Palestina: o Holocausto dos Filhos de Ismael

Nota: Artigo escrito pelo bispo Robinson Cavalcanti para a revista Ultimato 194, em 1988. O mesmo texto também foi publicado no livro “A Utopia Possível”, em 1993. Foi bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política — teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo — desafios a uma fé engajada. Faleceu no dia 26 de fevereiro de 2012 em Olinda (PE).


O mundo tem assistido consternado às cenas de violência envolvendo tropas israelenses e civis palestinos nos territórios ocupados. A brutalidade mostrada pela televisão causa perplexidade em muitos cristãos expostos, por tantos anos, a uma visão unilateral sempre favorável à causa sionista: os bons judeus versus os maus árabes.

Como é sabido, com a Guerra dos Seis Dias (1967), Israel anexa a Faixa de Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental, onde vivem mais de um milhão de palestinos. Essas regiões permanecem sob governo militar e lei marcial, com seus habitantes sujeitos a condições subumanas, privados de direitos e transformados em mão de obra barata, como os guetos negros da África do Sul. Qualquer pessoa pode ser detida sem justificativa e por tempo indeterminado, sem poder ver o seu advogado. Todos são suspeitos do crime de querer se ver livres dos seus ocupantes. Segundo a Cruz Vermelha e a Anistia Internacional, o uso de torturas é uma prática habitual, e os presos são julgados por tribunais militares judeus. Ao mesmo tempo, grupos extremistas, como o Gush Emunin, vão erigindo, à força, povoamentos israelitas.

Enquanto isso, o Estado de Israel propriamente dito é uma sociedade estratificada e desigual, onde a minoria de judeus brancos askhenazitas detêm o controle do governo e da economia, com a massa dos judeus morenos sefarditas inferiorizada e discriminada e os árabes e drusos como cidadãos de terceira classe.

Não podemos esquecer que o sionismo significou um revés para a Igreja Cristã naquela região. Em 1948, 50% da população de Jerusalém era cristã, bem como 90% da população de Belém. O Patriarcado Ortodoxo Grego de Jerusalém data de 451 d.C. Discriminados como cristãos e perseguidos como árabes, a maioria dos cristãos deixou o país, não restando hoje mais do que 10%. Desde 1967, 100.000 cristãos árabes emigraram. A postura unilateralmente pró Israel dos cristãos ocidentais é um obstáculo à evangelização dos árabes e deixa em situação difícil os cristãos locais.

A História registra que o pró judaísmo entre os cristãos está ligado à figura do teólogo inglês dispensacionalista John Nelson Darby (1800 82) e à disseminação da Bíblia comentada Scofield. Em 1876, foi realizada a Conferência de Niágara sobre as Profecias, com forte influência sobre os Bible College. Por um literalismo, procurou se defender um direito divino dos judeus às terras palestinas, a qualquer preço. São esses protestantes que dão as bases bíblicas para o sionismo (esse originalmente secular e nacionalista, humanista e socialista). Isso é algo totalmente estranho ao pensamento evangélico do século XVI, que nem era pré-milenista nem dispensacionalista. Lutero e Calvino tomariam um susto com essas interpretações.

O Dr. Marvin Wilson, do Gordon College, denuncia que os fins não justificam os meios, que o Israel de hoje nem é uma teocracia nem o Reino de Deus, e que não pode ser julgado por outro padrão de moralidade diferente das outras nações. Para o Dr. Anthony Compolo, do Easton College, o dispensacionalismo nos fez entusiastas do desalojamento dos palestinos e indiferentes às injustiças praticadas contra aquele povo. E o Dr. Wesley Brown, presidente do Seminário Batista Americano do Oeste, na Califórnia, afirma que Deus está ao lado dos oprimidos, e no caso do conflito árabe israelense não há dúvida de que os palestinos árabes são os oprimidos, e que a maioria das interpretações dispensacionalistas é amplamente baseada numa hermenêutica inválida.

Quanto ao terrorismo palestino, é bom lembrar que Israel foi construído à base do terrorismo judeu contra os ocupantes ingleses e as populações árabes. Segundo o historiador menonita canadense Dr. Frank Epp, quatro ex Primeiros-Ministros israelenses estiveram envolvidos pessoalmente em atividades guerrilheiras ou militares para a expulsão dos palestinos. Menahem Begin (depois Prêmio Nobel da Paz), em seus verdes anos, escreveu um livro defendendo a ação terrorista e foi responsável, em 1948, pelo massacre da vila árabe de Deir Yassin, quando morreram 250 homens, mulheres e crianças. Sua organização, o Irgun, bem como a Haganah (fundada em 1920) e a Palmach, foram responsáveis por inúmeros massacres contra civis (vide Hotel Rei Davi).

Por séculos, árabes mulçumanos, cristãos, judeus e drusos viveram harmoniosamente na região, antes do retorno em massa dos judeus louros, eslavos e germânicos (estranhos para a paisagem humana da região) que migraram em massa para a Palestina em virtude do sionismo. Em 1948, a ONU concede a 1/3 de judeus o direito de mandar em 2/3 de árabes.

Não devemos temer a defesa da justiça com medo de sermos acusados de antissemitas. Os cristãos sentem a consciência culpada do antissemitismo da Inquisição e do Nazismo, sentem simpatia pelos “kibutsin” e pelos “moshavim”, mas não podem negar sua soteriologia histórica, que nos ensina que só há um caminho para Deus inclusive para os judeus que é Jesus Cristo, e que o Povo de Deus hoje é o Corpo de Cristo, a Igreja, chamada a exercer um ministério de reconciliação e a lutar pelos valores do Reino.

Não podemos sucumbir à tentação militarista e intolerante, genocida dos judeus, nem nos esquecer que os árabes também são filhos de Abraão, sob promessa de bênção de Deus, e que ali está presente a maior parte dos cristãos, nossos irmãos. Por dois Estados soberanos: Israel e Palestina. Por um estatuto internacional para Jerusalém.


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