Eu, um Borderline (I)



Ela me ligou cerca de 12 vezes, o celular estava no silencioso, eu o havia jogado num recipiente dentro do carro e tinha praticamente o esquecido ali, não tinha visto as ligações e nem as 07 ou 08 mensagens que ela tinha enviado. Numa delas dizia que queria me ajudar, mas para isso eu precisava tomar uma decisão e voltar atrás quanto ao que havia resolvido em relação ao nosso casamento. Tomei o telefone e retornei a ligação não sabendo exatamente o que aconteceria. Aquela ligação, de uma forma ou de outra, mudaria a minha vida.

Já era tarde, quase 23h00 do dia 24 de junho de 2011, plena noite do feriado de São João. O dia tinha sido muito cansativo, eu havia feito a mudança de alguns pertences meus para casa de minha mãe e estava exaurido emocionalmente por tudo o que estava ocorrendo comigo: instabilidade e insatisfação no emprego, no qual eu era executivo na área de logística, sentimentos esses que me levaram a pedir demissão quinze dias depois, a separação de um conturbado relacionamento de mais de 05 anos, permeado de mentiras, perseguição, ciúmes, agressões e traições, após diversas tentativas de separação de ambas as partes, o fato de voltar a morar com a minha mãe, que não demonstrou nenhuma acolhida quando a informei que precisava passar um tempo com ela e as vieses, dor de consciência por estar bem e de certa forma feliz, que um novo relacionamento traz consigo, quando se sabe que a pessoa do relacionamento anterior não assimilou ainda a separação.

A conversa por telefone com minha ex-mulher foi angustiante, que eu prefiro chamar aqui de J..., ela me pedia um pouco de atenção e reclamava que estava passando o São João sozinha e, queria que eu fosse até à casa dela, os pais, separados, moravam distantes, eu era de fato a única pessoa por perto, ainda que chateado, magoado e ferido, com muito de desconfiança e descrédito, atendi ao seu pedido.

Dirigi mais de 50 quilômetros até chegar ao antigo apartamento que dividi com ela por mais de 03 anos, avistei-a bastante ansiosa no hall do prédio à espera, já havia ligado diversas vezes, algumas eu nem pude atender, estava dirigindo a toda velocidade possível. Xingou-me bastante e chorou mais ainda por eu não ter chegado logo, já que tinha me ligado por volta das 20h00 e eu só tinha chegado às 23h30min. Conversamos um pouco dentro do carro, como não tinha mais como sair de lá, por estar com muito sono, resolvi dormir no apartamento. Após comer algumas guloseimas juninas, que ela me ofereceu, vi quando a mesma se aproximou com um livro na mão, não o reconheci imediatamente, pensei tratar-se do manual do filme À prova de fogo que ela andava lendo, tive um sentimento de rejeição imediato, mas quando me dei conta era o livro Desejos sexuais de todos os homens, livro que eu mesmo havia comprado e que tinha lido para entender a minha necessidade de ver pornografia, baixei um pouco a guarda e me dispus a ouvir o que tinha para me dizer.

Em meio às lágrimas ela me disse que queria me ajudar, pois havia estudado recentemente na faculdade, onde cursa psicologia, e tinha descoberto que eu tinha uma doença, um transtorno de personalidade, falou o nome, mas eu não entendi a pronúncia, julguei tratar-se do nome do descobridor ou sistematizador do estudo de tal transtorno, minha reação foi de surpresa, medo e repulsa, disse-lhe que não iria abrir feridas que eu não tivesse certeza que seriam curadas. Sempre tive a tendência de rejeitar comentários ou teorias psicológicas da parte dela, primeiro por não gostar da forma de detentora da verdade que ela sempre apresentava, segundo porque eu nunca gostei muito de ouvir teorias freudianas, não sou adepto dele e nem o acho referencial para lidar com questões de alma, acho que o pensamento dele torna-nos moralmente irresponsáveis, meu calvinismo com suas nuances de Total Depravação Humana não permite ter esse tipo de raciocínio.

