Mundo dos espertalhões


Os Três Poderes estão se agitando freneticamente, se chocando e confrontando, por conta da Lava-Jato visivelmente. O Congresso tenta “redimir-se”, respondendo ao Supremo agressivamente, em retaliação, em parte por uma boa causa – de fato o Judiciário posta-se como entidade acima da lei, está acobertado de privilégios escusos (inconstitucionais, ainda que estejam na Constituição), está “moralizando” o Congresso (que, sim, não tem moral nenhuma, mas a moral do Judiciário é extremamente ambígua), judicializando procedimentos que deveriam ser resolvidos na Casa do Povo (que sarcasmo!). Como observador atônito, devo dizer que me espanta e incomoda o cenário de um jogo de espertalhões, onde ninguém é santo, ou não tem moral para moralizar nada. Sempre considerei o Judiciário o lado mais podre dos Poderes da República, porque tem a última palavra que, tendenciosamente, se volta a favor de si mesmo, em especial para regalias inconfessáveis, como simples aposentadoria no caso de condenação de Juiz, férias de dois meses, os salários mais elevados do país e repletos de penduricalhos, além de manobras feitas nas brechas da lei que eles mesmos arrombam. Macula o Supremo ser composto por gente “indicada”, um grupo inventado e aí ajuntado de maneira estranha, vitalícia e que pratica uma justiça lentíssima, suspeitíssima, ineptíssima. Alguma coisa mudou ultimamente, depois que Barbosa por aí passou, um evento muito memorável: deslanchando o processo do Mensalão, inaugurou alguma capacidade de reação que acabou eclodindo na Lava-Jato, uma das maiores conquistas dos últimos tempos no Judiciário.

Mas isto não refresca a suspeita que temos sobre o Judiciário, também no grupo de Curitiba, porque é constituído, em parte pelo menos, de oficiais apaniguados, privilegiados, que não se cansam de defender e degustar regalias salariais, e, em parte, por jovens (ou metidos a jovens) afoitos, sôfregos, que apreciam estardalhaço e barulho, holofote, ao invés do comedimento indispensável para se fazer justiça. Seria o caso lembrar que no Paraná, Juízes processaram jornalistas que colocaram o dedo nesta ferida fétida dos salários imorais da magistratura brasileira, só estancados por interferência do Supremo. Ao mesmo tempo, Carmen Lúcia, a franciscana do Supremo, ainda que transmita em seu posicionamento uma expectativa tocante (que se aproxima do Papa Francisco), não deixa de defender “a turma”, exalando corporativismo sonso – deveria combater abertamente privilégios do Judiciário, porque ela sabe, mais que ninguém, que poder público privilegiado deixa de ser “público”. O poder do Judiciário não é “público” – foi assaltado pelos próprios ocupantes do poder, cujo senso por salário é infinitamente superior ao senso por justiça. Não dá para confiar. A Justiça precisa calçar as sandálias franciscanas, sim, como sugere Carmen Lúcia, que são a únicas que servem a “fazedores honestos de justiça”. Não posso deixar de recordar que um Ministro deu um golpe sujo no julgamento sobre se réus poderiam ocupar cargos na linha sucessória presidencial, quando pediu vistas, mesmo havendo já maioria de votos – é muito difícil não suspeitar de conluio inacreditável, abjeto, sórdido. É o que dá ser “indicado” e dever favores...

Na outra ponta temos um Congresso desarvorado, porque está na iminência de ser devorado pela Lava-Jato. A delinquência é de tal monta que a saída foi anistiar o caixa-dois de campanha, não porque não seja crime, mas porque, tendo sido cometido por quase todos, “não deveria ser visto como crime”! As dez medidas propostas para sanear a corrupção na República (com mais de 2 milhões de assinaturas) foram desfiguradas ostensiva e porcamente, num recado vergonhoso de legislação em causa própria. A anistia não entrou porque o entrevero entre Calero e Geddel desmoralizou a ideia, mas outras manobras foram contempladas, desvelando o quanto o Congresso é um “poder paralelo”, no sentido pejorativo de uma republiqueta dentro da República. Punir abuso de poder sempre cabe, não sendo correta a alegação de Moro e sua turma de que não cabe discutir isso agora. Cabe sim. Pode-se reclamar de pressa, açodamento, texto mal elaborado; mas retirar privilégios sujos do Judiciário é preciso urgentemente. Um castelo de juízes e procuradores não convence a ninguém, porque, mesmo praticando coisas muito nobres também, o eco da autodefesa sempre macula o cenário. O tom de elite intocável, até mesmo acima da lei, é escandaloso, para dizer o mínimo. Usando uma expressão apropriada, quer-se lavar a República com água suja.

O choque entre Calero e Geddel escancarou porões da República nada edificantes. É lamentável que o Presidente perca seu tempo em acomodar pleitos inconfessáveis de um Ministro que força a invasão de área urbana tombada e sempre sugeriu anistiar o caixa-dois, possivelmente para salvar a própria pele. Não dá para confiar no governo (Executivo) – num momento paroxístico como esse, é preciso ter moral para impor moral. Nenhum Poder tem. Todos querem lavar a República com água imunda. Corrupção é o combustível político do dia a dia, endêmica, sistemática, nojenta. A razão da política é o enriquecimento ilícito e desbragado; não se roubam restos, gorjetas, mas tudo que se pode, astronomicamente. O mais triste é constatar que nenhum Poder consegue se autorreformar, tamanha é a devassidão. Não adianta propor uma Constituinte exclusiva para refazer um pacto federativo contra a corrupção, porque não faríamos nada diferente da atual Constituição: um poço de proteções corporativistas, onde todo grupo privilegiado exarou seus privilégios. Precisamos de uma Constituinte que venha de fora: um grupo, digamos de 50 pessoas (25 juristas e 25 não juristas), que fique fechado por 3 meses e produza uma constituição mais “objetiva”, voltada para o bem comum, estritamente. Onde o Judiciário, o Legislativo e o Executivo metem a mão, sai porcaria. Não tenho condição de esperar outra coisa.

