Sionismo cristão e dispensacionalismo

 

O dispensacionalismo do sionismo cristão estadunidense
 A fim de compreender como se deu a fundação e fortalecimento do sionismo cristão norte-americano e suas diretas implicações na construção do movimento evangélico brasileiro – em especial, pentecostal e neopentecostal -, faz-se necessário analisar o papel central do dispensacionalismo. Charles C. Ryrie, importante teólogo norte-americano, busca em um de seus livros definir essa corrente. De início, é necessário compreender o que é uma dispensação. O autor parte de uma definição superficial adotada por muitos críticos e, também, adeptos ao dispensacionalismo; dispensação seria um período de tempo no qual Deus testa a obediência do Homem em relação a alguma revelação. O autor, entretanto, discorda que a concepção de uma dispensação deva ser atrelada a uma era, ou a um período de tempo determinado. No lugar, deve ser entendido como um acordo em que a administração da obra divina – a Terra, um reino, uma locação específica - é dada ao Homem com um objetivo, com a intenção de gerar uma revelação. Tempo e acordo coincidem cronologicamente, mas o que constitui a dispensação é o tipo e objetivo do acordo, e não sua periodicidade. O autor cita, ainda, que a descrição de uma dispensação envolve: uma revelação distinta, a responsabilidade dada ao Homem, os teste aplicados, o fracasso humano e o julgamento divino. Todas as dispensações da Bíblia possuem essas características (RYRIE, 1995). 

Essa hermenêutica bíblica entende que há sete dispensações na Bíblia: (1) a da Inocência, na qual Adão falha em suas tarefas de manter o Jardim do Éden, livre de pecado, e cede ao comer o fruto proibido; (2) a da Consciência, no qual o Homem deveria se comunicar com Deus por meio de sacrifícios de sangue, que não foram cumpridos por Caim (e outros) e trouxeram o homicídio ao mundo; (3) a do Governo Civil, no qual os humanos fracassaram em seguir a ordem divina de espalhar a população pelo planeta após o Dilúvio e decidiram, no lugar, construir a Torre de Babel; (4) a da Promessa, no qual o povo de Abraão deveria permanecer na Terra Prometida; (5) a do Quadro Legal, no qual o Homem era responsável por manter uma ordem jurídica justa, mas acabou levando à Crucificação injusta de Jesus Cristo; (6) a da Graça, na qual o Homem deve aceitar o caminho da Graça Divina e aqueles que o rejeitarem serão julgados com a segunda vinda de Cristo; e, por fim, (7) a dispensação do Milênio, na qual Jesus Cristo governará um reino de paz por mil anos, enquanto o Satanás permanece amarrado e a desobediência eliminada (RYRIE, 1995). Apesar de ser possível encontrar autores que discordem dessa divisão de sete dispensações, a tese de Ryrie é vastamente predominante. 

Ryrie (1995) exalta o caráter literal da hermenêutica bíblica proposta pelos dispensacionalistas. O autor ressalta como outras teorias, como a Teologia da Aliança (que será abordada em seções posteriores), se valem de interpretações não literais, marcadas por entendimentos subjetivos, que fogem à gramática. O autor defende que o dispensacionalismo é a única teologia que fornece um quadro consistente e objetivo de análise e leitura da Bíblia, por meio de sua interpretação literal; isso já prenuncia o caráter restritivo e limitante oferecido pelo dispensacionalismo para interpretação da realidade, dado que o texto bíblico deve ser interpretado sempre em sua literalidade. À luz desse entendimento, um dispensacionalista entende que Jerusalém e, por consequência, Israel são os lugares dos quais Jesus Cristo governará seu reino de mil anos de paz após seu retorno e, em razão disso, devem ser protegidos, para que essa visão teológica profética possa concretizar-se. 

O dispensacionalismo forma o sionismo cristão norte-americano. Wachholz e Reinke (2020) compreendem que o processo de formação do sionismo cristão alimentado pelo dispensacionalismo tem forte impulso nos Estados Unidos da América por algumas razões: 
“É bastante possível que o dispensacionalismo tenha tido ampla aceitação [...] justamente pela sua defesa da Bíblia em uma época em que sua autoridade era questionada pelo modernismo teológico. Além disso, os dispensacionalistas defendiam que qualquer cristão podia ler e interpretar as Escrituras sem a necessidade dos especialistas da academia teológica (WEBER, 2005, p.36- 39). [...] Blackstone criou o mito fundador do sionismo cristão dos Estados Unidos da América ao combinar a crença messiânica com a história nacional no seu mais profundo senso patriótico: para ele, o Estado norte-americano deveria desempenhar papel que Ciro teve na restauração dos judeus a Sião, pois Deus teria escolhido os puritanos pela sua superioridade moral.” (WACHHOLZ; REINKE, 2020) 

