Candeias apagadas, vidas despedaçadas!


A nota começa de forma lacônica: "Há um bálsamo em Gileade" cantaram os coristas em um culto solene no sábado dia 19 de maio de 2012, que marca o fim de 161 anos de vida em adoração da Catedral Episcopal de St. John, em Wilmington, estado de Delaware, nos Estados Unidos…”. A canção, que talvez não seja muito conhecida do evangelicalismo tupiniquim, é o leitmotiv adequado para a ocasião, me arrisco de que esta classificação que fiz possa ser chamada de despropositada, em virtude de ser uma canção desconhecida, ainda assim insisto que, além de ser uma peça bastante tradicional da hinódia evangélica é nada mais, nada menos, do que isso: um leitmotiv.

Continua a nota: “... Tragicamente, ele não tem mais fiéis para manter as portas abertas. O Ex-Bispo Presidente da liberal Igreja Episcopal dos Estados Unidos Frank Griswold fez um sermão de “ação de graças" para desfazer o "espaço sagrado" e "lugar sagrado" e "deu graças pela presença sagrada "[seja lá o que isso signifique]. Mas na verdade seu sermão era um elogio, um culto in memoriam para uma catedral que vai agora juntar-se a muitas outras paróquias que fecharam as portas na Igreja Episcopal dos Estados Unidos. Talvez, com o tempo, a Catedral Nacional de Washington também poderá fechar. Mais Catedrais da Igreja Episcopal estão quase sem fieis. Ao longo dos próximos 20 anos elas vão calmamente fechar e serão vendidas para se tornarem prédios seculares. […] Nesse “culto in memoriam” pela primeira vez em anos, a Catedral estava cheia com cerca de 300 pessoas. Foi a última vez que esse santuário teve fieis. […] Em julho, um desmantelamento terá lugar, uma espécie de funeral eclesiástico para a família e amigos, e a Catedral será então desmontada e seus objetos litúrgicos, bancos, peças, incluindo um magnífico conjunto de vitrais sobre o altar, serão vendidos pelo maior lance. "FIM”. Termina a nota de forma tão lacônica quanto começou.

Li esta funesta nota (que mais parece um daqueles anúncios na seção “Avisos Fúnebres” em algum jornal de terceira categoria), na última terça (22) no site da Diocese Anglicana do Recife (www.dar.org.br), não sei ainda qual o sentimento prevalecente, se tristeza, pesar, amargura, desapontamento, etc, só o tempo é que dirá, o fato em si, para mim é inclassificável. Sei apenas que durante a leitura fui tomado por uma amargura que me acompanhou até o fim, e que perdurou por muito tempo após, e esta sensação volta quando reflito sobre o conteúdo da nota. Ainda que conhecedor das escrituras (diria que até mesmo um pouco acima da média, mesmo correndo o risco de parecer pretensioso, mas afirmo isso em virtude de ter lido e estudado a Bíblia desde os meus 08 anos de idade, antes de completar 10 anos já a tinha lido três vezes de capa a capa, e passei a ensiná-la na igreja quando tinha por volta de 14 anos) e sabedor de que isto foi previsto por Jesus e por seus apóstolos, ainda assim sou tomado por um sentimento de inadequação e pesar, ainda mais sabendo que tal comunidade faz parte da família confessional à qual pertenço.

Este excerto me fez lembrar de uma história antiga e triste que, eu creio ser ideal para nos conduzir à uma reflexão sobre estes acontecimentos, haja vista que não podemos simplesmente ignorar os fatos e nem tampouco podemos deixar de retirar alguma lição preciosa, vamos à ela:

Quando os primeiros raios de sol da alvorada refulgiram naquelas encostas, foi que se pôde avaliar com precisão o que tinha de fato acontecido naquela que talvez tenha sido a mais sombria, tempestuosa e trágica noite que tinham vivido até então. Eram centenas de corpos despedaçados nas rochas, alguns estavam intactos, outros já tinha sido devorados parcialmente pelo cardume de tubarões que passou a noite se refestelando naquela baía, ao alvorecer, com o apetite saciado, rondava os corpos, arrancando pedaços apenas para obedecer ao seu próprio instinto destrutivo. De cima das rochas podia-se ver ainda algumas manchas de sangue que se dissipavam. Restos da embarcação, as velas rasgadas, cordas, tonéis boiando, um dos mastros quebrado pela fúria dos ventos, botes quebrados, madeirame do calado partido ao meio, equipamento do convés, além de diversos restos de comida e utensílios da cozinha jaziam na beira da praia, tornando mais dantesco ainda aquele cenário.

As centenas de pessoas das vilas vizinhas acorriam às encostas escarpadas tão logo a notícia se espalhava como um rastilho de pólvora, perplexos diante de tamanha tragédia se indagavam como aquilo, inominável, poderia ter acontecido, eles que se cercaram de tantos cuidados e adotaram tanta precaução, desde que um acidente há mais de 100 anos vitimou mais de 300 pessoas, desde então tinham sido eficientes em evitar que naufrágios, como aquele, ocorressem naquelas encostas.

Quando as autoridades chegaram, enquanto a população se organizava para resgatar os corpos, com o intuito de lhes dar um funeral decente, os soldados montaram uma mesa diante de uma tenda e os magistrados deram início imediatamente às apurações do que poderia ter permitido que uma catástrofe de tal dimensão acontecesse.

Ele foi trazido diante da mesa em que os magistrados estavam reunidos, cabisbaixo, trôpego, cabelo desgrenhados, roupa amarfanhada e suja e os olhos vermelhos que indicavam mais do que uma noite insone, indicavam uma noite de choro contínuo. As pessoas desviavam o olhar quando ele passava, se afastavam como se ele estivesse com lepra, até parecia que ninguém o conhecia, muito embora fosse amigo de infância ou mesmo parente de muitos do que estavam ali. Somente sua mãe e sua esposa não se afastaram, mesmo assim não ousou olhar para elas, sabia que estavam ali não para condená-lo, mas isto não diminuía sua dor por tê-las decepcionado tanto.

- Onde você estava?

Foi a pergunta que o magistrado lhe fez de chofre, demorou a responder, não porque estivesse pensando numa boa resposta, ele diria a verdade, mas sabia que a verdade não consertaria o que tinha sido feito.

- Estava no farol, como era o meu dever, desde que o sol se pôs que eu assumi o turno da noite.

- Se estava no farol, então me responda como é que deixou isto acontecer? Por que foi que não acendeu o farol quando começou a chover e a névoa se tornou densa e sólida?

Sabia que não poderia dizer a verdade, mas sabia que também não poderia mentir, quaisquer que fossem as consequências ele teria que arcar com elas.

- Estava muito frio, chovendo muito, eu levei uma garrafa de Rum para o farol, bebi um pouco e adormeci, só acordei quando algumas pessoas começaram a bater na porta me pedindo para acender o farol, mas já era muito tarde.

- Uma garrafa de Rum? Foi a pergunta que o magistrado lhe fez, apontando para algumas garrafas vazias de Rum, vinho e conhaque. Cabisbaixo e envergonhado ele não ousou contestar.

- Levem-no daqui antes que a população o despedace. E quanto a nós, que Deus nos ajude a colocar um pouco de ordem neste caos! Disse o magistrado às outras autoridades.

A ordem do magistrado o deixou temeroso, porém aliviado por sair dali, por se afastar daqueles olhares que queimavam mais do que mercúrio. Ele não ofereceu resistência quando foi cercado pelos soldados e levado para uma das celas do castelo, longe da família, longe dos amigos, longe dos que o queriam ver morto, não sabia mais que eram os amigos e quem eram os inimigos, a linha ficou muito tênue depois daquela noite. Sabia que as autoridades queriam protegê-lo, muito embora ele não pudesse ser protegido de quem ele mais temia: sua própria consciência.

