem o comportamento. Pois embora haja manifestações claras e condenáveis de intolerância “nas bases”, a esmagadora maioria dos pentecostais é cordata, respeitosa e honesta, ao ponto mesmo de passivamente não reagir à manipulação e à patente corrupção de muitos dos líderes eleitos, bem como à obscena riqueza de todas as figuras carimbadas que lideram as principais denominações pentecostais, quando comparadas ao conjunto dos fieis.
Neste quadro, eu acho que é mais do que hora de fincar marcos e demarcar terrenos. Reconquistar a pluralidade do termo “evangélico”, separando-o da voz política dos parlamentares e midiáticos pentecostais; forçando o realinhamento do termo com duas marcas inegociáveis do protestantismo histórico — a ênfase na primazia dos leigos na ação pública (cultural, social, política, econômica) e a separação entre igreja e estado —; e reafirmando o inconformismo contracultural e profético em defesa da dignidade humana de todas as pessoas, independentemente de sua fé religiosa (ou falta dela).
Essa reconquista não virá por palavras de ordem. Não virá por mera denúncia. E proponho mesmo que, por enquanto, é melhor não fazer muito alarde pelo uso do termo. É preciso antes desconstruir a associação “natural” entre evangélico e o discurso clerical-neopentecostal. Só faz sentido dizer-se evangélico hoje para disputar um termo sequestrado por um bando de fundamentalistas ou obtusos que se creem donos do mesmo. Para isso, ainda encontro boa companhia na identidade de “protestante”. Mas não deixo queimar-me nem a ponta dos dedos por isso. Não é uma questão de palavras, apenas. É de história, de identidade e de prática. Ser protestante é ser ecumênico, é afirmar a fé histórica do cristianismo, é não ter medo do diálogo interreligioso, é, nesta conjuntura, sobretudo, relativizar e denunciar profeticamente a injustiça, o autoritarismo e a intolerância religiosa promovida a partir do estado (ou seja, na forma da lei). É questionar a lei, toda lei, qualquer lei, quando ela substitui a forma e o procedimento pelo conteúdo substantivo da justiça.
Por mais que tudo isso, e muito mais, seja objeto de interpretação (que nunca deve ser confundida com um ato puramente intelectual, cerebral, cognitivo, mas parte de um exercício humano, social, histórico de construção e desconstrução de mundos, de formas de estar-junto), ser protestante é algo percebido genialmente por Paul Tillich, na teologia (em seu A Era Protestante), e por vários filósofos contemporâneos, da cepa de um Claude Lefort (ao falar sobre a democracia moderna como dissolução dos marcos da certeza e desincorporação do poder) e de um Jacques Derrida (ao falar sobre o caráter contingente e de sentido predominante sempre correspondente a “atos de religião”, de crença e de ritualidade).
Ser protestante é ser evangélico. É ser pentecostal, em sentido que nada tem a ver com o moralismo rasteiro e o reacionarismo político da liderança pentecostal parlamentar e midiática. Deixemos de ser (já não o sou há tempos) parte do “movimento evangélico”, mas não abramos mão do termo “evangélico” (os luteranos o sabem muito bem!). Como bons protestantes.
[Joanildo Burity é doutor em Ciência Política pela University of Essex, Inglaterra, pesquisador titular da Fundação Joaquim Nabuco e professor colaborador dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da UFPE. É membro da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil]
Fonte: http://novosdialogos.com/sejamos-protestantes-reconquistemos-o-termo-evangelico/
Fonte: http://novosdialogos.com/sejamos-protestantes-reconquistemos-o-termo-evangelico/
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