Confissões de um ex-pastor(VII)

Se eu não estivesse escrevendo esta série de Confissões de um ex-pastor, daria, creio eu, acertadamente o título para este monólogo de: Os leprosos modernos e os fariseus de sempre!

Antes de tudo, se faz necessário um alerta, para que não ocorram mal-entendidos: os termos leproso e fariseu estão sendo usados como metáforas. Não exerço nenhum juízo de valor quando os utilizo.

Consta num dos livros mais esquisitos do Primeiro Testamento, Levíticos, o livro que eu mais encontrei dificuldades para ler da Bíblia, até mesmo mais que Apocalipse, as regras para tratar cerimonialmente, e socialmente, um caso de lepra na família e na comunidade(13:45 e 46), a Lei mosaica era rígida e impiedosa: o leproso deveria morar fora da cidade mantendo uma distância de seis passos de outras pessoas e usar roupas de acompanhantes de enterro, a lepra tornava a pessoa cerimonialmente impura, que era excluída do acampamento hebreu, e por conta disso era considerada também alijada da presença de Deus, já que se considerava a reunião no Templo (Tabernáculo) como a única forma legítima de estar na presença de Deus. A preocupação com esta doença e que justificaria todo este tratamento, reflete em Salmo 91:6, onde o salmista canta: "... nem a peste que se propaga nas trevas...", ou no dizer da NVI: "... nem a peste que se move sorrateiramente nas trevas...", cria-se que a lepra era contagiosa à noite, por isso que deveriam afastar-se, o povo de Deus não poderia ter doenças que deformassem o corpo, qualquer deformidade o afastava do Santuário e da possibilidade de oficiar, eram rigorosos, mas a questão era de sobrevivência, hoje isso é compreendido e aceitável.

A Lei Mosaica caducou, a Graça instalou-se, ou pelo menos tem se esforçado, pois não é bem vinda ainda na igreja moderna. Existem muitos fariseus (não estou usando em sentido pejorativo este termo) e doutores da Lei, gente íntegra, cumpridora da Lei, obediente a todos os mandamentos bíblicos e que não satisfeita com isso ainda acrescenta alguns por conta própria, que não é hipócrita, mas de uma espiritualidade doentia, gente que não consegue ter misericórdia, gente que conhece a Graça apenas como um verbete do dicionário.

O caso que eu vou relatar é uma ilustração disso, não quero que seja tomado como crítica, não quero ser impiedoso, a única razão de usá-lo é como um exemplo, não julgo as ações de ninguém. Anos atrás eu tinha um grande amigo, foi meu professor de Homilética no seminário, gostava tanto dele que pedi para ir para sua igreja, queria ajudá-lo, mas queria aprender com ele, assim tornou-se também meu pastor, quando ele saiu para ser pastor de uma igreja maior eu fiquei, ainda seminarista, dando assistência à igreja, ele me orientava e muito. Quando ainda era pastor da igreja pequena orávamos muito juntos, líamos a Bíblia e outros livros juntos, chorávamos juntos, recomendávamos livros um ao outro. Um dia intermediei a reunião dele com o presidente de um presbitério, a intenção era que a igreja dele que era separatista voltasse ao seio da igreja mãe, o que de fato pouco tempo depois concretizou-se, passando o mesmo posteriormente a exercer cargos de destaque na denominação. Tudo isso durou até o dia em que revelei a minha face pecadora e meu caráter com grandes falhas e inconsistências. Não era mais chamado de "varão" e nem de "abençoado" quando o encontrava, apenas leve contato e distantes e "frouxos" apertos de mão, dizem os mais antigos que um homem é conhecido pela força ou a forma que aperta a mão de outro, nada mais de abraços, nada mais de tapinhas nas costas.