Foi contemplando este quadro desolador que o poeta cristão Philip Paul Bliss[1] compôs os versos que se tornariam eternamente famosos e que são cantados até hoje em todas as igrejas de tradição evangélicas ao redor do mundo:

Nas tormentas dessa vida,
Perto está a perdição.
Aos incautos navegantes,
Quem trará a salvação?

Resplandeçam nossas luzes
Através do escuro mar,
Pois nas trevas do pecado
Almas podem naufragar!

Brilha sempre, em graça imensa,
Rico amor do eterno Deus.
Cumpre a nós mostrar o rumo
Do caminho para os céus.

Nuvens de paixão mundana
Não nos deixam ver o sol.
Oh, mostremos o perigo
Com as luzes do farol.

Aos errantes, insensatos,
Guia ao porto divinal!
Em Jesus há vero abrigo
Do furor do temporal.

Noite eterna se aproxima,
Tenebrosa em seu horror!
Clama, avisa aos infelizes;
Insta-os para o Salvador! [2]

Este é um leitmotiv apropriado para o momento em que vivemos, quando aqueles que são responsáveis por manter as candeias acesas se embriagam com este século, com todo o dinheiro, poder, fama, status e grandeza que ele oferece, não há outro canto a ser entoado senão este como lamento, como aviso, como advertência e como um sinal de despertamento.

As naus continuam singrando os mares perigosos no meio da procela em seu furor, envolvidos por névoas densas e trevas profundas, só mesmo um farol aceso sobre um rochedo no alto pode servir de referência. Ainda há aqueles que no meio da tempestade ousam vencer as condições adversas e acendem as candeias, ou todos estão embriagados e embriagando-se? Na última vez que duvidaram, Ele advertiu que ainda havia 7.000 varões que não tinham dobrado o joelho, a esperança não morreu, a esperança, há esperança!
__________________________________
[1] Philip Paul Bliss é um dos escritores de hinos mais famoso na história da música cristã. Ele foi quem escreveu a letra e a música, de hinos como os seguintes: Almost Persuaded, Dare to Be a Daniel, Hallelujah 'Tis Done!, Hallelujah, What a Saviour!, Hold the Fort, Jesus Loves Even Me, Let the Lower Lights Be Burning, Once for All, The Light of the World Is Jesus, Whosoever Will, Wonderful Words of Life. Escreveu apenas o texto de My Redeemer e escreveu apenas a música de I Gave My Life for Thee, It Is Well with My Soul, Precious promisse. Bliss morreu ainda novo, com 38 anos. E isso se deu em 1876. Mr. Bliss passou os dias do feriado de Natal com sua mãe e sua irmã na Pensilvânia e fez planos pra voltar pra Chicago em Janeiro, para trabalhar com Moody. Porém um telegrama chegou pedindo-lhe que voltasse mais cedo. Sendo assim, antecipou a volta pra Chicago, planejando chegar na sexta a noite. Ele decidiu deixar seus dois filhos pequenos, de 1 e 4 anos de idade, com sua mãe. Nesta viagem de volta pra casa, em 29 de dezembro, Philip Paul Bliss morreu juntamente com sua esposa num acidente com o trem no qual estavam. O funeral foi realizado em Roma, na Pensilvânia, onde um monumento foi erguido com a inscrição "PP Bliss, author... Segure o Fort!". Serviços memoriais foram realizados em todo o país para o casal amado. A morte de nenhum civil trouxe tanto sofrimento para a nação, como a morte de Philip e sua esposa. Em 31 de dezembro, D.L. Moody discursou em uma reunião memorial, em Chicago. No dia 05 de janeiro, um concerto memorial foi realizado para homenagear Philip Paul Bliss também em Chicago. A cerimônia contou com 8000 pessoas no salão e outras 4.000 do lado de fora.
[2] HNC 308 - Nas tormentas dessa vida.

0 comentários:

Postar um comentário