Pr. Nilson do Amaral Fanini - 2ª edição

O regime militar estava em transição para o regime democrático, Tancredo morrera inexplicavelmente e Sarney tinha sido empossado, mas não conseguia convencer ninguém, acho que nem a si mesmo convencia, governava (sic) o país há cerca de um ano, a República do Maranhão dera alguns frutos naquele ano, uns bons, outros nem tanto. Eu, por minha vez, estava próximo de completar 18 anos e adentrar a maioridade civil. Há cerca também de um ano eu era aluno militar de uma escola preparatória da Marinha.

Era noite do dia 30 de março de 1986, domingo, véspera do aniversário do golpe que afundou o Brasil numa ditadura cruenta, já beirava às 23 horas, após três dias de folga em casa, nos quais eu tinha ido à igreja, estava voltando para o quartel, embarcava, no jargão da Marinha, para mais uma semana de intensa atividade. Eu iria me formar dentro de dois meses e seria transferido para o Rio de Janeiro, onde, certamente, embarcaria em algum navio, já que minha especialidade eram armas e convés, e iria conhecer novos portos, novos países e colecionaria as minhas próprias aventuras, e provavelmente desventuras também, já que as façanhas que minha mente colecionava eram de outras pessoas, fictícias ou não.

Naquele mesmo dia os batistas pernambucanos comemoravam o centenário no Ginásio Geraldo Magalhães, em Recife, mais conhecido como Geraldão, eu não fui, não porque não fosse batista, mas porque tinha optado em ir para minha igreja local, da qual eu sentia muita falta. Sabia do evento, havia sido muito divulgado, além do mais, o preletor era alguém que eu admirava desde a minha infância, sempre idealizei grandes pregadores, gostava de ouvi-lo e depois me trancar no banheiro e imitá-lo pregando. Era um ícone para mim, um modelo a ser seguido. Eu tinha por hábito brincar com minhas irmãs de “igrejinha”, elas dirigiam o culto, e eu, mesmo que mais novo que elas, pregava ao final do cultinho. Sempre, em toda e qualquer situação eu dizia que seria pastor quando me perguntavam sobre meus planos para o futuro. Pensava até em ser missionário nos países do leste europeu, tinha lido muita literatura sobre a Cortina de Ferro, era um adolescente cheio de ideologias, Ivan, Perdoa Natasha, Torturado por sua Fé e Torturado por amor a Cristo eram livros de cabeceira, eu sabia de cor as histórias narradas neles. Richard Wumbrand[1], mais do que pastor e porta-voz da igreja perseguida, era um herói para mim.

Quando entrei no alojamento, o mesmo estava na penumbra, o “Toque de Silêncio Obrigatório” já havia soado, visualizei o Gilberto, sujeito estranho, gente boa, mas estranho, magro, pequeno, dotado de um aparato cefálico avantajado, usava um par de óculos de armação preta e grossa e as lentes eram bastantes “generosas”, para não dizer que eram literalmente um “fundo de garrafa”, o conjunto facial do mesmo parecia uma caricatura de Crumb, antes que alguém me pergunte quem é Crumb, favor olhar a nota de rodapé[2], era um verdadeiro "bola sete" (epíteto utilizado na Marinha para aquelas pessoas que são sonsas, fingem serem bem comportadas, mas na verdade aprontam mais do que os demais), estava sentado numa cama abaixo da minha no treliche que ocupávamos, ouvia uma programação pelo rádio, numa estação de frequência modulada, me aproximei ao perceber que era uma pregação, mesmo vindo da igreja eu estava árido, algo estava mexendo com o meu espírito naqueles dias, me sentia insatisfeito com os rumos que a minha vida estava tomando. Ir para o Rio de Janeiro estava me dando um vazio enorme, a possibilidade de passar os próximos anos à bordo de um navio, sem poder estudar, sem poder filiar-me a uma igreja, sem família por perto, sem alguns lastros importantes, enfim, estava me sentindo perdido.

Perguntei-lhe quem estava pregando, ele então me disse que era o Pastor Nilson do Amaral Fanini, expoente da denominação batista, o sermão estava sendo reprisado pela rádio, já que o mesmo tinha sido pregado na tarde daquele dia. Perguntei-lhe se era evangélico, ele me confirmou que era sim, era filiado à denominação batista.

