Contos II - Ler

Ele pegou um livro na cadeira que lhe servia de criado mudo, tinham mais de 20 em cima dela, todos ordenados de forma perfeccionista, alguns eram técnicos, outros eram de espiritualidade e outros ainda de liderança, cada um com um marcador, alguns com plástico envolvendo a capa, são os mais caros e aqueles que ele manuseia mais. Estava lendo todos de uma só vez, quando cansava de um, passava para outro, conseguia dessa forma ler mais de 10 livros por mês, às vezes lia mais de 120 livros por ano, ainda lembrava-se de uma época que ficou doente de bronquite e conseguiu ler mais de 300 livros em seis meses. Procurou os óculos de grossas lentes, sinal de astigmatismo avançado e miopia inclemente, colocou-os, olhou para o título do livro para certificar-se que estava pegando o livro certo e foi para o banheiro, passaria a próxima meia hora sentado, lendo, como fazia todos os dias. Leria pelo menos por uma hora antes de sair para o trabalho. Como morava razoavelmente perto, vinte minutos andando, levava sempre dois ou três livros, um deles seria lido durante a caminhada, conhecia de cor o caminho, não tinha medo de tropeçar e nem vergonha que o considerassem louco. No intervalo do almoço leria mais uma hora, não era bem compreendido pelos colegas de trabalho por isso, alguns costumavam distraí-lo na hora em que estava lendo, quando perguntou por que faziam isso, recebeu como resposta: - Não gosto de te ver estudando, me sinto ignorante. Ao que perguntou então: - Por que então não faz o mesmo? A resposta é sempre a mesma: - Porque tenho preguiça. Isso fez com que procurasse uma sala diminuta, onde a partir daquela data se trancaria lá dentro para ler até o término do intervalo. À noite após o jantar leria duas ou três horas, era assim que fazia desde que se lembrava, não sabia fazer diferente, tinha necessidade disso, tinha esse vício e não fazia nada para curá-lo. Mas nem sempre foi assim, ainda se lembrava como tudo começou cerca de 35 anos antes.

Foi como um cego ao ver a luz pela primeira vez após uma cirurgia de transplante de córnea, ou como um surdo ao ouvir o som de um pássaro apenas aos 10 anos de idade graças a um aparelho. O universo tomou outra cor quando descobriu que sabia ler, aconteceu assim mesmo, acordou um belo dia, escovou os dentes, tomou o seu cotidiano café com pão e procurou um local para ficar invisível, como também era de seu costume, deitou-se no chão de barriga para baixo, pegou o primeiro gibi de histórias em quadrinhos que veio à mão e sentiu-se o próprio Champollion, muito embora no momento nem idéia tivesse quem era esse sujeito, decifrando hieróglifos em manuscritos milenares, ainda que fossem apenas as patusqueladas de Donald e Tio Patinhas. Olhando assim parece que foi simples.

Foi só o começo, depois vieram os livros infantis, a Bíblia (três vezes a leu antes de completar 10 anos), os contos de bang-bang e os livros policiais que emprestava do marido da tia. Surgiu então o hábito, por necessidade pois não tinha dinheiro para comprar os que queria, de pedir livros e gibis emprestados, lia tanto, que mesmo na segunda ou terceira série, lia os livros dos irmãos que estavam quatro ou cinco anos mais adiantados que ele. Numas férias leu um livro escolar do irmão que continha mais de 200 resumos de livros de literatura brasileira, começou então um longo namoro com este tipo de livros, até encontrar numa biblioteca escolar literatura européia e americana, então conheceu A Ilha do Tesouro, Robinson Crusoé, O Médico e o Monstro, As Aventuras do Príncipe Eric, Os Três Mosqueteiros, A Cabana do Pai Tomás, Tarzan, etc. Tinha o hábito de pegar sempre um livro emprestado na biblioteca. No intervalo das aulas, antes mesmo de largar e depois que largava lia outro livro. Quando aparecia algum livro que chamava à atenção, às vezes roubava para poder ler em casa, sempre procurando devolver assim que terminasse de ler. Um dia chegou em casa mais tarde que de costume, pois a leitura o tinha feito viajar e não ter se dado conta da hora, quando disse à mãe que estava na escola lendo, ela não acreditou, tomou uma surra e ficou de castigo, mas não lamentou, a lembrança do que tinha lido enxugou suas lágrimas.

Porém além de não possuir livros, nunca ganhou nenhum livro do pai ou da mãe, talvez por isso quando adulto deixava de comprar roupas e até mesmo comida para poder adquirir livros, havia outro empecilho às leituras: sua mãe. Ela não gostava da sofreguidão e do ímpeto de náufrago socorrido que ele tinha, achava um exagero que ele ficasse lendo até tarde da noite, por isso proibiu sumariamente aquelas aventuras noturnas. Televisão, novela podia, ler demais não.

O teto da casa que morava era de telhas de barro, não era moda as casas terem o teto lajeado ainda, por isso o pai havia colocado telhas de vidro em lugares estratégicos da casa para que as luzes não precisassem ser acesas durante o dia, era uma forma de economizar energia, numa casa com 04 adolescentes isso era vital. Ele aproveitava então o reflexo que a lua incidia sobre a cama para poder ler, colocava um livro debaixo do travesseiro e na hora em que ia dormir, tão logo a mãe apagasse a luz da sala ou do quarto dela, ele tirava o livro e navegava num mar de emoções e aventuras até que uma nuvem encobrisse ou a réstia se alonjasse demais da cama. A escuridão nunca foi desculpa para que não lesse, metáfora para a vida toda, nada o faria dali em diante não ter um livro à mão. Mesmo que não tenha condições de ler, anda sempre com um livro.

Uma tarde deslocava-se com algumas pessoas para efetuar visitas a enfermos e outros desesperançados, levava à mão uma Bíblia, livro pelo qual tinha afeição especial, já era hábito ler andando, talvez pela leitura empolgante ou pelo caminho que não era de todo conhecido, ao descer uma ladeira não tão íngreme tropeçou nos próprios pés ou em alguma coisa e deu de cara com o chão, de cara só não, de pernas, de joelhos, de cotovelos e outras partes do corpo, foi um verdadeiro açougue, foi levantado todo arranhado, e a única coisa que o fazia lamentar-se foi que a sua amada Bíblia tinha se rasgado e perdido a capa, nem a vergonha o deixou triste. Uma metáfora que levou para o resto da vida: É preciso ler e olhar em volta, caso contrário a leitura pode ser um perigo.

Logo estaria usando grossas lentes, sinal de uma miopia crescente, mas com um misto de satisfação de saber que faria tudo outra vez, a sua infância não teve vídeos-game, nem brinquedos sofisticados, mas teve a companhias de reis, rainhas, magos, bruxos, feiticeiras, monstros, animais de todos os tipos, mocinhos, bandidos, escoteiros, marinheiros, etc. toda uma gama de seres que ainda se alojam em sua mente, levando-o a desejar ser apenas o sonhador que foi na infância que nem sempre sabia onde terminava a ficção e começava a vida real.

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