“... derrota não é coisa de cristão...”


"Se levante do chão
Erga a sua cabeça,
Siga para o alvo
Que produz salvação,
Se levante do chão
Erga sua cabeça
Derrota não é coisa de cristão”.

Esta música da cantora “gospel” Thalyta, que foi tão tocada nas rádios e cantada nas igrejas na década de 90 não seria muito apreciada por alguns personagens da história da Fé, acho que Calvino, especialmente Kierkegaard, São João da Cruz e Santo Atanásio, além do próprio São Paulo não a apreciariam e nem endossariam tal teologia.

Um personagem em especial teria motivos de sobra para rejeitar esta música. Eu o chamaria de “Capitão Nascimento da Fé: Elias, o Tesbita. O estereótipo ideal para profeta no Primeiro Testamento. Ele é sem dúvidas, um dos personagens mais emblemáticos das escrituras sagradas, israelita, homem de princípios inegociáveis e de uma integridade invendável, tem sido, por séculos, admirado por cristãos, judeus e islamitas por seu engajamento na luta contra o domínio de Satã (que para ele poderia ser manifestado tanto pelas estruturas políticas, quanto pelas práticas das falsas religiões.), o seu engajamento foi muito além do discurso e da pregação imprecatória.

Alguns momentos de sua vida, como a luta com os profetas de Baal no Carmelo são dignas de um best seller ou de um filme que, facilmente levaria umas 15 estatuetas da Academia, alguns outros, bem mais intimistas, expondo uma humanidade que surpreende, seriam “extirpados” das escrituras, se isso fosse possível, por alguns pregadores modernos, mormente os defensores do modo da “Vida Vitoriosa”, pois contraria aquilo que ensinam nos púlpitos e nas redes de TV. Para estes, os cristãos fiéis, só vivem nas montanhas, nunca no “vale”, metáfora que utilizam para fases de depressão e dificuldades.

O capítulo 19 de I Reis começa dizendo que Acabe (Segundo os cronistas bíblicos, o pior rei do norte que Israel já teve, seguidor de cultos da fertilidade canaanitas por influência de sua esposa Jezabel, que por sua índole, teve o nome transformado num adjetivo que caracteriza tudo o que é de idólatra e pernicioso) contou a Jezabel o que Elias fizera aos seus favoritos: “... e como havia matado todos aqueles profetas à espada. Por isso Jezabel mandou um mensageiro a Elias para dizer-lhe: "Que os deuses me castiguem com todo o rigor, caso amanhã nesta hora eu não faça com a sua vida o que você fez com a deles". 1 Reis 19:1-2 (NVI aqui e em todas as citações neste texto).

Não podíamos esperar outra reação de Elias que não fosse tomar a espada e conclamar o povo que o seguisse numa revolução espiritual que teria 100% de chance de ser bem sucedida, afinal de contas Deus estava do seu lado e já provara isso no Carmelo, mas o que vemos Elias fazer é uma outra coisa: “... Elias teve medo e fugiu para salvar a vida...”, 1 Reis 19:3. Deixa eu ver se eu li direito: Elias, o destemido, que aniquilou mais 400 profetas de Baal teve medo da ameaça de uma meretriz e ainda por cima fugiu? Acho que vou tirar Elias da minha lista de heróis.

O texto fala que ele teve medo e resolveu fugir! Isso não combina com “Gigantes espirituais”, isso combina mais com seres humanos que são susceptíveis às dificuldades da vida, sejam elas espirituais, sejam emocionais, sejam afetivas. Fuga aqui não deve tomada como figura de linguagem para alguma patologia psicológica, o medo o fez deslocar-se centenas de quilômetros até um lugar onde julgasse estar distante o suficiente do alcance da rainha perversa.

O que atrapalha a linha de raciocínio é que este rapaz tinha alcançado uma das maiores vitórias, ou talvez a maior que um profeta ousou acreditar que poderia lograr, ele além de ter uma prova visível e inconteste de que Deus estava com ele, ainda saiu-se vencedor ao aniquilar um clero reunido em “Assembleia Nacional”!

