O culto da incultura


Bárbaros intramuros… É mister apontá-los, e apontá-los até dentro de nós, porque em nossos momentos de fraqueza e desfalecimento somos bárbaros também. (Mário Ferreira dos Santos – A invasão vertical dos bárbaros).

Para além dos problemas sociais, econômicos e políticos que assolam a sociedade brasileira, talvez o mais grave seja a extrema e terrificante degradação cultural que impera nos mais diversos âmbitos da vida coletiva. É ela que está na raiz de nossas patologias e de nossa desordem social e política. Presenciamos o total aniquilamento da alta cultura. Dissemina-se por toda parte uma falsa cultura massificada, superficial, mero entretenimento e diversão que não eleva o espírito humano.

Somos bombardeados diariamente por programas televisivos mórbidos e vulgares, por músicas de péssima qualidade, assim como por revistas e jornais que estimulam, por meio de suas notícias e reportagens, os aspectos mais baixos, e perversos da existência. Além disso, no ambiente dito intelectual pululam as análises sociais e políticas superficiais, rasteiras e por demais ideologizadas. Pseudo-intelectuais, “filodoxos”, perdem-se no vício do abstratismo e do pedantismo, incapazes, assim, de examinar e compreender com clareza e objetividade a realidade de nosso tempo. Prolifera uma subliteratura marcada pela exploração de temáticas insípidas, medíocres, que exprime unicamente as dimensões mais abjetas e vis da personalidade humana. No cinema e nas artes plásticas exalta-se o feio, o bizarro, o disforme e o grotesco.

Há algumas décadas, tínhamos nas ciências humanas e sociais intelectuais de peso como Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda. Na filosofia, Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva, Mário Ferreira dos Santos e Henrique de Lima Vaz. Na literatura Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e tantos outros. Na poesia, Manuel Bandeira, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade. No cinema, Glauber Rocha. Poderia citar aqui muitos outros artistas e pensadores de vulto. O fato é que hoje nossa cultura está esvaziada, empobrecida e doente. Quem são atualmente nossos grandes escritores, intelectuais, poetas, cantores e artistas? Onde encontram-se os romancistas e artistas capazes de exprimir por meio da linguagem poética e ficcional o que há de belo e nobre na vida humana?

A cultura não é um ornamento, um mero adorno estético, a “cereja do bolo”, mas é ela a alma de uma sociedade, a bússola que orienta a vida dos indivíduos e das coletividades. Conforme a lição do filósofo Ortega y Gasset, a cultura é o plano da vida, o guia de caminhos pela selva da existência. É o conjunto de idéias, crenças e valores que salva do naufrágio vital, permitindo o homem viver sem que sua vida seja uma tragédia sem sentido. Uma sociedade ou um indivíduo inculto não vive uma vida plenamente humana, não vive uma vida significativa, apenas sobrevive satisfazendo suas necessidades físicas básicas. É a cultura que dá à vida individual e coletiva um sentido mais elevado, possibilitando que, não obstante nossas limitações, tenhamos acesso ao mundo das idéias, dos valores, das tradições e dos símbolos de conteúdo universal e supra-temporal.

Ora, é a cultura que refina a sensibilidade e a nossa visão do mundo, aperfeiçoa a mente e a imaginação, emancipando o homem do imediatismo. O homem dotado de cultura distancia-se do provincianismo, alça vôos mais altos, transcende os pontos de vista de seu tempo e de sua época. Entra em contato com um complexo de idéias perenes e imorredouras, com as “coisas permanentes” como asseverava o poeta e crítico literário T. S. Eliot. Conhecimentos permanentes que não são elucubração estéril, mas tesouros intelectuais que enriquecem e estruturam a personalidade humana, dando a ela maior amplitude, profundidade e densidade.

Precisamos nos libertar do culto da incultura, da valorização da fealdade, da exaltação do lado sombrio, irracional, mesquinho e sórdido da existência que vem devastando a sociedade brasileira. Caso não realizemos a indispensável e iminente tarefa de soerguimento cultural de nossa nação, condenaremos as próximas gerações à barbárie, a viver uma vida de zumbis, estupidificados e lobotomizados em decorrência de um ambiente social hostil à beleza e à verdade.

Cesar Alberto Ranquetat Júnior, é Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor de Ciências Humanas na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)/Campus Itaqui.

Publicado no site da revista Vila Nova.

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