O recorrente “problema Trotski”


Mauricio Gonçalves, graduado e pós-graduado em Sociologia e Ciências Sociais.
Trótski: exílio e assassinato de um revolucionário
Bertrand M. Patenaude
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2014, 403p.

I
O filme The assassination of Trotsky (1972), de Joseph Losey, com Richard Burton e Alain Delon, mostra os últimos dias do revolucionário russo em Coyoacán (México). Com um roteiro que privilegia a sequência cronológica dos eventos, a película busca aproximar-se da personalidade e das ideias de Trotski a partir de sua rotina na prisão domiciliar da Avenida Viena, ao mesmo tempo em que tenta retratar a tensão psicológica de Ramón Mercader até o desfecho de seu crime em 20 de agosto de 1940. Há alguns anos o autor cubano Leonardo Padura com o seu O homem que amava os cachorros (2009) intentou algo parecido, mas acrescentou um elemento que enriqueceu e deu à obra “meio ficcional” uma repercussão mais geral e duradoura: as viagens de ida e volta entre as histórias pessoais dos protagonistas (Trotski, Mercader e Ivan) relacionam-se aos dilemas da época e nos levam a uma reflexão profunda sobre os caminhos e descaminhos da luta pela “égaliberté” [2] e pelo socialismo, e consequentemente sobre o próprio século 20 de conjunto.

Bertrand M. Patenaude, professor na Universidade de Stanford (EUA), revisita ainda uma vez mais com o seu Trótski: exílio e assassinato de um revolucionário (2009) os últimos anos de vida de Lev Bronstein, mas o faz com uma estrutura narrativa que poderia posicioná-lo entre o filme de Losey e o livro de Padura. Aproxima-se do filme de Losey ao centrar-se nos últimos anos de Trotski no México – a película trabalha os últimos meses. E do livro de Padura pelo fato de realizar tanto as remissões históricas a partir dessa primeira camada quanto de assemelhar-se a um gênero que poderíamos chamar de “thriller policial” ou “romance de suspense”. Trata-se de uma biografia dos derradeiros anos de exílio de Trotski no país de Emiliano Zapata – de sua chegada ao porto mexicano de Tampico a bordo do petroleiro norueguês Ruth ao seu último dia: entre 9 de janeiro de 1937 e 21 de agosto de 1940.

II
A biografia de Patenaude inscreve-se em uma sequência relativamente extensa de obras do gênero sobre Trotski: de sua autobiografia, Minha vida (1930), passando pela trilogia de Isaac Deutscher – O profeta armadoO profeta desarmado e O profeta banido (1954, 1959, 1963); Victor Serge –Trotsky: vida e morte (1951); Paulo Leminski – Trótski, a paixão segundo a revolução (1986); Pierre Broué – Trotsky (1988); Dmitri Volkogonov –Trotski: o eterno revolucionário (1996); Jean-Jacques Marie – Trotsky (1998) e Trotsky: revolucionário sem fronteiras (2006); entre várias outras. Em suma, da década de 1940 aos dias de hoje parece haver um ininterrupto interesse pela “tragédia de Trotski”. Em algumas vezes tal interesse tem o objetivo de esconjurar um fantasma que teima em permanecer por perto, à espreita e pronto para entrar em ação. É o que acontece com a biografia em tela. O autor é atraído pelo drama histórico do fundador do Exército Vermelho. Atração que pode ser entendida a partir do “problema Trotski”, adequadamente resumido por Mendonça:
Como líder político, Trotsky entraria para a história, fundamentalmente, como o grande opositor do stalinismo; no entanto, tal oposição a Stalin, em vez de traduzir-se numa rejeição do bolchevismo e na elaboração de uma interpretação mais ou menos alternativa do marxismo, fez-se, pelo contrário, em nome de uma reabilitação do bolchevismo e do leninismo. Diferentemente do “marxismo ocidental” da Escola de Frankfurt, Karl Korsch e Gramsci, que, ao elaborarem suas interpretações alternativas de Marx, o faziam de forma a rejeitar em alguma medida o valor histórico da Revolução Russa, em Trotsky, tudo gira em torno da defesa do valor universal da experiência russa de 1917. Mas, diferentemente também de outros marxistas ocidentais, como Lukács e Althusser, para os quais a defesa do leninismo estava associada à defesa do regime soviético efetivamente existente como portador, em alguma medida, da tradição revolucionária de Outubro, para Trotsky, a defesa da Revolução de Outubro exigia a rejeição completa e total do stalinismo. O resultado é a posição sui generis da obra trotskista: contra o stalinismo – mas herdeira do marxismo “oriental”; pelo bolchevismo – e também contra o regime soviético efetivamente existente. O resultado seria que Trotsky seria rejeitado por ambas as tradições marxistas – a “ocidental” assim como a “oriental” [3].
Patenaude vai então tentar responder a esses incômodos vinculando a trajetória de Trotski aos seus ataques ao “boneco de palha” (“espantalho”) marxiano/marxista: a teoria social de Marx (e dos marxistas) é um determinismo econômico (p.246), sua concepção de história é teleológica, progressista, otimista e fechada (p.65) e sua doutrina política é incompatível com os valores democráticos – a revolução de Outubro foi um “golpe de Estado” (p.33, p.90, p.243, p.316), e sua filosofia pretensamente materialista é de fato mobilizada por valores absolutos e idealistas (p.65 e p.343).

