Um país de espertos


Reza uma antiga lenda, tão antiga quanto as estrelas do céu, que havia um país muito distante, tão distante quanto imenso, tinha praias exuberantes, minas de ouro e de pedras preciosas, florestas belíssimas, montanhas verdes, ilhas paradisíacas e um oceano azul o bordeando, como se fosse a borda de um desenho. O céu sobre este país parecia um quadro pintado à mão, uma verdadeira obra de arte e o sol que nascia sobre aquele país parecia diferente do sol que nascia sobre os outros países, era maior e mais quente.

Este país tinha muitos moradores, milhares, de todos os tipos, cores e raças, era um lugar onde as diferenças eram toleradas, onde cada um tinha orgulho de ser o que era, sem querer impor ao outro o seu próprio modo de ser, acreditavam os moradores dos demais países que aquele lugar era um estereótipo do paraíso na terra.

Para cada 100 bebês que nasciam naquele país, 99 nasciam espertos, o resto, ou seja 1 em cada 100 era de pessoas normais ou mesmo de retardados. Todos queriam que seus filhos nascessem espertos, a pergunta que faziam aos médicos quando as mulheres estavam grávidas não era se o bebê tinha saúde, mas sim se era esperto, existiam inúmeros exames pré e pós-parto que indicavam o grau de esperteza de cada nascituro, alguns deputados, todos da casta dos espertos, obviamente, estudavam a possibilidade de criar leis que permitissem que as mães interrompessem a gravidez caso os exames demonstrassem que a criança seria normal, ou mesmo retardada.

Os pais juntavam dinheiro, trabalhavam muito para poderem dar educação adequada aos filhos, estes tinham que ir para boas escolas, só assim os pais saberiam que eles teriam um futuro brilhante e recheado de sucesso.

Neste país de espertos, era normal estudar para passar nas provas, ser esperto era copiar a prova de outro, e ser mais esperto ainda era usar algum meio eletrônico que facilitasse burlar a vigilância dos professores, a nota dez não era comemorada, e sim o fato de que ela significava que o aluno era esperto e sabia se sair bem das dificuldades. Os espertos eram admirados e extremamente populares.

Neste país os universitários espertos iam para a aula apenas para responder a chamada, depois ficavam na frente da faculdade, bebendo, fumando e se divertindo, na hora da prova era só filar, seja de um aluno normal que estudou, seja copiando do caderno ou do livro, ou mesmo do telefone móvel, e tirar uma boa nota para passar, pois o que interessava mesmo era o diploma, aprender era coisa de pessoas normais ou limitadas intelectualmente, os espertos mesmos eram aqueles que conseguiam os diplomas sem muito esforço.

Neste país os motoristas bons não eram aqueles que nunca batiam, mas sim aqueles que não ficavam presos em longos engarrafamentos, bons mesmos eram aqueles que trafegavam na contramão ou faziam manobras arriscadas para fugirem espertamente de alguma fila longa de veículos, sem se importarem com quem ficou para trás, espertos mesmos eram aqueles que conseguiam estacionar o carro de qualquer jeito, seja numa vaga para idosos ou cadeirantes, ou em cima da calçada, sobre o passeio de pedestres, o que importava ao final era que o veículo ficasse protegido, cada um que cuidasse de sua vida, esse era o lema dos espertos.

Neste país as filas eram instituições reservadas exclusivamente para seres desprovidos de inteligência superior, os espertos sempre davam um jeito de burlar a fila, e passar na frente de quem estava esperando há horas, o que importava mesmo era mostrar que se sabia encontrar uma saída para não enfrentar uma longa fila, seja fingindo ser idoso ou deficiente, seja manipulando a bondade alheia, esperto que é esperto, não perde tempo em fila.

Neste país havia uma tácita lei contra os preços abusivos dos programas para computador, dos CDs de músicas e dos filmes. Punia-se quem cobrava caro com a reprodução massiva de suas obras e a distribuição, digo venda, por preço bem abaixo do mercado oficial, para todos aqueles que quisessem. Alguns espertos mostravam com orgulho os programas para computador que eles haviam burlado o sistema de senhas e conseguido instalar ou mostravam, como troféus de guerras, os filmes que tinham copiado e que ainda estavam sendo exibidos no cinema, os normais, aqueles que eram desprovidos de inteligência superior, compravam os programas que usavam, ou então instalavam programas gratuitos, mas os espertos consideravam estes programas chatos e toscos, só era admirado mesmo quem tinha quebrado mais licenças de instalação.

