Confissões de um ex-pastor(XIII)

Vou começar esta confissão, que provavelmente será a última da série, citando alguns trechos selecionados de uma canção muito popular no meio cristão evangélico hoje em dia: Soldado ferido, ainda que midiática demais, por isso mesmo muito piegas, apelativa e brega, bem ao estilo do protestantismo brasileiro moderno, ainda assim transmite com fidelidade o sentido que eu quero expressar aqui. Para os que quiserem conhecer a música toda, basta uma simples pesquisa em qualquer motor de busca que aparecerão centenas de resultados, desde a letra, arquivos de mídia e vídeos no Youtube®.

Há muitos feridos, choram de angústia e de dor, clamam por proteção e por paz... Seguindo sua ordem, lutaram na frente para o Rei, e o forte inimigo puderam vencer, mas por esse esforço Satã intentou suas vidas matar, não deixa o soldado ferido morrer. Verta o bálsamo e a ferida sarará, protege-o com Teu manto de amor...”



Desde minha infância que a Parábola da Ovelha Perdida me chama à atenção, seja por meio de figuras, numa de um folheto, que ainda tenho, um pastor se apoia num cajado fincado ao solo e se curva perigosamente sobre um penhasco para segurar a ovelha, seja por meio do hino “Eram cem ovelhas...”, que era tocado semanalmente na minha casa, minha mãe ainda tem um Long Play com esta música, seja por meio de sermões, bons ou ruins, literalistas ou alegóricos, ou peças teatrais que vi por toda minha vida.

Confesso que me preocupava com as 99 ovelhas que restaram, muito embora eu nunca tenha falado ou perguntado sobre isso, como a maioria das pessoas da igreja, eu imaginava como o pastor as tinha deixado, quem tinha ficado tomando conta, se é que alguém tinha ficado tomando conta, quais os perigos que as mesmas corriam. Sei que este era o tipo de raciocínio dos fariseus da época de Jesus, não o dos seus seguidores, por isso, sei também que facilmente eu poderia ser comparado ao filho mais velho da outra parábola [a do Filho Perdido, dito pródigo, mas quem foi pródigo mesmo foi o pai], do que com o filho que se arrependeu.

Demorei muito para entender os costumes do Oriente Médio daquela época e a figura do aprisco, chego a perceber que tinha uma ideia de que aquele pastor tinha sido, até diria, meio irresponsável, só entendi mesmo, ou julgo ter entendido, depois que fui para o seminário e estudei as parábolas com mais afinco, li diversos livros, acho que todos publicados em português à época (1993), para tentar entender a forma de Jesus ensinar. E o que incomodou muito foi que, contrariando o que muita gente pensa, ele usava parábolas para “ocultar”, ou seja, para encobrir o verdadeiro sentido do que queria dizer, não era para ilustrar ou esclarecer, basta ler Marcos 4:11 e 12 para ver isso: “... a vós outros vos é dado conhecer os mistérios do Reino de Deus; mas, aos de fora, tudo se ensina por meio de parábolas, para que vendo, vejam e não percebam; e, ouvindo, ouçam e não entendam; para que não venham a converter-se, e haja perdão para eles ...”, como não é este o foco do assunto, vou encerrar esta digressão aqui, sob pena da mesma se transformar no tema central de minha discussão, o que não é minha intenção.

Descobri da forma mais brutal possível que não era só eu quando criança que pensava mais nas 99 ovelhas do aprisco do que na desavisada ovelha que se perdeu, a grande maioria do protestantismo brasileiro, marcada por teologias vazias de prosperidade, sucesso, fama e riqueza, não tem tempo para perder com desajustados, pecadores contumazes e perdedores. Mesmo aquelas igrejas herdeiras da Reforma Protestante e por isso mesmo com uma teologia sadia, não têm uma eclesiologia sadia, não têm ortopraxia, não têm a prática coerente com as verdades que pregam. Não estão dispostas a pagar o preço da reconstrução de uma relação entre alguém desajustado e a comunidade de fiéis. Muitas vezes confundem que a pessoa precisa restaurar a relação com Deus antes, mas se esquecem que isso é foro íntimo, cada um é que pode dizer que tipo de relação tem com Deus, o que eu estou falando aqui é relação com a comunidade, com a igreja, com a paróquia.

