Ecossocialismo é alternativa à crise


Michael Löwy*
Texto publicado na edição 48 da revista Democracia Viva

O atual modelo de desenvolvimento está em crise. É ao mesmo tempo uma crise econômica e uma crise ecológica. Ambas resultam do mesmo fenômeno: um sistema que transforma tudo – a terra, a água, o ar que respiramos, os seres humanos – em mercadoria e que não conhece outro critério a não ser a expansão dos negócios e a acumulação de lucro. As duas crises são aspectos interligados de uma crise mais geral, a crise da civilização capitalista industrial moderna.

O discurso hegemônico atual sobre o “desenvolvimento sustentável”, que se manifesta, entre outros contextos, no processo oficial da Rio+20, é incapaz de propor alternativas efetivas, porque se situa nos limites impostos pela economia de mercado, isto é, pelas regras do lucro, da feroz competição e da acumulação ilimitada, que são inerentes ao sistema capitalista.

Os cientistas nos preveniram: se continua o business as usual, no futuro próximo enfrentaremos desastres sem precedente na história humana. O que nos propõe o Rascunho Zero da Rio+20 é um business as usual verde, uma folha de parreira verde para tentar esconder a nudez de um sistema intrinsecamente perverso e destruidor.

Há alguns anos atrás, quando se falava dos perigos de catástrofes ecológicas, os autores se referiam ao futuro dos nossos netos ou bisnetos, a algo que estaria no futuro distante, dentro de cem anos. Agora, porém, os processos de devastação da natureza, de deterioração do meio ambiente e de mudança climática se aceleraram a tal ponto que não estamos mais discutindo um futuro a longo prazo. Estamos discutindoprocessos que já estão em curso. A catástrofe já começou, essa é a realidade. E realmente estamos numa corrida contra o tempo para tentar impedir, brecar, conter esse processo desastroso.

Quais são os sinais que mostram o caráter cada vez mais destrutivo do processo de acumulação capitalista em escala global? O mais óbvio e perigoso é a mudança climática, um processo que resulta dos gases do efeito de estufa emitidos pela indústria, pelo agronegócio e pelo sistema de transporte das sociedades capitalistas modernas. Essa mudança, que já começou, terá como resultado não só o aumento da temperatura em todo planeta, mas a desertificação de setores inteiros de vários continentes, a elevação do nível do mar, o desaparecimento de cidades marítimas – Veneza, Asmterdã, Hong-Kong, Rio de Janeiro. Uma série de catástrofes que se colocam no horizonte dentro de – não se sabe – 20, 30, 40, isto é, no futuro próximo.

A questão do capitalismo
Tudo isso não resulta do excesso de população, como dizem alguns, nem da tecnologia em si, abstratamente, ou tampouco da má vontade do gênero humano. Trata-se de algo muito concreto: as consequências do processo de acumulação do capital, em particular, na sua forma atual, da globalização neoliberal sob a hegemonia do império norte-americano. Esse é o elemento essencial, motor dessa lógica destrutiva que corresponde à necessidade de expansão ilimitada – aquilo que Hegel chamava de “má infinitude” –, um processo infinito de acumulação de mercadorias, acumulação do capital, acumulação do lucro, inerentes à lógica do capital.

A questão ecológica é a questão do capitalismo. Para parafrasear uma observação do filósofo da Escola de Frankfurt Max Horkheimer – “se você não quiser falar do capitalismo, é melhor não falar do fascismo” –, eu diria também: se você não quer falar do capitalismo, não adianta falar do meio ambiente, porque a destruição, a devastação, o envenenamento ambiental são produtos do processo de acumulação do capital. Logo, a questão que se coloca é a de uma alternativa, mas de uma alternativa que seja radical. As tentativas de soluções moderadas se revelam completamente incapazes de enfrentar esse processo catastrófico. O chamado Tratado de Kioto está muito aquém, quase infinitamente aquém, do que seria o necessário, e, ainda assim, o governo norte-americano, principal poluidor planetário, recusa-se a assinar.

O Tratado de Kioto, na realidade, propõe resolver o problema das emissões de gases do efeito estufa por intermédio do assim chamado “mercado dos direitos de poluir”. As empresas que emitem mais CO2 vão comprar de outras que poluem menos direitos de emissão. Isso seria “a solução” do efeito estufa. Obviamente, as soluções que aceitam as regras do jogo capitalista, que se adaptam às regras do mercado, não são soluções, porque são incapazes de enfrentar a crise ambiental, uma crise que se transforma, devido à mudança climática, numa crise de sobrevivência da espécie humana.

A Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de dezembro de 2009 em Copenhague foi mais um exemplo clamoroso da incapacidade – ou da falta de interesse – das potências capitalistas para enfrentar o dramático desafio do aquecimento global. A montanha de Copenhague pariu um rato, uma miserável declaração política, sem nenhum compromisso concreto e cifrado de redução das emissões de gases do efeito de estufa. Infelizmente, pode-se prever que o resultado da Rio+20 não será diferente.

