Confissões de um ex-pastor(IX)

Eu tinha de tudo para ser um fundamentalista convicto, um bom cristão conservador, mas não sou, e olha que a culpa não foi de meus pais, tive uma criação austera. Fui criado na mais perfeita tradição reformada, sentia orgulho em dizer que era presbiteriano do pé roxo, isso significava ser também calvinista. Meus heróis da infância eram Martinho Lutero, João Calvino, Ulrich Zwínglio e Girolamo Savonarola, eu me emocionava ao ouvir: “Castelo forte é o nosso Deus...”, até hoje ainda sou contagiado pelo sentimento de orgulho de ser protestante ao ouvir a Marselhesa da Reforma.

Quando eu era pequeno os católicos para mim eram a face de Satanás na terra, não era para menos vivíamos uma guerra religiosa com eles, as nossas igrejas eram apedrejadas continuamente e não podíamos comprar nas mercearias dos bons católicos, pois éramos hereges. Um dia de domingo voltando da Escola Dominical eu e meus irmãos recebemos no meio da rua alguns livrinhos de catecismo das mãos de um padre, não sei qual a intenção dele, só sei que quando chegamos em casa os livrinhos foram confiscados por minha mãe e viraram cinzas antes mesmo que entendêssemos o que se passava. Na rápida olhada que dera, só tinha algumas imagens inocentes, nada demais. O nosso ódio pelo catolicismo era tanto que quando algum de nós era flagrado cantando música secular (contive o ímpeto de colocar mundana, pois assim abriria a hipótese de música extraterrena e isso seria assustador), alertávamos: - Vou dizer à mainha que você está cantando música do padre!

Eu era presbiteriano, mas minha mãe me matriculou numa escola paroquial católica, confusão na certa, eu não gostava das rezas e dos obrigatórios Ave Maria e Salve Rainha, costumava ficar em pé, mas não movia um dedo, até que me revoltei e um dia me escondi no guarda roupa para não ir para a escola, quando minha mãe descobriu, antes que me desse uma sova, expliquei que não queria rezar na escola, ela foi até lá e recebeu da diretora a promessa que eu jamais seria forçado a rezar, então eu tinha a autorização para não rezar, ficava sentado, calado e de cabeça baixa, a vergonha de ser diferente tornou-se em orgulho por ser diferente. Desde então passei a entender de fato o que era ser protestante.

Tive uma formação doutrinária conservadora, mesmo vivendo o auge do pentecostalismo desconhecia as manifestações espirituais desta tradição cristã. Ainda que a minha adolescência tenha passado por uma igreja que aceitava essa doutrina, ao entrar no seminário, passei a considerar as manifestações como fruto de transtornos psicológicos e até mesmo como manifestações demoníacas, não considerava a possibilidade de que algumas delas, ainda que em número muito pequeno, fossem de fato manifestações verdadeiras e reais.

Li todos os livros que podiam me ajudar a entender a luta contra o ecumenismo, o liberalismo teológico e o modernismo, temas que aliados ao comunismo eram diuturnamente combatidos no seminário e na igreja. Fui aluno de grandes luminares fundamentalistas de então, que lutavam contra o modernismo e o liberalismo, mas esqueciam de lutar contra suas próprias fraquezas sexuais, que levaram a maioria deles a cometer pecado de adultério e alguns até de pedofilia e pederastia. Isso sem contar a soberba espiritual e o orgulho doutrinário que dominavam aqueles que não cometiam adultério, achavam-se a Arca de Noé do século XX. Tinha um jornal chamado Presbiteriano Bíblico, que não tinha nada de presbiteriano e nem de bíblico, era apenas para destilar fel e ódio em cima daqueles que não se enquadravam, boa parte dos meus ícones à época eram escrachados ali: Robinson Cavalcanti, Caio Fábio, Leonardo Boff, Karl Barth, Rubem Alves, João Dias, etc.

A primeira vez que ousei dizer que o pré-milenismo dispensacionalista poderia não ser a corrente escatológica mais correta e que o dom de línguas poderia ser contemporâneo, quase fui parar na fogueira. Passei a ser chamado de liberal. Ocorre que eu estava dando um estudo numa igreja, eu ficara responsável pelo culto de doutrina, dia em que afora o domingo a igreja tinha mais gente, preparei então estudos sobre a posição escatológica da igreja, durante as apresentações eu me dei conta que não poderia crer naquilo, era especulativo e não tinha base bíblica, terminei o estudo que já tinha começado sem dizer que não cria no que tinha explanado. Porém no seminário onde estudava eu disse numa aula de Escatologia que se tinha que crer em alguma coisa no que diz respeito à vinda de Jesus, melhor seria na opção da negativa do Milênio, o termo é muito estranho e contraditório, mas era a única opção viável, a conhecida como amilenismo, por não ter algo mais factível para crer, eu era aluno do segundo ano, quase fui linchado pelos colegas e pelos professores que desde aquele momento passaram em todas as aulas a me ridicularizar e a fazer objeção às minhas convicções, tive que trancar algumas cadeiras e no fim do ano, mudei de seminário. Descobri que ser diferente entre católicos ou protestantes dava no mesmo, sempre seria perseguido.