A tese defendida no trecho pelos autores reforça o caráter político que sionismo cristão e, especialmente, o dispensacionalismo possuem. A doutrina dispensacionalista ganha seu primeiro forte impulso com a criação do Estado de Israel em 1948, tendo sua completa popularização alcançada após a vitória israelense na Guerra dos Seis Dias. A cultura norteamericana começou a propagar uma espécie de discurso sobrenatural e profético, que atingiu inúmeros setores da sociedade e disseminou as concepções dispensacionalistas. Desde então, houve uma mobilização política de teólogos, religiosos e escritores para que o Estado de Israel fosse protegido e benquisto por aqueles que governam os EUA (WACHHOLZ; REINKE, 2020). 

Apesar do foco primário da literatura sobre sionismo cristão ressaltar o papel do dispensacionalismo, existem outras correntes. Em seu trabalho de mapeamento da expansão do capital político e social do evangélicos no Estados Unidos da América, Amstutz (2013) mapeia pelo menos outras duas narrativas evangélicas de apoio ao povo judeu. A primeira narrativa, a Teologia da Substituição (Replacement Theology), defende que a partir do advento de Jesus Cristo o povo judeu deixa de ser a prioridade e o povo a ser protegido nos planos divinos – substituídos pelo povo cristão. Originada por Santo Agostinho, não é tão relevante atualmente. As críticas contemporâneas se concentram no fato de que essa teologia é exacerbadamente focada na vida e morte de Jesus Cristo, sem considerar as bases morais judaicas do Cristianismo. Com foco em Cristo, a narrativa também perde força ao negligenciar ensinamentos presentes no Velho Testamento (AMSTUTZ, 2013, p. 121). 

A segunda narrativa a ser abordada é a Teologia da Aliança (Covenant Theology). Com origem com João Calvino, teólogo fundador do Calvinismo e central no Protestantismo, essa narrativa entende que há duas alianças distintas, mas interdependentes: a do Velho Testamento, conhecida como “Aliança da Lei”; a segunda, presente no Novo Testamento, conhecida como “Aliança da Graça”. Judeus e cristãos são partes plenas no plano de Deus, estando ambos dentro da Salvação (AMSTUTZ, 2013, p. 122). 

Por fim, o Dispensacionalismo. O autor defende que esta corrente não é a predominante entre os líderes evangélicos, diferente de outras literaturas sobre o tema. Ainda assim, reconhece o papel que esta corrente ocupa na mídia e seu impacto na interpretação evangélica sobre política internacional. O autor ressalta que sob o Dispensacionalismo, a Bíblia deve ser lida literalmente: a defesa do Estado de Israel é necessária dado que a criação deste é uma das etapas para a volta de Jesus Cristo à Terra. Sua crítica reside no fato de que essa leitura literal é simplista e não permite análises complexas sobre os conflitos atuais no Oriente Médio (AMSTUTZ, 2013, p. 123). 

Diante do exposto, entende-se que, para o cenário brasileiro – enraizado no estadunidense – sionismo cristão e dispensacionalismo são conceitos inseparáveis. Se nos EUA o dispensacionalismo teve força ao ser associado à crença de um povo prometido, bem próximo dos valores do Destino Manifesto, no Brasil sua tração se origina nas visões proféticas e apocalípticas adotadas pelas igrejas protestantes. A hermenêutica literal do dispensacionalismo fornece aos crentes e intérpretes um framework rígido, em que as respostas já estão dadas e possuem tanta simbologia subjetiva. Essa característica estimula que o apoio ao Estado de Israel se dê por razões puramente religiosas, sem levar em consideração outros fatores implicados no Oriente Médio.

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In: Miguel Filizola PizaSionismo cristão e dispensacionalismo: como estes fenômenos norteiam as relações entre grupos evangélicos, o governo de Jair Bolsonaro e política externa brasileira (2022)
Fonte: https://bdta.abcd.usp.br/directbitstream/7d8de9fb-aa21-4b10-b096-0222ae4c0dd0/TCC%20-%20Miguel%20Filizola%20Piz...

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