Tão logo eu me sentei ao seu lado, o volume do rádio estava baixo, corríamos o risco de sermos punidos por estarmos atrapalhando o sono dos que já roncavam, ouvi quando Fanini, naquela voz anasalada que tanto o caracterizava, bradou: “Jonas, aonde você pensa que vai? Se continuar fugindo de mim, eu posso afundar o navio em que está! Eu posso mandar uma tormenta para que balance este navio até que você resolva voltar”. Era este o tom da mensagem que ele proferira naquele dia, as palavras podem não ser exatamente essas, mas era com esse espírito, já fazem 25 anos desde então, não conseguiria reproduzir com exatidão, ipsis litteris, letra por letra, o que ele disse.

Encolhi-me no lugar onde estava, não dei mais nenhuma palavra, aquelas palavras ditas de chofre me atingiram como um tijolo na face, não pestanejei e nem titubeei, elas eram dirigidas a mim. Desde os meus sete anos de idade que eu demonstrava vocação para o ministério pastoral, e por muitas vezes tentei entrar em dois seminários, um da Missão Novas Tribos do Brasil, no qual eu seria missionário e outro da denominação batista, mas sem sucesso, os dois me recusaram por ser muito novo. Frustrado com isso e sem paciência para esperar, fiz concurso para uma academia naval e fui aprovado, ingressei na mesma com a certeza de que seguiria carreira militar, tinha de tudo para ser um bom militar, disso eu sabia, até aquela noite, meu sonho se desfez no momento que Fanini falou para os “Jonas” que estavam se distanciando da vontade de Deus, que Deus não iria permitir que um navio atrapalhasse o seu propósito. Senti medo, mal consegui dormir naquela noite, no dia seguinte ao acordar, eu já sabia que pediria baixa. Não estava agindo exatamente pelos mesmos motivos que Jonas, pois eu não estava fugindo da obrigação confiada por Deus, eu estava chateado por conta de não ter sido aceito numa Escola de Profetas, mas a fuga era a mesma. Era tão desobediente quanto ele.

No outro dia, 1º de abril, procurei o comandante do corpo de alunos para comunicar a minha decisão, Capitão Tenente Paulo, dentista, já tinha feito tratamento odontológico com ele, sem que trocasse uma palavra sequer comigo, sujeito sério, taciturno, semblante sombrio e fechado, só o fato de falar com ele já era um desafio, quanto mais pedir desligamento no apagar das luzes do curso preparatório, ele acatou, não sem antes me aconselhar a mudar de ideia, meus colegas de farda achavam que eu estava brincando, pois era “Dia da Mentira” e eu era considerado um dos mais aguerridos alunos, tinha a fama de ser bom militar, ninguém acreditou em mim. Eu além de sargenteante, responsável pela escala de serviço dos plantões e da guarda, era o “mais antigo” do pelotão, jargão para o líder, eu havia sido escolhido mais por minha capacidade de liderança e comando do que por minha numeração, pois o verdadeiro “mais antigo” não sabia liderar, e isso para um militar era ruim, como eu já havia aprendido algo na igreja, não tive muitas dificuldades, mesmo à contragosto dos colegas, visto que eu era o 40º de 52, fui colocado à frente do pelotão como o líder e minha obrigação era conduzi-lo em todas as apresentações e formações que fizéssemos, isso quer dizer o dia todo, já que nunca ficávamos à vontade numa academia militar.

Para receber a devida baixa tive que ser submetido a exames médicos, constataram que eu tinha uma pneumonia, eu nem sequer tinha indícios disso, não sei se tinha mesmo, ou se foi uma forma de me fazer desistir, pois a Marinha não gostava de investir em alguém e depois esse alguém ir embora sem corresponder devidamente aos investimentos efetuados. Passei mais de um mês ainda, até que fizesse novo exame e recebesse a liberação definitiva. Chorei ao sair da Escola, não por saudades, ou tristeza, mas por enxergar a grandeza do que me esperava, do que estava diante de mim, do horizonte que vislumbrava. Saí com a alma cheia de paixão, cheio de sonhos e planos.