Voltei-me para a parede e tentei dormir, não que eu não quisesse ouvir o que ela tinha para me dizer, mas o medo que eu tinha era de mexer com coisas que poderiam sair do controle e me fazer ficar pior do que eu estava, já havia passado por isso 13 anos atrás e isso doeu muito, não iria passar por aquilo outra vez.

No dia seguinte, um sábado, fui trabalhar, efetuei algumas pesquisas na web e descobri que o nome do transtorno que ela estava falando era Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), e que é definido na Wikipédia como:
“O Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL), também muito conhecido como Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), Transtorno Estado-Limite da Personalidade é definido como um grave transtorno de personalidade caracterizado por desregulação emocional, raciocínio extremista (cisão) e relações caóticas. Pessoas com personalidade limítrofe podem possuir uma série de sintomas psiquiátricos diversos como humor instável e reativo, problemas com a identidade, assim como sensações de irrealidade e despersonalização. Com tendência a um comportamento briguento, também é acompanhado por impulsividade sobretudo autodestrutiva, manipulação e chantagem, conduta suicida, bem como sentimentos crônicos de vazio e tédio. Esses indivíduos são aparentemente vistos como “rebeldes”, “problemáticos” ou geniosos e temperamentais, no entanto, na realidade possuem um grave distúrbio. É frequentemente confundido com depressão, transtorno afetivo bipolar ou portador de psicopatia, sendo considerado um dos mais complicados transtornos de personalidade, com grande dificuldade de tratamento”.

Algumas palavras ficaram gravadas em minha mente de uma forma indelével: “grave transtorno”, “relações caóticas”, “humor instável”, “comportamento briguento”, “impulsividade autodestrutiva”, “manipulação”, “chantagem”, “conduta suicida” e “sentimentos crônicos de vazio e tédio”. Eram assuntos que me eram familiares, não era novidade para mim, era o que eu sentia todos os dias e desde que me lembrava, tinha sentido a minha vida toda, o que era novo é que todos estavam juntos e associados a um transtorno de personalidade que eu poderia ter. Passei por outros textos em outras pesquisas que fiz, vi as mesmas coisas em outros sites e os mesmos apontavam todos para a mesma direção, e isso foi o que mais me incomodou, cada um parecia que tinha sido escrito sobre mim. Imprimi o texto mais longo para ler depois, li diversas vezes quais os sintomas e as prováveis causas e não pude fugir da dolorosa contatação de que ela tinha razão, não tive dúvidas, eu era um Borderline.

Desde então, eu me senti como que renascido, pela primeira vez eu realmente podia dizer que começava a me entender e a compreender a minha vida. Hoje faço uma releitura de mim mesmo, faço uma revisão de minha vida toda e em cada parte dela eu vi o quanto errei ou acertei por conta de ser um Borderline, não tenho orgulho de ser um, mas já que sou um, vou aprender a conviver comigo mesmo de forma que não deixe que nada controle a minha mente, sem que eu permita.

Vou rever minha vida e por isso vou escrever uma pequena autobiografia redentora, quem sabe eu não me perdoo e quem sabe não recebo o perdão de quem tanto machuquei. Sei que será dolorido, sei que posso até nem continuar e nem terminar de escrever, já que esta é uma das minhas características, mas pelo menos vou começar.

Não retomamos o relacionamento, algumas feridas, em ambos, não cicatrizarão nunca, mesmo com a contatação do transtorno que carrego na alma, pedi que se afastasse, não queria mais machucá-la e nem ser machucado, dessa forma nos curamos e esquecemos o caos que foi nosso relacionamento.

Alguns dias depois fui a um psiquiatra que me receitou remédios para dormir e para diminuir a minha ansiedade e moderar o meu humor. Não sei por quanto tempo eu vou ter que tomar estes remédios, mas vou em busca de cura, seja de forma farmacológica, seja de forma psicoterápica. Mas sei que independente de ser curado ou não, posso ser um Borderline para o resto da vida, mas sei que serei apenas um Maltrapilho de Abba!

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