Ou seja, ainda que Trotski seja para o autor uma figura interessante e enigmática – uma vez que nele convivem vários: o intransigente opositor político de Stalin; o autor de livros marxistas “não ortodoxos” como Literatura e revolução e História da revolução russa; o líder e organizador de um exército e defensor do “Terror Vermelho” durante a guerra civil; o intelectual orgânico que defende um “militantismo cultural” que tenha o cotidiano popular (família, religião, entretenimento, trabalho, etc.) como objeto de conhecimento e transformação consciente, indicador efetivo da construção de uma nova cultura e sociabilidade (Questões do modo de vida); etc. –, apesar da complexidade da personalidade do biografado, e mesmo admirando alguns de seus traços, o retrato que nos aparece ao fim da tela pintada por Patenaude é o de um revolucionário (certamente um dos mais exemplares) que como tantos outros do século 20 acreditaram, lutaram e morreram por uma miragem: Trotski foi uma daquelas criaturas com grande capacidade para sacrifícios, mas que desprezava as conquistas civilizatório-democráticas do Ocidente e que se aferrou a verdades (e a uma fé) transcendentais, ilusórias e utópicas (irrealizáveis). As últimas páginas do livro são dedicadas à exposição de depoimentos de ex-militantes trotskistas que abandonaram suas crenças políticas anteriores, e que são tomados como representativos do esclarecimento político adquirido pelo “realismo pragmático” do presente, uma vez que perceberam (finalmente!) de que maneira as ações de Trotski “(...) como líder bolchevique o transformaram num prisioneiro do mito de Outubro como uma revolução dos trabalhadores e de que maneira em seu último exílio ele transformara seus seguidores em prisioneiros desse mito também. (...) Otimismo era a única coisa que ele tinha de verdade” (p.343).

A temporalidade com que Patenaude trabalha é portanto retrospectiva e “acabada”. A morte de Trotski em 1940 e o sentido de sua vida nada têm a nos dizer sobre o presente, sendo seus descaminhos objeto de mera curiosidade histórica.

III
Talvez os aspectos mais válidos do livro, e onde ele mais foi beneficiado pelas novas fontes historiográficas e bibliográficas disponíveis a partir da década de 1990, sejam as descrições e os detalhes que apresenta sobre o plano orquestrado pelo serviço secreto staliniano, com a participação direta do “guia genial dos povos” (sic!), para assassinar Trotski: a Operação Utka (Pato). Neste ponto, Patenaude se valeu principalmente de materiais russos e estadunidenses, muitos deles relacionados a pesquisas e depoimentos de e sobre espiões e ex-funcionários da polícia política soviética (KGB e depois NKVD): Kolpadiki e Prokhorov [4], Andrew e Mitrokhin [5], Nikandrov [6], Kern [7], Sudoplatov [8], entre outros.

