Três elementos ou três princípios fundamentais constituem, na
história, as condições essenciais de todo desenvolvimento humano,
coletivo ou individual: 1º) a animalidade humana; 2º) o pensamento;
3º) a revolta.
À primeira corresponde propriamente a economia
social e privada; à segunda, a ciência; à terceira, a liberdade.
Os idealistas de todas as escolas, aristocratas e burgueses,
teólogos e metafísicos, políticos e moralistas, religiosos, filósofos
ou poetas, sem esquecer os economistas liberais, adoradores
desmedidos do ideal, como se sabe, ofendem-se muito quando se
lhes diz que o homem, com sua inteligência magnífica, suas idéias
sublimes e suas aspirações infinitas, nada mais é, como tudo o que
existe neste inundo, que um produto da vil matéria.
Poderíamos responder-lhes que a matéria da qual falam os
materialistas, matéria espontaneamente, eternamente móvel, ativa,
produtiva, a matéria química ou organicamente determinada e
manifesta pelas propriedades ou pelas forças mecânicas, físicas,
animais e inteligentes, que lhe são forçosamente inerentes, esta
matéria nada tem de comum com a vil matéria dos idealistas. Esta
última, produto de falsa abstração, é efetivamente uma coisa
estúpida, inanimada, imóvel, incapaz de dar vida ao mínimo produto,
um caput mortuum, uma infame imaginação oposta a esta bela
imaginação que eles chamam Deus; em relação ao Ser supremo, a
matéria, a matéria deles, despojada por eles mesmos de tudo o que
constitui sua natureza real, representa necessariamente o supremo
nada. Eles retiraram da matéria a inteligência, a vida, todas as
qualidades determinantes, as relações ativas ou as forças, o próprio
movimento, sem o qual a matéria sequer teria peso, nada lhe
deixando da impenetrabilidade e da imobilidade absoluta no espaço;
eles atribuíram todas estas forças, propriedades ou manifestações
naturais ao ser imaginário criado por sua fantasia abstrativa; em
seguida, invertendo os papéis, denominaram este produto de sua
imaginação, este fantasma, este Deus que é o nada, "Ser supremo";
e, por conseqüência necessária, declararam que o Ser real, a
matéria, o mundo, era o nada. Depois disso eles vêm nos dizer
gravemente que esta matéria é incapaz de produzir qualquer coisa
que seja, até mesmo colocar-se em movimento por si mesma, e que
por conseqüência deve ter sido criada por seu Deus.
Quem tem razão, os idealistas ou os materialistas? Uma vez feita a
pergunta, a hesitação se torna impossível. Sem dúvida, os idealistas
estão errados e os materialistas certos. Sim, os fatos têm primazia
sobre as idéias; sim, o ideal, como disse Proudhon, nada mais é do
que uma flor, cujas condições materiais de existência constituem a
raiz. Sim, toda a história intelectual e moral, política e social da
humanidade é um reflexo de sua história econômica.
Todos os ramos da ciência moderna, da verdadeira e
desinteressada ciência, concorrem para proclamar esta grande
verdade, fundamental e decisiva: o mundo social, o mundo
propriamente humano, a humanidade numa palavra, outra coisa não
é senão o desenvolvimento supremo, a manifestação mais elevada
da animalidade pelo menos para nós e em relação ao nosso planeta.
Mas como todo desenvolvimento implica necessariamente uma
negação, a da base ou do ponto de partida, a humanidade é, ao
mesmo tempo e essencialmente, a negação refletida e progressiva
da animalidade nos homens; e é precisamente esta negação,
racional por ser natural, simultaneamente histórica e lógica, fatal
como o são os desenvolvimentos e as realizações de todas as leis
naturais no mundo, é ela que constitui e que cria o ideal, o mundo
das convicções intelectuais e morais, as idéias.
Sim, nossos primeiros ancestrais, nossos Adão e Eva foram, senão
gorilas, pelo menos primos muito próximos dos gorilas, dos
onívoros, dos animais inteligentes e ferozes, dotados, em grau
maior do que o dos animais de todas as outras espécies, de duas
faculdades preciosas: a faculdade de pensar e a necessidade de se
revoltar.
Estas duas faculdades, combinando sua ação progressiva na
história, representam a potência negativa no desenvolvimento
positivo da animalidade humana, e criam consequentemente tudo o
que constitui a humanidade nos homens.
A Bíblia, que é um livro muito interessante, e aqui e ali muito
profundo, quando o consideramos como uma das mais antigas
manifestações da sabedoria e da fantasia humanas, exprime esta
verdade, de maneira muito ingênua, em seu mito do pecado original.
Jeová, que, de todos os bons deuses adorados pelos homens, foi
certamente o mais ciumento, o mais vaidoso, o mais feroz, o mais
injusto, o mais sanguinário, o mais despótico e o maior inimigo da dignidade e da liberdade humanas, Jeová acabava de criar Adão e
Eva, não se sabe por qual capricho, talvez para ter novos escravos.
Ele pôs, generosamente, à disposição deles toda a terra, com todos
os seus frutos e todos os seus animais, e impôs um único limite a
este completo gozo: proibiu-os expressamente de tocar os frutos da
árvore de ciência. Ele queria, pois, que o homem, privado de toda
consciência de si mesmo, permanecesse um eterno animal, sempre
de quatro patas diante do Deus "vivo", seu criador e seu senhor.
Mas eis que chega Satã, o eterno revoltado, o primeiro livre pensador
e o emancipador dos mundos! Ele faz o homem se
envergonhar de sua ignorância e de sua obediência bestiais; ele o
emancipa, imprime em sua fronte a marca da liberdade e da
humanidade, levando-o a desobedecer e a provar do fruto da
ciência...
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