Contos X - Morte (III)

Parte I
Parte II
 
Ainda pensava em tudo que tinha acontecido nas últimas 48 horas quando o telefone tocou, era o mesmo colega que o havia deixado na rodovia e tinha voltado com receio pela própria vida. O diretor da empresa, duas noites antes, havia lhe dito por telefone que trabalhava com aquele funcionário há pelo menos 15 anos, e que nunca duvidou da fidelidade dele para com a empresa e que chegava a considerá-lo amigo, mas que naquela noite, tinha reconsiderado esse seu conceito, visto que ele que tinha apenas 06 meses de empresa e demonstrava mais comprometimento e fidelidade que um funcionário de 15 anos. O colega, que não estava ciente desta conversa, informava-o que o nível de água na cidade próxima àquela que ele tinha evacuado no dia anterior estava baixando e que seria possível resgatar alguns objetos com condições de comercialização, ele sabia que a intenção do colega era limpar a própria imagem que estava desgastada com o diretor da empresa, e sabia que seria usado inescrupulosamente para que o objetivo do outro fosse alcançado, mesmo à contragosto, sabia da imprudência e da ineficácia da operação, dirigiu-se à sede da empresa, pensava como iria efetuar uma nova operação de evacuação, desta vez seria muito mais difícil a loja estava tomada de lama, e a quantidade de veículos disponíveis era bem menor que duas noites antes.

Contactou alguns funcionários, escolheu aqueles que não haviam participado da operação na madrugada do sábado, e pediu que fossem para a empresa, precisava deles, ligou para um motorista que voltava do estado vizinho e pediu que o mesmo fosse para a loja da cidade inundada, ao todo seriam três caminhões, poucos, mas era alguma coisa.

Pegou dinheiro, alguns pacotes de biscoito, queijo, e outros itens para lanche rápido que a diretora da empresa tinha comprado para que ele levasse, e assim pudesse minimizar, de alguma forma, a fome que os funcionários daquela cidade estavam passando, além disso comprou botas de borracha e água mineral, itens extremamente necessários para aquela ocasião, um garrafão de água estava sendo vendido com mil porcento de aumento, muitos, inescrupulosamente, se aproveitavam do caos para auferirem lucros exorbitantes.

Enviou um motorista com um ajudante na frente e seguiu noutro caminhão com um motorista novato e inexperiente, informou a cidade que estavam indo e entrou na cabine do veículo, seus ossos doíam, seu corpo estava cansado, sua mente inquieta, acomodou-se no banco do veículo, pegou o telefone móvel e efetuou diversas ligações para os demais colegas que estavam envolvidos naquela operação e para alguns policiais que estavam de folga e que fariam a segurança da loja durante a operação de carregamento dos caminhões, a preocupação se justificava, já que as lojas dos concorrentes e de outros ramos comerciais foram saqueadas.

Quando deu por si, o motorista já havia tomado uma rodovia estadual, ao invés da federal que os deixaria na entrada da cidade, enquanto que a estadual os deixaria na cidade mais próxima. Como não tinha mais o que fazer, orientou ao motorista que seguisse sem paradas. Quando chegaram na cidade que ele tinha estado no dia anterior, vizinha à cidade almejada, descobriu, por meio de motoristas que viajavam no contra fluxo que a via de acesso que eles tencionavam tomar estava interrompida, a ponte corria riscos de desabar, voltaram mais de 15 quilômetros e tentaram acessar a rodovia federal por meio de outra cidade, mas como a mesma estava semi inundada, também não foi possível.

Dirigiu-se até uma ponte que tivera o tráfego proibido pela polícia, que estava próxima da cidade que ele queria chegar e ligou para seus colegas e pediu que o fossem buscar, pois poderia passar à pé, mas com o caminhão não, este teria que se deslocar mais ou menos uns cinquenta quilômetros de volta e acessar a rodovia federal. Foram buscá-lo numa camionete, atravessou junto com os colegas a ponte à pé, levando os itens que trouxera, colocaram tudo na Pickup, ele então mandou que o motorista voltasse, e com ele, um funcionário da loja, que conhecia bem a região, para guiá-lo.

Entrou na camionete e seguiram em direção à cidade que ainda estava perplexa com o caos que se abatera sobre ela. O cenário era dantesco, na entrada da cidade, havia um animal de grande porte morto sobre a rodovia, quando se aproximaram um pouco mais, pode perceber que era uma vaca, morta por afogamento, não conseguiu imaginar como ela tinha parado ali.

Mas não foi apenas isso que o estarreceu, o cenário da cidade como um todo era caótico, lembrava um filme de catástrofe, parecia que um tufão, furação ou coisa que o valha, tinha passado por ali. A ponte principal, que cortava a cidade, e que ligava os estados do norte com os estados do sul, caíra, dentro de uma cratera que se formara com a erosão, podia se ver uma carreta, veículo de grande porte, tombado, completamente destruída. Lama, sujeira, prédios caídos, destruição, lojas saqueadas, por onde quer que olhasse, só via desespero e medo.