Eu estava em um Shopping de Recife há meses atrás, numa tarde de sábado, solitário, deprimido e triste em meio à multidão que alheia à minha condição comprava, comprava e comprava naquele templo do deus Mamom, ao passar num corredor deparei-me com este pastor abraçado à esposa defronte à vidraça de uma loja, fiquei feliz ao ver aquele homem de Deus, alguém que sempre julguei piedoso, e continuo crendo nisto ainda hoje, grande orador, sempre fez sermões de três pontos de forma invejável, metódico como pastor e um bom professor sempre disposto a aprender, uma das suas maiores características sempre foi a humildade e o espírito de serviço. Ele me olhou de soslaio e virou o rosto, fez de conta que não me viu, acredito que não queria ser visto num lugar público falando com um leproso espiritual como eu, acho que minhas deformidades estavam tão acentuadas que devem ter causado repulsa aos olhos sensíveis e sinceros do meu amado amigo. Para não envergonhá-lo e deixá-lo constrangido eu me afastei, fiquei com piedade dele, talvez eu o deixasse em maus lençóis com a esposa, que o acompanhava, se o abordasse, não quis forçá-lo a falar com um leproso, levei a minha lepra para longe, eu não queria contaminá-lo.

Philip Yancey descreve em A Dádiva da dor e em Alma sobrevivente, ainda que neste último de forma resumida, a história do médico Paul Brand, que abandonou o luxo e a fama para tratar de leprosos em regiões paupérrimas da Índia, algo que me chamou à atenção naquela brilhante biografia foi o caso de um homem que estava num estágio avançado de lepra, rejeitado pela família, pela sociedade e por muitos centros de saúde, foi tentar a sorte derradeira no hospital do Dr. Brand, ao ser examinado por este, começou a chorar, o médico ficou assustado e perguntou à enfermeira que servia de intérprete se estava machucando sem querer o rapaz, a resposta que recebeu foi que o choro se devia ao fato de que aquele homem havia esquecido o toque humano, e estava emocionado por estar sendo tocado pelo Dr. Brand.

Eu me senti naquele dia como um leproso, num grau tão elevado de infecção, que esconderam até o rosto de mim, por medo de contaminação. Sei que minhas falhas de caráter são um grave desapontamento a Deus, que mesmo assim me ama, sei também que são um grave desapontamento à igreja, que não consegue amar pecadores como eu. Só os perfeitos são amados, só os bonzinhos são queridos, eu não sou nenhuma coisa e nem outra. Quando reencontrar meu amigo nos longos e iluminados corredores do Palácio de Abba, não o deixarei esconder o rosto outra vez, até porque minha lepra ficará por aqui mesmo, darei um grande abraço e beijarei sua face, feliz por estarmos juntos no único lugar onde não vale o que somos ou o que fomos, o que vale e valerá para sempre é a sombra de uma cruz (e tudo o mais que ela representa) num monte empoeirado na antiga Jerusalém. Neste dia muitos de nós descobriremos que a mania pela perfeição, a intolerância e o desprezo aos imperfeitos não foi o evangelho que Abba mandou que pregássemos.

Espero que um dia, quando o Rei mandar me buscar e me chamar para sentar à mesa, aqueles que torceram o rosto para mim, sejam mais tolerantes, pois como Mefibosete, sou aleijado cheio de defeitos, o manto púrpura sobre os meus ombros não modifica meus defeitos, apenas os encobre, mas não os conserta de vez, mesmo assim o Rei mandou me buscar, e segundo a Sua própria palavra: "... para que eu use de misericórdia (bondade)...". Um dia eu sei que dirão, Jocelenilton, coxo de caráter de ambos os pés, morava em Jerusalém, porquanto comia à mesa com o Rei, e isto bastará como epitáfio para minha lápide: Comia à mesa com o Rei.

Uma prece: Sou um Maltrapilho Abba! Permita que eu ame e compreenda àqueles que não conseguem me amar por eu ser um pecador, não permita que tenha raiva e nem ressentimento, permita, que eu possa tocar naqueles que estão na mesma condição que eu, precisando de um amigo, de um abraço e de um apoio, me ajude a aceitar às falhas dos maltrapilhos desprezados como eu, e que aqueles que têm saúde espiritual, possam continuar sãos, ainda que desviem os olhos de mim. Sustenta-os, protege-os, fortaleça-os.

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