Jesus não expõe na parábola o que levou aquela ovelha a se perder, que fatores conduziram-na ao abismo ou a se afastar tanto do rebanho, nem tampouco vemos o pastor aplicar qualquer reprimenda à mesma por sua conduta vã e incauta. Hoje, o que preocupa mais as comunidades eclesiais são os motivos que levaram as ovelhas modernas a se afastarem do que o preço a ser pago pelo resgate das mesmas. E às que conseguem retomar o árduo caminho da volta, muitas vezes lhe são impostos encargos e pesos que contrariam a Graça de Deus.

Alguns anos atrás, pouco mais de 06 anos, muito tempo depois do lançamento, eu pude ver uma das mais fortes e densas metáforas modernas desta parábola por meio de um filme norte-americano. Para os que já leram alguns outros textos meus, devem ficar surpresos com isso, já que sou um crítico ferrenho e contumaz da cultura(sic) americana e da indústria de mentes vazias que Hollywood representa. Porém, mesmo que esse filme não consiga esconder a arrogância e a prepotência da pretensa hegemonia dos demônios que descem do norte, parar usar um termo de um sociólogo crítico dos EUA, ainda assim consigo ver nele a beleza que representa a busca, o resgate propriamente dito, e os fatos que sucedem ao ocorrido, estou falando de Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, EUA, 1998), filme premiado com várias estatuetas do Globo de Ouro e do Oscar em 1999.



O enredo utiliza, como pano de fundo, a Segunda Guerra Mundial e o famoso desembarque dos soldados americanos na Praia de Omaha, na Normandia, o decantado Dia “D”. A operação foi parte de um plano maior de libertar a França que estava ocupada pelos alemães (06 de junho, por coincidência, Dia do Profissional de Logística). A trama começa a fazer sentido quando o Alto Comando descobre que a senhora Ryan, mãe de 04 soldados engajados no esforço de guerra, perde três de seus filhos, que tombaram no campo de batalha em diferentes ocasiões, mas em curto espaço de tempo, sem saber o que fazer para minimizar a dor desta mulher, resolve então dispensar das obrigações militares o filho remanescente.

O enredo se torna complicado por conta do pelotão do filho, no caso o Soldado Ryan, que era de paraquedistas, ter caído no lugar errado, podendo estar em qualquer lugar da França, isso representa dizer que o pelotão estava por trás das linhas inimigas e sem ligação segura com o grosso das tropas que desembarcou pelo mar. Coube então ao capitão John Miller (personagem de Tom Hanks) e seus homens a missão de resgatar o último filho, James Francis Ryan. O soldado Ryan (personagem de Matt Damon) pertencia à 101 Company 506 Regiment. Por ser um airborne, termo inglês para paraquedista, era altamente treinado, tinha passado  por um aprendizado especial tático e bélico, que consistia em combater, porém a característica principal deste tipo de soldado na verdade era defender pontos e objetivos estratégicos, como pontes, estradas, vilas e aldeias.

A trama, tentando mostrar a determinação do capitão Miller na busca por aquele soldado, prossegue com a unidade se deslocando pelo interior da França: passando por vários contratempos e obstáculos, inclusive por discussões internas sobre a utilidade de tal missão: colocar a vida de vários homens em perigo para poder salvar a vida de um homem só, ainda bem que não fui eu apenas que achei estranho este fato, os soldados da unidade também, todos nós, eu e os soldados, parecemos mesmo com o filho mais velho da Parábola do Pródigo.

O auge da busca é atingido quando o sorumbático capitão Miller e seus homens finalmente encontram Ryan, que ainda estava vivo, cercado por tropas nazistas, no meio de um tiroteio infernal junto com seus companheiros paraquedistas sobreviventes, o que dava forte indícios que a morte era uma questão de tempo, talvez horas, talvez minutos. Ao ser informado que seus irmãos tinham morrido e que o Alto Comando o liberava para voltar para casa, que era também o prêmio para a unidade que o procurou com tanto afinco, o soldado Ryan recusa-se a abandonar seu posto, além de querer continuar defendendo a posição que sua unidade havia conquistado à custa de tanto esforço e mortes, recusava-se também a abandonar seus companheiros de guerra, não se achava melhor que nenhum deles. A unidade do capitão Miller, que antes sentia certo asco pelo Ryan, mesmo sem o conhecer direito, apenas por ele ser objeto de preocupação do Alto Comando, passa a admirá-lo por este ato de bravura e lealdade. Tom Hanks, ou melhor o capitão Miller se vê então num dilema, ou parte com sua unidade, levando o que restou dela, com a missão de certa forma incompleta ou fica para ajudar a companhia de paraquedistas frente a um ataque alemão na defesa de uma ponte.