Quando se mostra tão urgente e indispensável conter gastos públicos, porque a conta não fecha, não se vê um Judiciário tomando iniciativa de arrumar sua casa, ou o Congresso. Longe disso. A conta vai ficar com a população, com os assalariados que já são “assaltados” no próprio contracheque. O Rio de Janeiro escancarou esta manobra: pretendia-se taxar os servidores com até 30% para a previdência; somando-se o imposto de renda, resta meio salário, se tanto! Embora sempre se possa aludir excesso de servidores, acomodação de muitos de modo ilegal etc., não podem pagar a conta sozinhos. Sequer estamos conseguindo acabar com os supersalários, algo abjeto e já disseminado, defendido como legal por conta de “brechas da lei e garantias constitucionais”. Gostaria de lembra que lei com brecha e garantias constitucionais predatórias não podem ser “constitucionais”. Uma Constituição que permite tais excrescências nunca foi “constitucional”. Aí Ulysses Guimarães nos deixou um legado pérfido – esta Constituição não é “cidadã”, é corporativista, de privilegiados para privilegiados. Foi feita a dedo para ter brechas e proteções inconfessáveis.

Quando um país quebra, todos precisam pagar a conta. Clama aos céus que o acerto de contas comece pelo mais fraco, não pelos Juízes, deputados, em especial pelos supersalários e contratos lesivos com empresas. O Judiciário nunca fez qualquer gesto para recompor a probidade institucional. Encastelou-se e cospe de cima como casta blindada. É uma pena. A turma da Lava-Jato deveria ter incluído nas dez medidas o saneamento do Judiciário, para ter um pingo de moral. É imbecilizante insinuar que o Judiciário é um poder impoluto a ponto de poder restabelecer a moral pública e que o grupo de Curitiba é o bastião da probidade. Tem feito grande serviço, mas não consegue evitar a cortina de fumaça da autoproteção: uma elite assaltante que usa o direito à última palavra para benefício próprio. Não tem a moral que proclama. Não está a serviço da República. Está a seu serviço próprio. Uma república da elite judiciária também é de “banana”.

Não podemos desistir da democracia – embora com todos esses problemas, é o regime preferível, de longe. Mas é nessas horas que notamos o quanto é uma flor frágil. Não conseguimos sair da “sociedade do privilégio”: ser tratado de modo igual é coisa de pobre. Para ser Juiz é preciso ter supersalário, carro oficial, séquito, honrarias, acréscimos salariais de toda sorte, porque – assim parece – a competência é medida pela ostentação. Não conseguimos montar a ideia de que Juiz, para ter o acato, respeito e mesmo reverência da sociedade, não deve ter carro oficial, salários suspeitos, favorecimentos imorais, posar de elite inatingível, ser dono da lei. Justiça apaniguada não pode ser justa. O Congresso é incapaz de fazer uma faxina profunda em seus desvarios clássicos, reduzindo o número de deputados e senadores (por exemplo, manter apenas senadores, três por estado), tendo 12 salários anuais (sem estatuto próprio previdenciário), dispensando moradia subsidiada ou funcional, pagando suas contas todas com o salário, viajando com recursos próprios etc. Deputado, senador privilegiados são sanguessugas.

O Executivo também não se autorreforma. Não consegue nem conter os supersalários, cortando todos que ultrapassam o teto constitucional, acatando apelos sórdidos de brechas da lei ou garantias constitucionais, totalmente inconstitucionais. É inchado em quase todos os órgãos. Se olhássemos pela exiguidade/precariedade dos serviços oferecidos – digamos educação pública, saúde pública, segurança pública... – não justifica nem um terço dos gastos. Se quase ninguém aprende na escola, temos um sistema de ensino inepto, fraudulento, imbecilizante, e caríssimo. A população paga para ser maltratada. Mas, se houver, cá e lá, alguma oferta qualitativa – digamos, universidades federais de qualidade mais elevada – é logo feita botim dos mais ricos, sob a alegação de mérito (porque passam nos vestibulares). Sociedade do privilégio é assim – o Estado existe para proteger o mercado e a elite econômica e política. Povo é capacho – quando muito tem Bolsa-Família.

Vejo na web a celeuma em torno da ida do Presidente para os funerais do jogadores mortos da Chapecoense (hoje é dia 3 de dezembro) – vai até ao aeroporto; não vai ao campo do time por temer protesto. E Josias Souza avisa: “Talvez Temer viva o próprio velório” (josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br). A que ponto chegamos! No dia 1o de dezembro Joaquim Barbosa avisava que o “governo Temer corre o risco de não chegar ao fim” (http://www1.folha.uol.com.br/poder), por conta de um “impeachment Tabajara” (uma encenação anunciada). Um governo usurpador que não consegue legitimar-se. Tudo água suja. Talvez seja por isso também que a economia não consegue “arrancar” – falta mínima confiabilidade no governo ou nos Poderes, de modo geral. “Deitado eternamente em berço esplêndido” – um país que, ao contrário do refrão cínico, não “é para todos”; é para alguns, políticos, empresários, juízes, funcionários públicos apaniguados... Somos totalmente reféns dessa elite perversa, espertalhona.

Por Pedro Demo
Fonte:http://pedrodemo.blogspot.com.br/2016/12/ensaio-111-mundo-dos-espertalhoes.html

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