Quando chegou à loja, numa das ruas principais da cidade, conseguiu verificar a altura que o nível da água havia alcançado, pouco mais de três metros, as paredes ainda guardavam as marcas do dilúvio inclemente do qual fora vítima dois dias antes.

Não conseguia ver direito, não havia energia na cidade, a loja tinha o pé direito baixo, não tinha uma boa visibilidade natural, mas pelo que avaliou, o estrago tinha sido grande, lhe disseram que um caminhão, com produtos enlameados, já havia sido carregado e ido embora, outro estava sendo carregado.

Em silêncio, não era momento para divergências, discordou da operação como estava sendo feita, a água não havia alcançado o estoque que estava localizado no segundo e terceiro andar da loja, logo, todos os produtos estavam enxutos, eles deveriam ser priorizados, não os que estavam enlameados, alguns, visivelmente, danificados definitivamente. Como não era o coordenador daquela operação, resolveu apoiar como estava sendo feita, naquela circunstancia qualquer colocação sua seria tomada como um crítica não construtiva, queria evitar guerras de poderes e vaidades.

Quando o ocaso já começava, e a escuridão se avizinhava, ouviram um barulho enorme, todos correram para a rua para tomarem conhecimento do que era. O cenário lembrava Ensaio sobre a cegueira, foi o que lhe veio à mente assim que assomou à rua, uma turba, não saberia precisar quantos, mas, certamente que mais de cem pessoas, sujas, descalças, desesperadas, em desabalada carreira gritava que a represa que ainda continha a água da chuva, havia rompido e que estaria naquele momento descendo para a cidade, todos corriam buscando uma saída, não lutavam mais por bens ou posses, lutavam pela vida.

Quando se deu conta, viu que os policiais que faziam a segurança da loja contra saqueadores haviam fugido, o caminhão estava estacionado defronte à loja, com a frente voltada para uma rua por onde a água inundaria a cidade, detrás do mesmo estava a camionete que eles usaram para chegar ali, gritou para o mesmo colega que o havia abandonado dois dias antes, que tirasse a Pickup dali, pois o motorista teria que manobrar o veículo. Enquanto isso com os outros quatros funcionários que ficaram, os demais fugiram com medo e desespero, começou a fechar as portas corrediças da loja, as engrenagens estavam cheias de lama, não era tarefa fácil.

Quando chegou na rua, percebeu que o colega havia fugido mais uma vez, não levara ninguém com ele, teve que colocar na cabine do caminhão o ajudante, o gerente da loja e o supervisor daquela região, este era incapaz de esboçar qualquer reação, estava catatônico e suando frio. Bateu na lateral do veículo e mandou o motorista sair, gritou: - Se vamos morrer, vamos morrer pelo menos tentando.

Pegou o telefone móvel, sabia que só teria como fazer uma ligação, e tinha em mente apenas três pessoas que pudesse falar naquele momento: sua mãe, que não tinha estrutura para receber uma ligação como aquela, sua filha, que ele não ligaria, pois era uma adolescente que não saberia lidar com a despedida do pai de forma tão trágica, e a esposa, companheira de cinco anos, esta era a única que saberia lidar com uma despedida, sabia que era injusto, desesperador, mas ligou, ligou porque para ele era confortador, falar com alguém que se importava de fato com ele naquele momento.

Falou calmo, sereno e equilibrado, contou o que estava acontecendo, e que estava ligando para despedir-se, notou que o desespero se abatera do outro lado da ligação, mas não tinha o que fazer mais, tinha que ainda lutar pela vida nos últimos segundos ou minutos que restassem, e ele ainda tinha os colegas, sentiu-se responsável por eles, desligou o telefone resoluto, dependurou-se na porta do caminhão e mandou que o motorista fosse embora, gritava para que as pessoas saíssem da frente.

Era um verdadeiro pandemônio, poucos metros à frente, desceu do caminhão para ajudar o motorista a manobrar e andar um pequeno trecho em marcha ré, para poder passar de novo na frente da loja e tentar sair daquela cidade, daquele inferno.

Ouviu um barulho estranho, voltou a cabeça e viu uma parede de uns cinco metros de altura se deslocando, por conta da escuridão não conseguiu identificar logo do que se tratava, poucos segundos depois viu o que era de fato, era uma onda gigante, uma tromba d'água que se aproximava, virou-se para olhá-la melhor. Ela o encontrou de pé, junto ao caminhão, o tolheu de frente, envolvendo-o como um manto envolve um corpo, não correu, não esboçou nenhuma reação, sabia que era desnecessário, murmurou uma curta oração: “Kýrie eléison, Kýrie eléison” (Jesus Cristo, Filho de Davi, tem misericórdia de mim!) que tantas vezes cantou durante a liturgia da igreja que frequentava.

De repente tudo ficou escuro e depois apenas uma luz, uma luz fraca que foi ficando cada vez mais forte. Não havia dor, frio e nem tristeza, apenas uma luz que o envolvia. 

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