O capitão Miller, que demonstra durante todo o filme o caráter de um líder, ético, honesto e altruísta, decide que a melhor coisa é ficar, por conta de sua patente acaba então assumindo o comando da defesa. Algumas horas depois, enquanto esperavam ansiosamente o que iria acontecer, se veem debaixo de um pesado ataque de blindados alemães e de cerca de 50 soldados à pé, infantes, que tentam a todo custo retomar o controle sobre aquela ponte, que lhes garantiria a passagem no caso de uma evacuação ou retirada.

Chega-se então ao clímax do filme. Tal como no início do mesmo, segue-se uma sangrenta e confusa batalha em meio aos destroços de uma cidade em ruínas, por conta dos bombardeios. Os comandados de Miller, paraquedistas e Rangers agora unidos, conseguem impor pesadas baixas ao inimigo mas a um custo muito alto: boa parte dos paraquedistas e vários Rangers do Capitão Miller foram mortos. Miller ordena então que os sobreviventes recuem para a ponte e enquanto ele se preparava para explodi-la, acaba sendo mortalmente ferido por um alemão. Frente à inevitável e aparente derrota, e, consequentemente, à morte, o Capitão Miller pega sua pistola um Colt M1911 e começa a atirar num tanque alemão, que tentava atravessar a ponte, e que de repente explode, mas antes que o surpreso Miller pense que foram seus tiros que fizeram aquilo, ele vê um avião caça P-51 Mustang sobrevoando o local após destruir o blindado, era o reforço áereo que chegava, cedo para conter a retormada alemã da ponte, mais tarde demais para evitar que tanto sangue americano fosse derramado, mais uma tirada imperialista e prepotente de Hollywood, os mocinhos chegando e matando os vilões. Com a chegada dos reforços americanos, a infantaria invade o local, os alemães batem em retirada. Ryan então, no meio de um cenário caótico e desesperador, se encontra com Miller que esta prestes a morrer e que profere suas últimas palavras: "James... earn this. Earn it." (Que em português significa: "Faça por merecer."). Preço muito alto foi pago neste resgate, preço de sangue, preço de vida, preço de morte.

O filme se encerra com Ryan, já velho, observando o túmulo do Capitão Miller. E tentando provar para o capitão que ele fez que a sua vida valesse à pena a morte de tanta gente. Fiquei amedrontado quando vi essa cena a primeira vez, é como se a Espada de Dâmocles estivesse sobre o pescoço dele durante sua longa vida, e para cada ato que fosse fazer, tivesse que refletir primeiro: Será que isso me fará merecedor da morte daqueles homens, daqueles heróis? Não é essa a pergunta que deveríamos nos fazer face ao sacrifício de Jesus por nós? Bom, isso é outra história, lá vou eu noutra digressão.

Sei o que é ser ferido no campo de batalha, sei mais ainda o que é ser deixado para trás no campo de batalha por conta das feridas que foram abertas, algumas feitas por mãos alheias, e as que mais doem foram abertas por minhas próprias mãos, não estou fazendo o papel de vítima e nem tenho a intenção de atribuir aos outros a culpa pelos meus erros, pelas minhas escolhas e pelas minhas decisões. Mas uma coisa eu posso dizer, isso sem medo de errar: a Igreja não gosta e nem quer pagar o preço de resgatar ovelhas que caíram no campo de batalha, seja uma ovelha que exercia papel de liderança ou não, ainda mais quando, que quem precisa ser resgatado não é uma ovelha e sim um pastor. Não é falácia a citação de Leonard Ravenhill, em Por que tarda o pleno avivamento?: “A Igreja é o único exército que abandona seus feridos no campo de batalha”.