No dia 19 de setembro de 2009, um sábado, 23 anos depois do ocorrido que acabei de narrar, o Pastor Fanini faleceu durante a madrugada, em Dallas, Texas, aos 77 anos, ele tinha sido presidente da Convenção Batista Brasileira (CBB), da Aliança Batista Mundial (BWA, a sigla em inglês), com ampla projeção de sua liderança internacional e foi o fundador do programa de televisão “Reencontro”.

Fanini tinha viajado aos Estados Unidos com a esposa, Helga, para conhecer sua mais nova neta. No vôo, ele sentiu-se mal por causa de pneumonia e, posteriormente, sofreu um AVC (acidente vascular cerebral), que atingiu três partes do seu cérebro. Esteve internado no hospital de Dallas. Médicos constataram que a situação dele era irreversível, o que levou-os a desligarem os aparelhos. O funeral foi realizado nos Estados Unidos.

Fanini era paranaense de Curitiba, 18 de março de 1932. Aos 12 anos, converteu-se e foi batizado. Ao concluir o período de serviço militar obrigatório, Fanini passou a cursar o Seminário Menor no Instituto Teológico A. B. Deter, na capital paranaense, e seguiu, depois, ao Seminário Teológico do Sul do Brasil, completando o curso em 1955. Ele foi consagrado ao ministério pastoral em novembro de 1955, na Igreja Batista da Tijuca, no Rio de Janeiro. Ano seguinte, casou-se com Helga, com quem teve três filhos: Otto Nilson, Roberto e Margareth. Fez mestrado nos Estados Unidos no Southwestern Baptist Theological Seminary, em Fort Worth, Texas. Ao retornar ao Brasil, passou a pastorear a Primeira Igreja Batista de Vitória, no Espírito Santo, onde atuou de 1958 a 1964, quando assumiu a Primeira Igreja Batista de Niterói, na qual trabalhou 41 anos. Após aposentar-se, continuou ligado ao ministério pastoral da Igreja Batista Memorial, de Niterói.

Certamente que ele jamais soube que eu desisti da carreira militar e abracei a carreira eclesiástica por uma palavra dita no meio de um sermão, ele que também desistiu da carreira militar no Exército. Devo a um sermão dele uma mudança drástica em minha carreira, talvez a mudança nem tenha sido tão grande assim, já que meu propósito original tinha sido de ser pastor desde que me entendia por gente, mas o fato de retomar o objetivo original não foi fácil, e até hoje 25 anos depois, vejo que não seria fácil nunca.

Como já disse em vários textos deste blog, desisti de ser pastor há muito tempo, por opções conflitantes com o ministério que tomei, ou tive que tomar, em minha vida, mas ainda lembro com emoção, e com uma paixão nostálgica que faz com que aquele momento fique marcado para sempre em minha mente, aquela noite de 1986, se eu estivesse lá outra vez, certamente que teria tomado a mesma decisão, teria cometido menos erros, e provavelmente não me sentiria mais uma vez como Jonas, sempre fugindo, sempre em meio às tempestades. Mas ainda há tempo, há tempo?

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1 Richard Wurmbrand (Março 24, 1909 – Fevereiro 17, 2001) era um Romeno evangélico. Pastor e escritor. Ele foi o fundador da Organização Internacional Voz dos Mártires ou The Voice of the Martyrs. Fonte: www.wikipedia.com Verbete: Wurmbrand.
2 Robert Crumb (30 de agosto de 1943, Filadélfia, Pensilvânia) é um artista gráfico e ilustrador, reconhecido como um dos fundadores do movimento underground dos quadrinhos americanos, sendo considerado por muitos uma das figura mais proeminentes deste movimento, cujo ponto de partida foi publicação do gibi artesanal, Zap Comix, idealizado por ele. Fonte: www.wikipedia.com Verbete: Crumb.

1 comentários:

Geremias Soares da Cruz disse...

Para de idolatrar e colocar como uma pessoa de bem (e de Deus) um ladrão adúltero e enganador. Se você não conhecer a história, ou se prefere se idiotizar dizendo que tudo não passa de boatos, eu te conto tudo dando nomes, sobrenomes e cpfs.

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