Ecossocialismo
Precisamos pensar, portanto, em alternativas radicais, alternativas que coloquem um outro horizonte histórico, mais além do capitalismo, mais além das regras de acumulação capitalista e da lógica do lucro e da mercadoria. Como uma alternativa radical é aquela que vai à raiz do problema, essa alternativa é oecossocialismo, uma proposta estratégica que resulta da convergência entre a reflexão ecológica e a reflexão socialista, a reflexão marxista. Existe hoje em escala mundial uma corrente ecossocialista. Há um movimento ecossocialista internacional, que, recentemente, por ocasião do Fórum Social Mundial de Belém, em janeiro de 2009, publicou uma declaração sobre a mudança climática. Existe no Brasil uma rede ecossocialista que publicou um manifesto, há alguns anos.

O ecossocialismo é uma reflexão crítica. Em primeiro lugar, crítica à ecologia não socialista, à ecologia capitalista ou reformista, que considera possível reformar o capitalismo, atingir um capitalismo mais verde, mais respeitoso ao meio ambiente. Trata-se da crítica e da busca de superação dessa ecologia reformista, limitada, que não aceita a perspectiva socialista, que não se relaciona com o processo da luta de classes, que não coloca a questão da propriedade dos meios de produção. Mas o ecossocialismo é também uma crítica ao socialismo não ecológico, por exemplo, da União Soviética, onde a perspectiva socialista se perdeu rapidamente com o processo de burocratização, e o resultado foi um processo de industrialização tremendamente destruidor do meio ambiente.

Desse modo, o ecossocialismo implica numa crítica profunda das experiências e das concepções tecnocráticas, burocráticas e não ecológicas de construção do socialismo. Isso nos exige também uma reflexão crítica sobre a herança marxista, o pensamento e a tradição marxista, sobre a questão do meio ambiente. Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo um produtivista, tanto quanto os capitalistas. Tal crítica me parece completamente equivocada. Ao fazer a crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais radical à lógica produtivista do capitalismo, à idéia de que a produção de mais e mais mercadorias é o objetivo fundamental da economia e da sociedade. O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para participar da vida política e social. Portanto, Marx fornece as armas para uma crítica radical do produtivismo e, notadamente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de “O Capital”, ele explica como o capitalismo esgota não só as energias do trabalhador, mas também as próprias forças da Terra, esgotando as riquezas naturais, destruindo o próprio planeta. Assim, essa perspectiva está presente nos escritos de Marx, embora não tenha sido suficientemente desenvolvida.

O problema é que a afirmação de Marx de que o socialismo é a solução da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção foi interpretado por muitos marxistas de forma mecânica: o crescimento das forças produtivas do capitalismo se choca com os limites que são as relações de produção burguesas – a propriedade privada dos meios de produção – e portanto a tarefa da revolução socialista seria simplesmente destruir as relações de produção existentes, a propriedade privada, e permitir assim o livre desenvolvimento das forças produtivas. Parece-me que essa interpretação deve ser criticada, porque ela pressupõe que as forças produtivas sejam algo neutro. O capitalismo as teria desenvolvido até um certo ponto e não pôde ir além porque foi impedido por aquela barreira, aquele obstáculo que deve ser afastado para permitir uma expansão ilimitada. Essa visão deixa de lado o fato de que as forças produtivas existentes não são neutras. Elas são capitalistas em sua dinâmica e seu funcionamento e portanto são destruidoras da saúde do trabalhador, bem como do meio ambiente. A própria estrutura do processo produtivo, da tecnologia e da reflexão científica a serviço dessa tecnologia e desse aparelho produtivo é inteiramente impregnada pela lógica do capitalismo e leva inevitavelmente à destruiçâo dos equilíbrios ecologicos do planeta.

O que se necessita, por conseguinte, é uma visão muito mais radical e profunda do que seja uma revolução socialista. Trata-se de transformar não só as relações de produção, as relações de propriedade, mas a própria estrutura das forças produtivas, a estrutura do aparelho produtivo. Isto é, na minha concepção, uma das idéias fundamentais do ecossocialismo. Há que se aplicar ao aparelho produtivo a mesma lógica que Marx aplicava ao aparelho de Estado a partir da experiência da Comuna de Paris, quando ele diz o seguinte: os trabalhadores não podem apropriar-se do aparelho de Estado burguês e usá-lo a serviço do proletariado, não é possível, porque o aparelho de Estado burguês nunca vai estar a serviço dos trabalhadores. Então, trata-se de destruir esse aparelho de Estado e criar um outro tipo de poder. Essa lógica tem que ser aplicada também ao aparelho produtivo: ele tem que ser destruído ou ao menos radicalmente transformado. Ele não pode ser simplesmente apropriado pelos trabalhadores e posto a trabalhar a seu serviço. Precisa ser estruturalmente transformado.