Por mais de três vezes eu desisti do ministério pastoral, algumas por responsabilidade de outros, já falei isso antes, e a maioria das vezes por minha própria responsabilidade, mas em nenhuma eu tive qualquer vislumbre da graça ou da misericórdia dos meus colegas pastores. Alguns passam até hoje por mim fingindo que não me viram, temem até mesmo apertar minha mão ou me saudarem de longe, não querem contaminar-se, eu, por incrível que pareça, não falo com eles para que não se constranjam, não falo por amor mesmo.

Na última vez que me afastei do ministério, procurei um pastor mais experiente, líder da denominação na região e expus as minhas falhas e quais as razões que estavam me levando a tomar aquela decisão, ele me disse que eu estava errado, que não deveria tomar aquele caminho, mesmo assim eu disse-lhe que não podia fazer diferente. Na outra vez que o vi, senti-me um leproso cheio de chagas purulentas, ele foi frio, distante e mal falou comigo. Quinze ou vinte dias antes eu tinha pregado na igreja dele, na saída, à porta, ele falou comigo tão efusivamente, elogiou o sermão, me elogiou e me deu um abraço bem forte, menos de um mês depois, quando precisei dele, virou-me às costas. Não lhe tenho mágoas, isto é regra, não exceção.

Preguei num domingo, dia 12 de março de 2006, foi minha penúltima pregação como pastor, ainda está marcada indelevelmente na minha mente, eu falei sobre a mulher que lavou os pés de Jesus na casa de Simão. Expliquei naquela noite que quando Jesus disse: “-Teus pecados te são perdoados!”, ele não estava atribuindo o perdão ao ato dela, ele estava dizendo que o ato dela era a gratidão de ter sido perdoada, possivelmente num encontro que ele tivera com ela antes daquela noite. Muita gente achava que ela tinha sido perdoada por conta de ter lavado os pés dele, mas o ato de lavar, foi a adoração de uma mulher que já tinha sido perdoada. Senti uma unção muito grande naquela noite, acho que, de uma forma ou de outra, eu sabia que não faria mais pregações como aquela, no dia seguinte cheguei para trabalhar, era gerente de uma livraria evangélica, e fui saudado por um jovem, que era da mesma denominação que eu, ele me disse que alguns jovens da igreja tinham ligado para ele e tinham dito que o sermão tinha sido algo indescritível, um diácono da igreja tinha lhe dito que não sabia  que tinha acontecido comigo, mas algo sobrenatural tinha ocorrido na igreja naquela noite. Dez dias depois que eu me afastei da igreja, este diácono disse para o mesmo jovem que se me encontrasse me daria uma bofetada, pois eu era um hipócrita e falso. No domingo seguinte, preguei pela última vez, sobre o mesmo assunto, noutra igreja, desde então habito na Caverna de Adulão, moro em Lo-Debar e espero o chamado do Rei.

Passei mais de 25 anos de minha vida indo semanalmente, quando não diariamente, a uma livraria evangélica no centro do Recife, há pelo menos 05 anos eu não vou lá, pois não suporto os olhares de crítica, rejeição e condenação que recebo dos que ainda me conhecem. Antes, quando ainda era pastor e professor de seminário eu era incomodado constantemente, uma vez que era consultor literário de algumas editoras e de uma livraria concorrente, pediam a minha opinião sobre livros, sobre bíblias de estudo e sobre autores, hoje, entro e saio sem ser incomodado, ou melhor sem ser notado. O mesmo tratamento não recebo numa livraria católica, sempre que passo lá, ainda que apenas na frente, sou convidado a entrar, tomar café, e sou tratado como um ser normal. Sinto-me mais amado pelos católicos do que pelos meus irmãos evangélicos e protestantes.

[“... e o forte inimigo puderam vencer, mas por esse esforço Satã intentou suas vidas matar, não deixa o soldado ferido morrer...] Ainda que piegas, sinto nesta frase um conforto e um consolo da parte de Deus, sei que fui ferido, ainda estou ferido, mas o meu Capitão, não me deixará morrer no meio do caos da batalha, sei que virá ele mesmo me buscar, não precisará dar sua vida em troca da minha, isso ele já fez um dia. Pagou o preço do resgate, preço de sangue, preço de vida! A sua morte, a minha vida.

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