Alguém poderia chamá-lo de covarde, e é exatamente o que ele é nesta passagem, nada mais do que um covarde. Não foi corajoso para matar um clero inteiro? E agora fraqueja? Já escutei e li pessoas dizendo que Deus não usa covardes, que não podemos ter medo e nem temor, acho que quem pensa isso nunca meditou, não estou falando de ler rápido, nesta passagem da escritura.

E para piorar a situação, pois é, podia ficar pior, diz ainda o texto que: “... e entrou no deserto, caminhando um dia. Chegou a um pé de giesta, sentou-se debaixo dele e orou, pedindo a morte. "Já tive o bastante, Senhor. Tira a minha vida; não sou melhor do que os meus antepassados." (1 Reis 19:4). Elias, o profeta de Deus, instrumento poderoso nas mãos de Yavé, deseja a morte! Já tentaram desculpar e atenuar o texto dizendo que não era “não propriamente a morte física, mas a morte espiritual”, onde que se pode inferir isso aqui? O que ele pede é a morte mesmo, além de medo e de ter agido com desespero e fugido, motivado pelo medo, o seu esgotamento o conduz a desejar a cessação da vida, término de sua atividade na terra. Em nenhum momento o texto fala de que ele intentou ou dá margem para acreditar que ele intentaria contra a própria vida, mas o que fica bem claro é que ele sente uma angústia tão intensa, que acredita que só a morte seria capaz de por fim a essa dor. Este tipo de sentimento só conhece e entende quem já “andou por vales de sombra da morte”.

Muitos defensores da TP (Teologia da Prosperidade) diriam que Elias está “em pecado”! “Quem já viu um homem de Deus pedir para morrer? Melhor é confessar e deixar o pecado, porque depressão é do Diabo e Deus nos criou para sermos vitoriosos e não para andarmos de cabeça baixa!”. Entra em cena então um outro sintoma em Elias: “… Depois se deitou debaixo da árvore e dormiu...” (1 Reis 19:5). O estado depressivo de Elias, além da fatigante viagem, lhe deu sono, letargia, ou no dizer dos Pais do Deserto: Acédia[1]. Esse é um mal que aflige também o homem moderno, e os cristão, que não são imunes às enfermidades da mente e nem da alma, quando acometidos por alguma delas são instigados pelo Positivismo pós-moderno e pós-evangélico a ignorar estes males, pois “o crente tem que decretar a vitória e esmagar a cabeça de Satanás!”. A TP não permite aos seus seguidores a aceitação de que podem sofrer de depressão ou de outro transtorno qualquer, muito menos será tolerado o tratamento por um psiquiatra ou terapia de grupo. Só há duas saídas: confessar o pecado ou ser exorcizado!

Há quem diga que: “... Quando não damos importância à casa do Senhor, à Palavra de Deus, não oramos, não jejuamos, não nos preocupamos com nossa intimidade e comunhão com Deus; o diabo nos ataca. Ele está sempre pronto para isso! Porém, se nós temos a nossa aliança com Deus intacta, o que é o diabo para nos tocar?”. Acho que esta hermenêutica é falha diante de um fato como esse, Elias vinha de uma “cruzada” de evangelização, talvez a maior do Primeiro Testamento, se não ganhou almas como os apóstolos do Novo Testamento ou os evangelistas da Igreja Primitiva, pelo menos livrou Israel de quase meio milhar de ímpios, os resultados foram por demais positivos, a Glória de Deus foi manifesta por meio dele, a comunhão era real, portanto, falar de depressão como fruto de pecados não confessados neste texto é não apenas impróprio, bem como agir de má-fé.