A título de exemplo, o sistema produtivo capitalista funciona com base em fontes de energia fósseis, responsáveis pelo aquecimento global – o carvão e o petróleo -, de modo que um processo de transição ao socialismo só é possível quando houver a substituição dessas formas de energia pelas energias renováveis, que são a água, o vento e, sobretudo, a energia solar. Por isso, o ecossocialismo implica numa revolução do processo de produção das fontes energéticas. É impossível separar a ideia de socialismo, de uma nova sociedade, da ideia de novas fontes de energia, em particular do sol – alguns ecossocialistas falam do “comunismo solar”, pois entre o calor, a energia do sol, o socialismo e o comunismo haveria uma espécie de afinidade eletiva.

Mas não basta tampouco transformar o aparelho produtivo, é necessário transformar também o estilo, o padrão de consumo, todo o modo de vida em torno do consumo, que é o padrão do capitalismo baseado na produção massiva de objetos artificiais, inúteis e mesmo perigosos. A lista de produtos, mercadorias e atividades empresariais, que são inúteis e nocivas aos indivíduos, é imensa. Tomemos um exemplo evidente: a publicidade. A publicidade é um desperdício monumental de energia humana, de trabalho. Árvores destruídas para gasto de papel, eletricidade e tudo isso para convencer o consumidor de que o sabonete x é melhor que o sabonete y. Eis um exemplo evidente do desperdício capitalista. Logo, se trata de criar um novo modo de consumo e um novo modo de vida, baseado na satisfação das verdadeiras necessidades sociais, que é algo completamente diferente das pretensas e falsas necessidades produzidas artificialmente pela publicidade capitalista.

Transição
Uma reorganização do conjunto do modo de produção e de consumo é necessária, baseada em critérios exteriores ao mercado capitalista: as necessidades reais da população e a defesa do equilíbrio ecológico. Isso significa uma economia de transição ao socialismo, na qual a própria população decide, num processo de planificação democrática, as prioridades e os investimentos.

Essa transição conduziria não só a um novo modo de produção e a uma sociedade mais igualitária, mais solidária e mais democrática, mas também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização, ecossocialista, mais além do reino do dinheiro, dos hábitos de consumo artificialmente induzidos pela publicidade e da produção ao infinito de mercadorias inúteis.

Se ficarmos só nisso, porém, seremos criticados como utópicos. Os utópicos são aqueles que apresentam uma bela perspectiva de futuro e a imagem de uma outra sociedade. Isso é obviamente necessário, mas não é suficiente. O ecossocialismo não é só a perspectiva de uma nova civilização, uma civilização da solidariedade – no sentido profundo da palavra, solidariedade entre os humanos, mas também com a natureza –, como também uma estratégia de luta, desde já, aqui e agora. Assim, o ecossocialismo é uma estratégia de convergência das lutas sociais e ambientais, das lutas de classe e das lutas ecológicas, contra o inimigo comum que são as políticas neoliberais, a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o imperialismo norte-americano, o capitalismo global. Este é o inimigo comum dos dois movimentos, o movimento ambiental e o movimento social. Não se trata de uma abstração, há muitos exemplos. No Brasil, como um belo exemplo do que é uma luta ecossocialista, tivemos o combate heróico de Chico Mendes, que pagou com a sua vida o seu compromisso de luta com os oprimidos.

Como essa, há muitas outras lutas. Seja no Brasil, em outros países da América Latina e no mundo inteiro, cada vez mais se dá essa convergência. Mas ela não ocorre espontaneamente, tem que ser organizada. Essa me parece ser a resposta ao desafio, a perspectiva radical de uma transformação revolucionária da sociedade para mais além do capitalismo. Sabendo que o capitalismo não vai desaparecer como vítima de suas contradições, como dizem alguns supostos marxistas (já um grande pensador marxista do começo do século 20 Walter Bejamin dizia que, se temos uma lição a aprender, é que o capitalismo não vai morrer de morte natural, será necessário acabar com ele). Precisamos de uma perspectiva de luta contra o capitalismo, de um paradigma de civilização alternativo e de uma estratégia de convergência das lutas sociais e ambientais, desde agora plantando as sementes dessa nova sociedade.

A alternativa ecossocialista implica, em última análise, numa transformação revolucionária da sociedade. Mas o que significa revolução? Walter Benjamin escrevia o seguinte em 1940: “As revoluções não são as locomotivas da história, como pensávamos. Elas são o ato da humanidade, que viaja nesse trem, de tirar os freios de urgência”. O trem da civilização capitalista, do qual somos todos passageiros, está avançando, com uma velocidade crescente, em direção a um abismo, à catástrofe ecológica. Precisamos puxar os freios de urgência, antes que seja tarde demais.

* Michael Löwy é sóciologo e diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), na França. É autor de “Ecologia e Socialismo” (Cortez, 2005) e organizador da coletânea “Revoluções” (Boitempo, 2009).
Fonte: http://www.canalibase.org.br/a-alternativa-ecossocialista/

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