Os espertos passavam anos se preparando para serem funcionários do governo, pois só assim poderiam ganhar muito dinheiro sem precisarem trabalhar muito, não que não houvesse trabalhadores nesta classe, havia sim, porém eram apenas seres normais ou retardados, os espertos eram daquela estirpe que conseguiam resolver tudo apenas por meio do paletó, tanto que faziam questão de deixá-lo pendurado na cadeira na segunda-feira e só voltavam para buscá-lo na sexta-feira, ou no dia do pagamento.

Os pais de todos, sejam espertos, sejam normais, desejavam um futuro brilhante para os seus filhos, os filhos dos normais estudavam muito para serem professores, médicos, engenheiros e militares, os filhos dos espertos eram treinados desde a primeira infância para serem jogadores de futebol, cantores ou atores de televisão, e desta forma enriquecerem antes mesmo dos vinte anos de idade. Quando alguém dizia que seu filho ou sua filha seria médico ou advogado, todos em volta já sabiam que aquela pessoa era da casta dos normais, muitos até tinham vergonha em dizer que o filho ou a filha estava estudando para ser professor ou professora, era o mesmo que, em outros países, alguém dizer que o filho estava no presídio por traficar drogas ou por estupro.

Neste país os religiosos normais, andavam de ônibus, ou de bicicleta, conduziam as suas reuniões em casas simples, muitas de pau a pique e viviam com salários baixos e por isso tinham que trabalhar paralelamente. Os religiosos espertos viviam em mansões luxuosas, com carros importados na garagem, motoristas e serviçais às suas ordens e ainda tinham status de celebridade, com programas na televisão e editoras exclusivas para publicarem suas obras, uma palestra de um religioso esperto custava uma fortuna, muito embora a de um religioso normal não custasse nada, mas quem iria querer ouvir um religioso normal pobre, se os religiosos espertos eram muito ricos e ainda ensinavam aos outros como se tornarem ricos também? Os seguidores espertos, obviamente, procuravam seguir os ensinamentos de seus mentores, pois só era um esperto abençoado aquele que enriquecia sem muito esforço, quem trabalhava duro para sobreviver, era normal, retardado ou estava em pecado, ou seja, não fazia parte da elite escolhida dos espertos. Ainda que o fundador da religião tenha sido pobre e tenha optado por viver entre os rejeitados, os espertos fingiam que isso não havia acontecido, diziam que se ele vivesse na época deles, com certeza seria um grande empresário e não um peregrino pobre de roupas surradas e maltrapilhas.

Neste país os políticos que eram eleitos pelo povo e que se preocupavam em atender à vontade da população, não demoravam muito no cargo, pois nenhum esperto gostava de gente normal no parlamento, tratavam de não elegê-lo na próxima eleição, o que eles queriam mesmo eram deputados e senadores espertos, que fizessem leis espertas e que arrumassem empregos para seus filhos espertos. Gostavam de políticos espertos que falavam bonito e que tinham uma boa oratória, pois ouvir políticos normais, sem muita instrução era diminuí-los e um esperto de verdade não vai querer nunca ser tratado como normal.

Um dia aconteceu algo inesperado, cansados de serem maltratados, os normais e os retardados resolveram ir embora, eram tão poucos, que sabiam que não fariam falta, reuniram-se na beira da praia e traçaram um objetivo para a viagem, iriam embora num navio para algum lugar, onde não fossem diferentes e sim onde fossem a maioria, levaram só o que podiam carregar, já que não eram espertos, não levaram supérfluos.

No outro dia os espertos descobriram que não havia mais nenhum normal no país e se alegraram, pois haviam se livrado daquela gente chata, limitada e sem graça. Com o passar dos dias, começaram a sentir falta deles, pois não havia mais ninguém a quem explorar, não havia a quem oprimir, e o país se tornou um inferno, pois ninguém sabia ensinar, escrever, cuidar dos doentes, gerir as empresas, pilotar os aviões, cuidar do trânsito, etc. Tinham passado a vida toda aprendendo a serem espertos e esqueceram de coisas tão básicas, e o país virou um caos.

Conta ainda a lenda que um navio, cheio de pessoas normais vaga pelos oceanos em busca de um lugar onde possam viver, um lugar onde ser normal seja a regra, diz a lenda que ainda não encontraram, mas como todos os tripulantes e passageiros são normais e retardados, não desistem da busca e continuam procurando, esperança eles têm de sobra.

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