O fato de ler abertamente Barth, Boff, Rubem Alves (e às escondidas Tillich e Bultmann) me deixou com o estigma de liberal. Nessa época entendi que a opção política do Comunismo teórico era a que estava mais perto do evangelho de Jesus, não aquilo que a Rússia, Romênia e Albânia viveram, mas aquilo que está nos escritos dos primeiros teóricos, quase fui linchado de novo. O fato de não votar em Collor em 1989 me deixou em maus lençóis (eu não votei no Lula no Primeiro Turno, votei no, à época, comunista Roberto Freire), engraçado que depois de alguns meses os mesmos que votaram nelle foram para as ruas comigo, protestar contra. Nessa época então eu me tornei liberal e comunista e nas horas vagas era seminarista e professor de Escola Dominical, nada mais paradoxal.

Tive um professor, muito conhecido hoje no país todo, que ministrou exegese de 1º Coríntios, era conservador, fundamentalista e defensor do exercício anacrônico do modus vivendi dos puritanos de três séculos atrás como norma para hoje, ele não conseguia conviver com alguém que pensasse diferente dele, era intolerante. Um dia os alunos me pediram que falasse com ele para trocar uma professora que não ministrava aulas muito bem, fiz isso, era representante da turma, ele então me pediu que fizesse um abaixo assinado para ser encaminhado ao conselho do seminário, do qual ele era diretor, depois de alguns dias soube que ele propôs no conselho que eu fosse expulso, pois eu tinha feito um documento pedindo a exoneração de uma professora, todos os alunos retiraram as assinaturas, eu por ser coerente mantive a minha e quase fui expulso, até hoje quando vejo livros desse pastor ou o vejo na televisão pregando tenho que me policiar para não ser tão intolerante, pois tenho que acreditar que até alguém que agiu como um hipócrita, como ele agiu, pode corrigir-se.

Às vezes quando dava aula nos seminário e demonstrava meu barthianismo quando dizia que a Bíblia se tornava a Palavra de Deus e questionava os muitos mitos bíblicos e as muitas sagas, eu acabava entrando para as listas de oração dos alunos “piedosos” que intercediam por minha salvação. Fui professor de história da Igreja e de Israel, procurava aguçar mais a mente dos alunos do que repassar lições prontas, mas não era essa a moda e eu me dava mal por isso.

Quase fui expulso de uma sala de aula numa pós-graduação, num seminário que meus outrora amigos fundamentalistas chamavam de modernista, apenas pelo fato de ventilar a hipótese que Moisés poderia não ter escrito o Pentateuco todo, achei que teria que passar por um Auto de Fé.

Um dia, quando todas as portas se fecharam, quando eu não via caminhos eclesiásticos que pudessem ser os meus caminhos, fui em direção ao anglicanismo, cheio de ritos e de tradições que eu antes considerava sem sentido e anacrônicos, no mínimo deveriam ter sido abolidos na Reforma, cria eu.

Mas pude receber amor, compreensão e me sentir de fato acolhido. Ser diferente ali era a regra e não a exceção, lógico que sempre aparece alguém para estragar a harmonia, mas o ideal de tolerância já plantado sobrevive, creio que por ser um dos sinais do estabelecimento do Reino de Deus. Às vezes eu parava para pensar e via que eu era tão normal comparado com aqueles irmãos, que não consegui imaginar a causa de ter sido repudiado pelos conservadores, de uma coisa eu sei: a comunidade, mais parecida com a caverna de Adulão, aprendeu a viver os ensinamentos de Jesus: - Vinde a mim, todo os que estais cansados e sobrecarregados e eu vos aliviarei.

Num fim de ano qualquer, numa celebração do Advento, estava eu com uma comunidade de católicos ao lado de um padre malgaxe celebrando o nascimento de Jesus entre irmãos, uma moça, membro daquela comunidade católica, fez uma Proclamação do Evangelho cantada, até hoje eu ouço a ressonância daqueles versos bíblicos cantados por ela, talvez seja o que Philip Yancey, outro fundamentalista resgatado, chama de “rumores do outro mundo”.

Continuo calvinista, protestante e amilenista, só que um pouco mais do que era, só para citar alguns dos meus rótulos, mas aprendi que o Reino de Deus se estabelece quando pessoas com opiniões diferentes e com histórias de vida tão dispares se encontram e celebram o Ágape no amor incondicional de Abba.

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