É aqui que podemos perceber como a vida e o destino de Trotski superam a ficção: as personagens envolvidas e mobilizadas para eliminar “o Pato” fazem parte de uma intrincada e complexa rede internacional, uma guerra de um Estado-nação contra um homem e seu pequeno núcleo de ativistas, que partia do próprio Josef Stalin, seguia com o chefe do NKVD Lavrenti Beria, continuava com Pavel Sudoplatov, designado o chefe da missão para eliminar Trotski, passava ainda por Iosif Grigulevitch e Leonid Eitingon em solo mexicano e finalmente findava com Caridad e Ramón Mercader, por um lado (ramificação da Operação Pato conhecida como “A mãe”), e David Alfaro Siqueiros, por outro (a outra ramificação, denominada “Cavalo”). Havia ainda bases europeias e estadunidenses que conseguiram infiltrar agentes – Mark Zborowski, conhecido como “Étienne” ou “Tulip” e Robert Sheldon Harte, ambos tidos como militantes trotskistas – nos círculos pessoais de convivência e militância respectivamente de Leon Sedov na Europa (o filho de Trotski que cuidava das tarefas organizativas da IV Internacional por lá) e do “Velho” em Coyoacán.

Além deles, informações, provas materiais e memórias de oficiais desertores do NKVD também servem de base para a produção do livro, como as de Walter Krivitski e Alexander Orlov, por exemplo.

IV
Esses elementos, indispensáveis para um bom “thriller policial”, todavia, não são acompanhados de uma satisfatória análise histórica e social. A inteligibilidade da práxis e da vida de Trotski é mais ou menos deduzida do “tipo psicológico” que é produzido pela ligação incondicional e dogmática às características teóricas e filosóficas atribuídas ao marxismo – descritas mais acima. Aqui ele não poderia estar mais distante da biografia exemplar de Deutscher, ou de O homem que amava os cachorros, de Padura.

A camada literária policial mais superficial que cobre toda a trama não é internamente nucleada por interações sociais que a ponham em perspectiva adequada e não se apoia numa interpretação histórica, sociológica ou política mais ou menos sólida. Além disso, o método pelo qual ele apresenta a trajetória de Trotski é deficiente: são os seus traços de personalidade – o mesmo acontecendo com Stalin, fundamental ou redutoramente mobilizado por “inveja, ódio e vingança” (p.199) em seu intento de assassinar seu mais intransigente opositor – que dão forma até para explicações de ordem mais abrangente. Uma espécie de prioridade explicativa para as dimensões individuais sobre a história e a política em transformação.

Assim, qual a contribuição da obra para as ciências sociais e/ou humanas? Trótski: exílio e assassinato de um revolucionário tem pouco a oferecer: privilegiando os aspectos subjetivo-individuais do autor de A revolução desfigurada, é incapaz de proporcionar uma narrativa que atribua sentido global à sua tragédia. O livro de Patenaude pode ter algum apelo como um gênero de suspense, centrado nos últimos anos e na operação para assassinar Trotski, e mesmo como mais uma peça no mercado editorial, mas não consegue produzir uma explicação que realize uma interação dialética entre o destino pessoal de Trotski e os destinos mais amplos da luta pelo socialismo. Ou seja, não conseguimos perceber como o individual se articula com o social em uma inteligibilidade para a totalidade da narrativa. A Operação Pato não é relacionada, ou o é de maneira bastante deficiente, com o seu contexto histórico de fundo, que é o que finalmente a determina. Diferentemente, este fazer teórico dialético é perceptível em Deutscher, por exemplo, exatamente quando mostra que:
Deve mais uma vez ser enfatizado, que até o final, tanto a fraqueza como a força de Trotski estavam enraizadas no marxismo clássico. Suas derrotas sintetizaram o predicamento básico pelo qual o marxismo clássico foi atacado como doutrina e movimento: a discrepância e o divórcio entre a visão marxista do desenvolvimento revolucionário e o curso real da luta de classes e da revolução [9].