Poucos entenderiam o que aconteceu com Elias, e só quem passou por isso pode compreender o que a alma dele sofria naquela ocasião, só quem já foi vítima de um medo incompreensível, pode entender a fuga covarde empreendida por ele, que representa bem mais do que pensamos, representa uma falta de confiança que Deus poderia guardá-lo de todo mal. A vontade de morrer, a letargia são familiares a quem já ansiou por ter algo que lhe desse esperança, algo que lhe trouxesse a vontade de viver de novo. Quando o dia amanhece e nada nele demonstra que vale à pena estar vivo, ou quando as sombras do crepúsculo trazem mais do que escuridão, trazem o medo e angústia de mais uma noite sem esperança, sem nada que possa aquietar a mente e o espírito. Quando deitar e dormir é mais questão de “apagar a mente” do que repousar.

E o que dizer aos sinceros cristãos que são vítimas de tais males? Eles estão em dias com a sua vida piedosa e a sua espiritualidade está sadia, mas a mente não está. O que dizer-lhe então? Que a depressão não é doença, mas sim sintoma de pecado não confessado, ou então que há maldição hereditária sobre sua vida? Será isso mesmo o que Deus pensa?

A tratativa de Deus com Elias foi primeira profilática: "… Levante-se e coma..." (1 Reis 19:5), já ouvi asneiras sobre este texto de que: “... Toda vez que lemos na Bíblia, o Senhor mandando alguém se levantar é porque Ele quer que esta pessoa esteja na posição correta para ser usado. [...] A segunda ordem de Deus a Elias é comer. Mas comer o quê? A Palavra do Senhor...”, pode ser bonito este fraseado, mas isso é malbaratar as Escrituras, isso é alegoria, método espúrio de interpretação. Deus mandou o anjo “cuidar” de Elias, animá-lo, alimentá-lo, ajudá-lo a ter disposição para andar e sair daquele lugar. Isso é o que deve ser feito, ajudar, auxiliar, amparar e cuidar de quem está sofrendo, apontar o dedo acusadoramente é seguir um caminho oposto ao traçado pelo próprio Deus.

Por último o que vemos é que, após uma experiência apofática, que é uma forma de afirmar os Atributos de Deus por meio da negação, que Elias teve, Deus tratou do seu medo, seu desânimo, sua depressão e sua acédia: “... "O que você está fazendo aqui, Elias?" (1 Reis 19:9).

Não vou torcer e nem maltratar o texto sagrado ao fazer alegorias baratas sobre o que significa a caverna que Elias se abrigou ou cada fenômeno natural por ele presenciado. Antes vou resumir numa palavra apenas o método terapêutico divino: Elias ouviu a voz de Deus!

Num mundo tão sem referência, tão “pós-moderno”, dizer que a solução para alguns dos males que nos acomete é ouvir a Voz de Deus soa tragicômico! Qual a “voz” devemos ouvir? A da IURD, a da Internacional, a da Mundial, a de Malafaia, a de Bento XVI, qual afinal de contas?

A Bíblia, somente ela, crendo na promessa de Jesus: “Mas quando o Espírito da verdade vier, ele os guiará a toda a verdade. Não falará de si mesmo; falará apenas o que ouvir, e lhes anunciará o que está por vir”. (João 16:13).

Quando vier o medo, sinta-o! quando tiver vontade de fugir e não houver saída fuja! quando sentir-se depressivo e sem ânimo e só quiser dormir, durma! mas quando a voz de Deus vier, levante-se e ouça tudo o que Ele disser, só assim encontraremos a cura.

[1] - “A acédia é um tédio que acabrunha; i. é, que deprime de tal modo a alma do homem que não lhe apraz fazer nada; assim como tudo o que é ácido é ao mesmo tempo frio. Por isso, a acédia produz um certo tédio de agir,como claramente o diz a Glosa àquilo da Escritura (Sl 106, 18): A alma deles aborreceu toda a comida, que a acédia é um torpor da alma, que desiste de começar o bem”. P. D. Mézard, O. P. in: Meditationes ex Operibus S. Thomae citado em Permanência).  

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