Slavoj Zizek escreveu sobre a necessidade de repetir Lenin em Às portas da revolução (2002) [10]. Repetir não é exatamente mimetizar mecanicamente o que foi historicamente feito. Repetir um autor ou acontecimento é captar o seu “núcleo racional” e atualizá-lo para os dias de hoje como alternativa à barbárie do capital em crescimento, como tarefas que foram iniciadas, mas que não puderam ser “completadas” ou desenvolvidas positivamente (e que continuam “pendentes” no presente). Há algo de historicamente representativo na trajetória e morte de Lev Davidovitch Bronstein que se vincula aos dilemas da construção socialista e humanista na “Era dos extremos”. Patenaude parece ter escrito sua biografia com o objetivo implícito de acreditar (e nos fazer acreditar) que a vida e o sentido da luta de Trotski, por mais interessante e trágico que tenha sido, permaneceram irrevogavelmente no passado e que ele não deve, mas mais importante, não pode “ser repetido”.

Se o século 20 deu início a questionamentos estruturais e práticos ao domínio do capital, e se Trotski os percebeu e os materializou em sua práxis revolucionária tanto antes –  Balanço e perspectivas – quanto durante a Revolução Russa – A revolução permanente e O que é e para onde vai a URSS –, interpretando e desvelando em presença a realidade histórica cambiante, ele se configura como um clássico do marxismo no século 20. Por isso, o legado que deixou contém um elemento de “vitória na derrota” (Deutscher).

Certamente não é possível criar soluções para os difíceis e quase impeditivos problemas derivados da entrada na época de crise estrutural do capital (Mészáros) apenas com Trotski. Mas já que esta crise abre um período histórico de transição onde “(...) não há mais lugar para reformas sociais sistemáticas nem para a elevação do nível de vida das massas; quando cada reivindicação séria do proletariado, e mesmo cada reivindicação progressiva da pequena burguesia, conduzem invariavelmente para além dos limites da propriedade capitalista e do Estado burguês (...)” [11], desenvolve-se a tendência de superação do divórcio entre uma revolução em sentido totalizante – civilizatória, mundial e superadora da pré-história da humanidade (Marx) – e toda uma época. Então, “repeti-lo” se converterá numa operação provavelmente inescapável, pois ao expor as principais linhas de força do desenvolvimento do capitalismo no século 20 – através de uma abordagem dialética original (internacionalismo analítico, desenvolvimento desigual e combinado, revolução permanente, etc.) e de uma metodologia política inovadora (mediações de um programa político transitório) –, ele se mostrou em seu tempo como um teórico da transição por excelência. São razões como essas que nos ajudam a entender que Bertrand M. Patenaude não poderia ter feito uma análise mais equivocada – e mesmo bastante superficial – acerca do “problema Trotski”.

Fonte: http://www.blogsintese.com.br/2016/07/o-recorrente-problema-trotski.html#more
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Notas
Publicada pela primeira vez na Revista História & Luta de Classes, ano 11,n.21, março/2016. Na web, inicialmente apareceu em https://lavrapalavra.com/
[2] Neologismo ou junção das palavras francesas égalite e liberté, respectivamente igualdade e liberdade.
[3] Mendonça, Carlos Eduardo Rebello de. Trotsky e a revolução permanente. Rio de Janeiro: Garamond, 2014, p.17-8.
[4] Kolpadiki, Aleksandr e Prokhorov, Dmitri. KGB: Spetsoperatsii soveskoi razvedki. Moscou: Olimp-Astrel, 2000.[5] Andrew, Christopher e Mitrokhin, Vasili. The sword and the shield: the Mitrokhin archive and the secret history of the KGB. Nova York: Basic Books, 2001.
[6] Nikandrov, Nil. GrilevitchRazvedchik, “kotoromu vezlo”. Moscou: Molodaya Gvardia, 2005.
[7] Kern, Gary. A death in Washington: Walter G. Krivitsky and the Stalin terror. Nova York: Enigma Books, 2003.
[8] Sudoplatov, Pavel e Sudoplatov, Anatoli. Special tasks: the memoires of an unwanted witness – a soviet spymaster. Nova York: Little, Brown and Company, 1994.
[9] Deutscher, IsaacTrotski – O profeta banido (1929-1940)Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p.527.
[10] Zizek, Slavoj. Às portas da revolução. Boitempo: São Paulo, 2005.
[11] Trotsky, Leon. O programa de transição para a revolução socialista. São Paulo: Sundermann, 2008, p.16-18.

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